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Camané - Do amor e dos dias

Discos - Novembro 08, 2010
EMI Music / 2010
Um mote de O'Neill, uma ideia de fado, uma colagem dos tons que o amor vai dando à vida: paixão, ódio, distância, saudade, ironia. É assim o novo disco de Camané, "Do Amor e dos Dias"

A capa é uma colagem múltipla, fragmentada, onde o rosto de Camané se insinua como num desenho. "Do Amor e dos Dias" não é apenas um novo disco, é outro conceito na sua carreira. São 15 fados com três separadores musicais pelo meio, sempre com uma mesma frase tirada do poema "O amor é o amor", de Alexandre O'Neill, musicada de formas diversas: "O amor é o amor - e depois?!" É, ao mesmo tempo, uma afirmação e um desafio. E abre caminho para o que aí vem. Que é o amor visto nas suas múltiplas vertentes (a colagem da capa, feita de papéis variados, postais, cartas, pautas, também simboliza essa visão de estilhaços), na voz de vários autores, na música de vários fados e, sobretudo, na interpretação superlativa de Camané, que a cada passo se transcende.

"Este disco é muito conceptual, mais do que qualquer outro que eu tenha feito", diz ele. "O conceito foi acontecendo de várias maneiras. Uma delas foram as minhas memórias do fado. Há trinta e seis anos, quando eu peguei nos discos de fado (tinha eu 7 anos), a imagem que me ficou foi a daquelas letras do Marceneiro a falar do amor e do ódio, do quotidiano do amor mas de uma forma irónica. "O lenço que me ofertaste/ Tinha um coração no meio/ Quando ao nosso amor faltaste/ Eu fui-me ao lenço e rasguei-o". E essas letras sempre me fascinaram. Inclusive, acabei por gravar três dos fados que me marcaram mais nessa altura: o Fado Louco, o Fado Mocita dos Caracóis e o Fado Alexandrino de Joaquim Campos, numa edição exclusiva só para as pessoas que fazem a pré-compra do disco na Fnac." Nas lojas lá está, num largo escaparate, capa idêntica na concepção, um CD-EP com este título: "Camané, A Guerra das Rosas". No verso, diz: "CD gratuito mediante pré-compra do álbum Do Amor e dos Dias". Não é para vender, é para tornar mais apetecível a compra do outro, do disco que aí vem.

Mas é um bónus valioso, já que nenhum dos três fados antigos que acompanham "A Guerra das Rosas" (único que pertence ao novo trabalho) fazem parte do disco que sai dia 27. São mesmo uma "prenda" extra. Mais interessante ainda porque a música desses três fados foi usada no disco novo com outras letras: o Fado Louco em "Último recado", o Fado Mocita dos Caracóis em "Piso térreo" o Fado Alexandrino em "Lúbrica". Com justificação, todas elas. "Nas letras que me enviam e fui coleccionando ao longo destes vinte anos, encontrei de repente algumas poemas que tinham essa linguagem do dia a dia do amor, da raiva, do ódio, e que transmitiam uma certa ironia. Quando falei com a Manuela [de Freitas] para explorar esse lado, ela escreveu logo um fado fantástico, 'A guerra das rosas'. E outro para o Fado Louco do Marceneiro, o 'Último recado', em que eu canto no fundo a raivinha que fica ali, com a tal ironia ["Tudo o que tinha levaste/ Nem com a saudade fiquei"]. Por outro lado, sempre achei que naquelas descrições do Linhares Barbosa, do Henrique Rego, do Carlos Conde, havia uma certa influência de alguma poesia, por exemplo, do Cesário Verde. E encontrei um poema dele, 'Lúbrica', que até pela linguagem antiga, altiva, se ajustou bem ao fado Alexandrino."

Esse foi um passo, talvez definitivo, para afinar o conceito. "A partir daí, falei com o Zé Mário [Branco], ele foi compondo algumas músicas." Fados tradicionais? Porque não?

Os fados de Zé Mário

"A primeira vez que eu senti que o Zé Mário poderia fazer um fado tradicional ou ser um fadista à sua maneira foi quando ouvi o 'Fado Penélope', que acho que estava gravado num disco do Carlos do Carmo, e o 'Fado da Tristeza'. Hoje em dia já há fadistas que pedem ao Zé Mário para, com outras letras, revisitarem esses temas."

E ele fez mais um, para este disco. Chamou-lhe Fado Pombal. "Tem uma história engraçada. A letra, 'Porta aberta', é do Luís Viana, que é uma dessas pessoas que foram escrevendo para mim ao longo dos anos. É uma letra lindíssima. E a música tem uma terminação que soa um bocado a fado de Coimbra, mas como não é fado de Coimbra nem fado de Lisboa, embora seja inspirado nos dois, ficou intermédio: Pombal. Já no disco anterior tínhamos feito o fado Paço d'Arcos [lugar do estúdio], porque eu estava a gravar com um fado tradicional, não resultou bem, e ele fez essa música numa hora, com a estrutura de fado de sextilhas. E já muita gente lhe pede para usar essa música."

O disco abre com um poema de amor intenso, "Casa", de David Mourão-Ferreira com música de Alain Oulman. "A Amália cantou 'Sombra', que era para uma mulher cantar, e onde por coincidência algumas frases eram deste poema. Aqui foi uma abordagem diferente: porque é um homem a cantar e porque tem o poema inteiro, que é um soneto. Aborda o lado mais apaixonado do amor, mais dependente. É muito forte."

Para lá da música de Oulman, ou das de José Mário Branco, o disco recorre a vários fados tradicionais. "Há o lado técnico, o saber se são quadras, quintilhas, sextilhas, decassílabos ou alexandrinos. Mas há também o lado emocional, o saber o que se quer transmitir, a mensagem do poema. E cada fado tradicional tem um registo emocional muito próprio, cada um nasceu de determinado estado de espírito. Por exemplo, quando se fala do quotidiano do amor há aqui uma linguagem que eu canto e que não cantaria há dez anos atrás. Nessa altura talvez os meus discos fossem mais introspectivos. Sair de mim para comunicar como se estivesse a contar uma história e transmitir uma série de sentimentos corresponde a um crescimento, a uma maturidade interpretativa."

Há, se quisermos, uma pose teatral. Onde o cantor é já também um actor. Ouçamo-lo, por exemplo n'"A guerra das rosas", fado com letra de Manuela de Freitas e música de José Mário Branco: "Nessa história eu estou a conversar com a pessoa com quem tinha estado, antes de dormir. Sem agressividade, com uma certa distância do que aconteceu." É um exercício que cabe ao intérprete. "Que tem de sair dele próprio o mais possível e entrar no registo emocional do poema, ser verdadeiro. Não deixar que nada do que é seu interfira no mais importante, as palavras. É encontrar, se calhar, um trabalho de actor".

Mas ao mesmo tempo o "actor" tem que passar a emoção das palavras, como se as sentisse de verdade. "Há, sinceramente, uma identificação da minha parte, a nível de sentimentos, com tudo o que está aí. Não é uma identificação muito forte em relação aos factos, embora a tenha com alguns, mas sim em relação aos sentimentos." O tema do amor não é, para Camané, novidade. "Poemas de amor já cantei vários, para mim foi mais difícil passar para o lado da ironia, do ódio. Mas cada fado é uma história." E cada história tem a sua origem. "Uma das pessoas que, para mim, fazem as melhores canções de amor em Portugal, e não é um cantor romântico, é o Sérgio Godinho. Quando pensei neste disco fui logo ter com ele e pedi-lhe uma música. Ele disse que sim, que fazia, mas que eu tinha primeiro que ouvir uma canção". E mostrou-lhe "Emboscadas", do disco "Na Vida Real", de 1986. "Ela foi feita como se fosse um fado e desconstruimos o tema para o transmitir com se fosse meu. Foi dos que mais gostei. Esse e o do Fausto." O de Fausto, "Porque me olhas assim" (do disco "Para Além das Cordilheiras", 1987) surge quase no final do disco e ganhou, também ele, insuspeitados contornos de fado. "Tive as melhores reacções ao tema, toda a gente adorou. Fiquei muito contente."

Um tapete para o infinito


Os separadores de O'Neill, que pontuam o disco, obrigam a pensar na ideia-chave do trabalho: "O Amor é o amor - e depois?!" Como quem diz: vamos ver o que acontece. "O poema é fantástico, diz 'vamos ficar aqui os dois a imaginar, a imaginar?...' Não, vamos é p'ra frente, a ver o que implica isto. E o que implica são coisas  muito distintas: é ódio, é amor, é paixão, é o dia a dia..." Camané canta a frase por três vezes, mas com diferentes enquadramentos musicais, criados por José Mário Branco, em separadores com menos de um minuto (o primeiro tem 20 segundos, o segundo 23, o terceiro 58). "Ele faz a música e os arranjos em função das palavras. Por exemplo, quando eu canto 'Não queria que visses televisão/ em dia de jogos de Portugal', subtilmente está lá o antigo hino da RTP. Quando canto 'foste-me lendo o teu romance de amor' está lá o 'All you need is love'. Não se percebe mas está lá." E no terceiro separador, também de forma subtil, os primeiros acordes soam a uma citação do tema "Ser Solidário".

"Há temas que praticamente sairam à primeira", diz Camané, "até porque nós temos uma relação muito próxima com estes músicos: o José Manuel Neto [guitarra portuguesa], o Carlos Manuel Proença [viola], o [Carlos] Bica [contrabaixo]. Mas, por exemplo, a forma como revisitámos o fado 'Súplica' foi das coisas mais incríveis, porque está lá a melodia toda mas o tema é desconstruído a nível de tempos, ganha outra dimensão. Foi uma das coisas incríveis que o Zé Mário fez, para além de uma série fados, que tem vários: o 'Tanto me faz', 'A guerra das rosas', o Fado Pombal."

O disco fecha também com O'Neill, musicado por José Mário Branco, com o poema "A meu favor", tirado de "No Reino da Dinamarca" (1958), livro marcantíssimo na vida do poeta e também do país. É um tema que musicalmente se desloca para um ambiente entre a balada e o adágio. "Não é um fado mas também não se parece com nada. É uma reflexão muito bonita, uma coisa cinematográfica. E é ao mesmo tempo uma música que reflecte o disco, a série de acontecimentos que ele encerra: 'A meu favor/ tenho o verde secreto dos teus olhos/ algumas palavras de ódio/ algumas palavras de amor/ O tapete que vai partir para o infinito...' Eu acho que a imagem do disco é essa."
Nuno Pacheco


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