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Amália Rodrigues - a derradeira entrevista

A voz arrastada chega envolta no eco do passado. Passou uma década desde o nosso último encontro, e oiço-a de novo ralhar: «Quem lhe disse que abandonei a minha carreira? Tenho quase a certeza que vou cantar outra vez!». E ninguém sabe se o fez porque, aos 79 anos, apanhou sozinha e sem avisar o trem da partida. Era uma quarta-feira. entrara o Outono, e quando a sua secretária particular, pelas oito da manhã, entrou na casa de S. Bento, era suposto ela estar a dormir. Mas não: abandonara-nos.

É possível resumir a sua vida?

É um bocado confuso, difícil... Tem altos e baixos. Os baixos já lá vão, graças a Deus, embora eu esteja mais para o baixo do que para o alto, porque estou muito mais perto de morrer agora do que naquela altura. Tomara eu regressar àquela época em que cantava para não morrer.

A vida da sua família também foi feita de picos...
Pelo menos a das pessoas de quem mais gostei, como o meu avô materno, um empreiteiro do Fundão. Mas jogava muito, gastou o dinheiro e foi acabar os seus últimos anos na Fábrica Conde da Ponte, em Lisboa. Foi, talvez, o meu maior admirador. Queria que eu cantasse, cantasse. Quando eu chegava a casa mandava-me cantar - e punha-se à janela a ver quem ficava a ouvir na rua. Era um 1° andar baixo e ele dizia: «Já pararam sete, já pararam dez».

O seu pai também era do Fundão?
O meu pai não era do Fundão, era de Castelo Branco... É um nome mais bonito que Fundão... Fundão afunda-se logo. Era seleiro e sapateiro, mas gostava era de tocar corne-tim. Um dia a família dele saiu do Fundão para ir trabalhar para a terra da minha mãe. Ele gostou logo dela. ela gostou ainda mais dele, casaram-se, criaram dez filhos - e, dos que não criaram, eu sou um deles [risos].

Mas a Amália nasceu em Lisboa...
Em 1929 nem sei o mês. Na Rua Martim Vaz que é perto da Calçada de Santana. Na freguesia da Pena. Sou Amália da Piedade e nasci na freguesia da Pena... Coitadinha de mim não é?: [risos]. Mas, voltando aos meus pais. No Fundão havia duas bandas: a da 'música nova' e a da 'música velha'. O meu pai fazia parte desta última e parece que era muito cobiçado. A minha mãe andava sempre atrás dele. Nasceram os filhos e ele não ganhava para viver. Aí, vieram para casa dos meus avós maternos, que já não eram ricos como antigamente, pensando que eles os podiam ajudar. Não conseguiram aquilo que queriam, e voltaram para a terra - de onde só saíram muitos anos mais tarde.
Portanto, a única certeza que tenho é que nasci na casa da minha avó, estava lá a minha mãe. Mas de mim sempre disseram muita coisa. Há até uma história muito engraçada que eu gostava de contar... Uma vez ia cantar numa coisa ao ar livre, em Trás-os-Montes. Fiquei em casa de uma senhora que tinha uma casa muito bonita. Como não havia camarins nem coisa nenhuma, fui lá para me pintar e me vestir. Então, estava um homem numa janela a dizer para outros: «Vocês vão hoje ouvir a Amália Rodrigues por minha causa Se não fosse eu, ela não estava aqui». Ele estava a dizer que a minha mãe tinha tido um parto muito difícil e que foi graças a ele que não morremos as duas. O que era uma grande mentira. A minha mãe e a minha avó não tinham dinheiro para ir buscar doutores, para ir a hospitais, nem sabiam que havia maternidades... Só conheciam as chamadas 'mulheres do Fundão'.

As estrelas abrem sempre no imaginário dos outros uma fuga para as suas vidas monótonas...
Olhe esta: uma vez, no Porto, veio uma pessoa com o retrato de um homem e dizia que era o meu pai. «O meu pai não é este, minha senhora, desculpe lá». «É, sim senhora!». «Isso é que não é!». «Como é que se chamava o seu pai?». «O meu pai é Albertino». «Albertino... não é nada Albertino... o seu pai é José». «Olhe, minha senhora, se não sabe quem é o seu pai é lá consigo. Eu sei qual é o meu, está bem?».

A sua mãe também tinha altos e baixos?
Estive praticamente nove anos sem ver a minha mãe. Só fui lá uma vez, tinha uns cinco anos. A minha mãe sonhou que eu tinha morrido. Estava muito mal no hospital e eu tive que ir lá. Lembro-me que eu queria ir ao colo, porque era ainda muito pequena. Ainda hoje sou mandriona, não gosto nada de andar! Passado um tempo, vieram todos para Lisboa.

Viveu muito tempo afastada dos seus pais e numa fase importantíssima para uma criança. Foi uma época má da sua vida?
Não. O sofrimento foi mais quando veio a minha mãe. Tinha os meus 14 anos. Quando veio a minha mãe e os meus irmãos, eu queria estar em casa dos meus pais, porque lá havia gente, e na da minha avó só havia o meu avô. A minha avó ficou triste. Como os meus irmãos trabalhavam (quer dizer, um trabalhava e outro era um bocado maluco mas era bom rapaz, eu gostava muito dele, foi boxeur), eu é que tomava conta da casa. Sabia fazer tudo, lavar e passar.

Sempre se sentiu um bocadinho rejeitada pela mãe...
Ela foi má para mim sem o ser, sabe o que é? Era o feitio dela... O feitio que, coitadinha, teve até morrer. A minha mãe chama-va-se Lucinda, não é um nome muito feio. nem muito bonito, não é?... E era uma pessoa muito estranha, mas muito engraçada. Tinha um feitio um bocado esquisito. Os bombeiros passavam a vida lá em casa porque ela achava que estava sempre doente e queria ir para o hospital. Mas quando eles chegavam já estava melhor. Depois, como as outras filhas eram criadas com ela e eu não, ela gostava mais das outras do que de mim. Também é natural. Elas eram mais, eu era só uma, era pequenina, não valia a pena.

O que herdou dos dois? Com quem se acha mais parecida?
O meu pai a tocar era como eu a cantar. Não tocava nada de que não gostasse muito. E fechava os olhos... E eu fui para a televisão a primeira vez, a segunda, a terceira, a quarta e a última, e não era capaz de abrir os olhos. Em toda a parte eu abria um bocadinho os olhos, mas depois fechava-os com vergonha... O meu pai era exactamente igual a mim. No palco também fecho os olhos. Não é por querer... Estar.com os olhos sempre fechados é muito chato.

E da sua mãe, o que herdou?
A minha mãe cantava muito bem, tinha uma voz muitíssimo bonita e era quase igual a mim, porque não era capaz de cantar uma coisa sempre da mesma maneira. Havia uma canção de que eu gostava muito, que era a Santa Luzia, e eu queria que ela me ensinasse. Mas de cada vez que ela cantava, era diferente... Não consegui aprender. A minha mãe gostava de cantar e cantava muito bem, mas não podia cantar por causa dos 'ssss'. «Osss amoresss quesss messs dedicastesss»...

Chegou a fazer a primária?
Sim fui para a primária com nove anos e meio e porque um dos meus tios, que achava que eu era esperta, convenceu a minha avó. Já tinha passado a data das inscrições, mas uma contínua meteu uma cunha. Eu tinha muitas doenças de brônquios, estava quase sempre na cama com papas de linhaça, com ventosas, com tudo. Chegava à escola e a professora mandava-me embora. Só que eu não me queria ir embora. Queria estar na escola... Gostava muito de ir para a escola, gostava muito da professora e ela gostava muito de mim. Passei sempre, sempre com vinte valores. E não tinha livros...

Sem livros como é que tinha essas notas?
Só tinha um livro que a minha avó me comprou. Quando eu queria comprar outro, ela dizia: «Tens aquele muito bom, tens aquele novo». Era de Geografia. E eu que detestei Geografia... A minha avó não fazia nenhuma ideia de que só um livro não chegava para tudo...

Já cantava na escola?

Cantava no recreio... Quadras que eu ouvia aos cegos. Depois vendiam aquelas letras por cinco tostões. Eu cantava as quadras... Uma vez, íamos fazer uma festa na escola e a minha professora estava a ouvir-me no recreio e disse: «Esta é que vai ser a vedeta».

Quando saiu da escola começou logo a trabalhar?
Éramos muitos filhos e tive que ir trabalhar. Andei por vários sítios. Fui para a fábrica da Pampulha. Havia muitas empreitadas. Na época das ervilhas, quem descascasse mais depressa ganhava mais...

Quando era criança, o que achava que lhe ia sair no futuro?
Não pensava em nada. Só pensava no dia seguinte. Ou naquela altura, mesmo. «Tenho fome, tenho que ir não sei quê...». Às vezes ia ao pé da minha avó, escondia um bocado de pão debaixo do braço, para não se ver. E gostava muito de azeitonas. Co-mia-as quase todas no caminho para casa. Era sempre mais uma, mais uma, só esta e depois eram todas. Estavam à espera das azeitonas e não tinham nenhumas...

A sua sina não parou aí...
Depois a minha avó mandou-me para o Fundão. Eu gostava de bordar e andara a aprender Tinha uma tia no Fundão - Maria do Carmo, irmã do meu pai e minha madrinha - que bordava à máquina. E eu via aquelas flores todas e também queria fazer aquilo. Ela tinha uma casa de pasto. Embaixo era um café, com os mata-bichos, e em cama uma sala onde vinham os soldados e os capitães jantar, almoçar. Eu já tinha nessa altura mais um aninho e os ra-eostavam de me ver... Era uma rapariga de 14 anos, sabia passar a ferro, sabia lavar, e ela queria que eu trabalhasse, trabalhasse... Levantava-me às seis da manhã, tinha que lavar todas as coisas que tinham ficado sujas dos homens que iam lá... Não foi agradável. Foi a primeira vez que tive um ataque de raiva... Tirei tudo de uma mesa e atirei da janela abaixo. Vim-me embora. Mas estava já muito arrependida... Andei, andei, desde as 6h30, até encontrar uma terra chamada Telhado. Depois olhei para o lado e vi uma linha de comboio.
Meti-me à linha de comboio e vim para Lisboa. Mas a minha tia foi dizer ao meu tio e ao meu pai o que tinha acontecido, e o meu tio foi-me buscar. Graças a Deus que foi. Eu tinha medo e quando apareceu o meu tio fiquei toda contente. Depois foram os meus avós lá buscar-me.

É a história da Gata Borralheira. Aposto que havia primas preguiçosas e feias...
As minhas primas tinham uma instrução que eu não tinha... Ficaram nos liceus. Só que eu era inteligente. Elas aprendiam inglês, mas como têm uma pronúncia da Beira Baixa trocavam o singular e o plural. E é verdade que não gostavam nada de mim. Eu também não gostava do que elas me faziam. Não me ligavam importância nenhuma. Era a Gata Borralheira. Até me quiseram fazer o casamento.

Quem era o sapo?
Era um homem muito feio, muito pequenininho, muito magrinho... Tinha um nariz pequenino e esquisito, parecia que não tinha nariz nem nada. Mas a minha tia Ana, que era a mais velha, dizia: «Olha a fidalga. O homem tem dinheiro!». «Mas não tem cara, é feio!», respondia eu.



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