EnglishPortuguês

As Outras Canções de Camané

Arquivo - Maio 31, 2007
«Um dia o príncipe do fado será rei da canção, e disso não tenham a mínima dúvida». Termina assim um texto assinado por João Bonifácio, jornalista do Público, a propósito da actuação de Camané no espectáculo Outras Canções II.

Teatro S. Luiz - Lisboa - 03/03/2007

«Um dia o príncipe do fado será rei da canção, e disso não tenham a mínima dúvida». Termina assim um texto assinado por João Bonifácio, jornalista do Público, a propósito da actuação de Camané no espectáculo Outras Canções II. Começa com a mesma sentença este texto daqui. Quem escreveu primeiro? Bonifácio. Mas até podia não citar o autor, de tão óbvia quanto o sol se torna a constatação. Ainda que nem toda a gente o saiba ainda, não é uma descoberta de visionário, é a descrição implacável do que os sentidos atentos absorveram no São Luiz, em Lisboa. E nós, que também estivemos lá, dizemos o mesmo.

Os arcos, as cordas, os sopros. Uma densa floresta de músicos levita sons com sensibilidade, faz corar a luz de tão insuficiente para iluminar a densidade do momento. O mundo até pode esmorecer-se, desde que os homens sintam a orquestra, caiam com ela nas vertiginosas descidas de cordas, sopros, arcos. Orquestra Sinfónica Portuguesa em palco. Abre o espectáculo sozinha e vai corajosamente a quase todas as canções. Surpreende quando é preciso, mantém-se invisível quando assim deve ser. Não há missões impossíveis para uma orquestra assim.

Texto a meio e palavras para Camané quase nem vê-las. Assim é. Prossiga a caravana. Ora, uma super orquestra não chegava. Num canto, esquerdo para o público, direito para os artistas da luz, um combo de jazz, do melhor que rebenta no nosso país.
A canção explica, recorre-se a Tom Jobim (bem interpretado): «Mas para quê tanto céu, para quê tanto mar (…) De que servem as flores que nascem pelo caminho, se o meu caminho sozinho é nada». Com este acompanhamento musical, é tudo.

Dezenas de músicos de orquestra-melodia-melodia-melodia! Subtilmente fundidos com jazz-jazz-jazz e o delicioso exercício de concentração de sentidos num só instrumento, viajar com ele no caminho rasgado entre a harmonia global. Como por exemplo, seguir a serpentina rítmica da guitarra de Mário Delgado, a bateria maestra depois do maestro de Alexandre Frazão, a alegria desmedida da família dos xilofones, os gemidos cortantes de violinos anónimos. O prazer de ver arcos no ar e imaginar como era perfeito se todas as guerras ardessem assim.

Espreitar os músicos pelos pés, contagiados, tremelicantes, subtis. O metro a passar muito próximo do São Luiz, bem fundo, a estremecer também.

«E depois que a tarde nos trouxesse a lua». Camané pisa devagar o palco, entra inseguro do seu inglês, canta jazz com a mão esquerda no bolso. Não é muito chegado à vertente norte-americana da língua de Shakespeare, ainda assim brilha desde o início. «There’s a place for us, somewhere a place for us», assim com The touch of your lips, tema de Hal Kemp multi-reinterpretada pelo mundo.
E depois viaja muito, experimenta as possibilidades, salta de um idioma para outro com suficiente à vontade – inglês, italiano, castelhano, português (de Portugal e do Brasil) – até explodir no francês de Jacques Brel e do Ne me quitte pas. Mais uma vez de acordo com Bonifácio (novamente: óbvio como o sol nascente). Até ali tudo fora bonito mas durante e depois esta música, a plenitude. Camané nasceu, após cesariana, dentro desta música do artista belga e ainda não o tinha cantado a ninguém.
A lua era ele, na noite. Sublime e cheia, espelho de diamantes. Espelho meu, espelho meu, haverá alguém que sinta tanto o que canta como eu? Sim. Mas não.

Para que fique registado, uma lista distraída: Sinatra, Tom Jobim, Chico Buarque, Brel, Tony de Matos…

Depois, havia ainda dois rebuçados: canções originais e com asas, afinadas propositadamente para o este espectáculo. Reflexão total, sobre um poema de António Gedeão («Recolhi as tuas lágrimas na palma da minha mão») e com lágrimas de aplauso; Margarida, poema de Álvaro de Campos, canção soberba, quase-fado, composição de Mário Laginha. Fado mais orquestra mais jazz igual a canção.

Em Outras Canões II, dois porque o artista já tinha feito a experiência no passado, num reportório mais centrada na canção portuguesa, Camané mostrou uma vez mais  que a sombra das suas asas já cresceu muito para além do fado. E este texto termina como começa. Que me perdoe o Bonifácio.


Artigos Relacionados


PROCURA e OFERTA de Músicos!
Não procure mais... está tudo aqui!

Redes Sociais

     

Newsletter

Mantenha-se actualizado com as novidades do Fado.

Portal do Fado

©2006-2024  Todos os direitos reservados.