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Amália e o Fado

À altura da sua estreia, perpetuou-se a ideia de que "Fado - História de uma Cantadeira" era uma biografia romanceada de Amália. Nada, contudo, mais longe da verdade neste melodrama folhetinesco que Perdigão Queiroga dirigira a partir de um guião original de Armando Vieira Pinto e que antecipava em quinze anos a célebre máxima de "O Homem que Matou Liberty Valance": "print the legend".

"Jogaram um bocadinho como sendo um filme que contava a minha vida. Eu não disse nada, para que não pensassem que eu não queria que se falasse nisto ou naquilo. Mas não tem nada a ver com a minha história, a não ser que casei com um guitarrista e que vendia fruta. De resto, a minha mãe nunca cantou o fado, não fui criada no bairro de Alfama, só fui criada pela minha avó, aquilo do empresário a dar-me as coisas todas não tem nada a ver comigo."

As palavras são de Amália, citadas por Vítor Pavão dos Santos na sua biografia de 1980 da cantora, mas de pouco importa o desmentido, mesmo que tardio. O sucesso que "Fado" obteve (estreado em Novembro de 1947 no Coliseu do Porto, e Fevereiro de 1948 em Lisboa, no teatro da Trindade) veio incrustar de modo irreversível na memória colectiva a ideia do guião ser decalcado da vida de Amália. Em abono da verdade, essa colagem era deliberadamente procurada pela produção: o par romântico de Amália e Virgílio Teixeira (o guitarrista por quem a cantadeira se apaixonava mas cuja relação era posta em perigo pelo sucesso crescente) estava demasiado próximo da vida real, pois Amália fora realmente casada com um guitarrista amador e o casamento acabaria por não resistir - ao sucesso crescente e aos problemas de relacionamento do casal.

Além disso, alguns dos episódios do filme foram - a fazer fé no livro de Pavão dos Santos - sugeridos pela própria Amália ao argumentista Armando Vieira Pinto para encorpar e credibilizar a história original; casos de uma conversa de bastidores ou da sequência de ensaio com Virgílio Teixeira. Amália, aliás, não se mostrava especialmente entusiasmada pelo filme (como nunca se mostrou por nenhum dos outros que fez, à excepção de "As Ilhas Encantadas"), acusando os diálogos de excessivo artificialismo. Esse seu descontentamento levá-la-ia mais tarde a recusar entrar em "Eram Duzentos Irmãos", um guião de Vieira Pinto para cujo elenco o seu nome chegou a estar confirmado.

Claro que o artificialismo é uma das regras do melodrama e "Fado" explorava habilmente todos os rodriguinhos do género. Não foi por isso surpreendente que o filme obtivesse tamanho sucesso comercial. Havia a presença de Amália e do galã do momento, Virgílio Teixeira; havia um elenco de secundários de luxo (Vasco Santana, António Silva, Raul de Carvalho, Eugénio Salvador, Eurico Braga); havia a música de Frederico de Freitas, com êxitos como "Fado de Cada Um", "Zanguei-me com o Meu Amor" e o "Fado da Saudade". Além do mais, Amália saía do triunfo absoluto de "Capas Negras", que batera todos os recordes de bilheteira do cinema português da altura.
A popularidade do filme seria recompensada pelo Secretariado Nacional da Informação, a estrutura de propaganda salazarista dirigida por António Ferro, que lhe atribuiria não apenas o Grande Prémio respeitante ao ano de 1948 como também o Prémio de Melhor Actriz. Coisa que Amália insistia em dizer que não era, apenas uma cantora popular que teve a sorte de entrar para o cinema como primeira figura por ser a Amália Rodrigues.

O facto é que é ainda hoje por "Fado" que a Amália-actriz é recordada, mais do que por qualquer um dos outros filmes que fez. "Capas Negras" teve mais sucesso, "Os Amantes do Tejo" abriu-lhe as portas do mundo, "As Ilhas Encantadas" era aquele com que se sentia mais realizada e no qual mais se empenhou. Mas foi "Fado", por muito datado, inverosímil ou inventado que seja, que contribuiu para fixar no imaginário colectivo da cultura portuguesa a imagem que associamos indelevelmente à Amália em início de carreira: uma cantadeira talentosa que veio do nada e subiu pelo seu próprio talento, sem nunca perder a "ligação à terra" que garantiria a sua longevidade num meio repleto de armadilhas. Essa imagem confundiu-se, miscigenou-se de modo inevitável com a verdadeira Amália - de cuja essência, de qualquer modo, não estava assim tão longe, mesmo que os detalhes fossem muito diferentes. Mas não deixa por ser isso de ser a lenda.

E, como dizia o outro no filme de John Ford, quando a lenda é maior que a realidade, escreva-se a lenda.
Jorge Mourinha



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