Ana Moura: Entrego-me a cada concerto como se fosse o último da minha vida
Nasceu no Ribatejo, numa zona de grandes tradições tauromáquicas, e cresceu num ambiente castiço. É aficionada dos touros?
Não. A minha família adora mas para mim ir a uma tourada sempre foi coisa que me fez muita impressão. Fico com pena dos animais. Vivi até aos 13 anos em Coruche, crescendo num ambiente muito musical porque os meus pais nunca fizeram disso profissão mas cantavam e tocavam. Desde que tenho noção de mim que me lembro de passar os fins-de-semana com os meus pais naquelas tertúlias tipicamente ribatejanas, cantar música tradicional portuguesa, fado, de tudo um pouco... Era uma criança muito extrovertida, estava sempre envolvida nas peças de teatro, nas festas... O que eu mudei! Agora sou muito tímida.
O que terá motivado essa mudança?
Talvez a ida para Carcavelos, em plena adolescência. Coruche é um meio muito pequeno, onde toda a gente se conhece, e a minha família era muito acarinhada, precisamente pela ligação à música. Quando o meu pai chegava a qualquer lado com a guitarra todos ficavam contentes. Chegar a Carcavelos foi um choque. É um meio grande, as pessoas não olham umas para as outras. Nos intervalos das aulas estava sempre sozinha – e isso, na adolescência, marca muito. Só mais tarde criei o meu grupo de amigos ali.
E como reagiram eles quando descobriram o seu talento para cantar fado?
Estavam ao meu lado quando eu também o descobri... Fui com eles a um bar e acabei a cantar o fado.
A música sempre fez parte, efectivamente, dos seus planos?
Não tinha um plano mas sempre senti que a minha vida passava por cantar, talvez porque sempre o fiz com muita naturalidade desde menina. Lembro-me de o meu avô dizer, a baloiçar-se na cadeira: 'Um dia esta menina vai ser cantora.' E cresci a acreditar nisso. Houve uma altura, contudo, em que quis ser assistente social, mas hoje penso que não teria estofo suficiente.
É uma pessoa muito emotiva...
Todos os fadistas têm esse lado! Mas não sou uma pessoa frágil.
Aliás, a carreira artística implica muita força interior.
Muita, mesmo. Vive-se muito de noite, ao contrário dos amigos e da família, o que implica aceitar viver em alguma solidão. São as viagens, o sentido de responsabilidade do palco. Cantar também é algo muito desgastante. Eu transpiro imenso, porque me entrego a cada concerto como se fosse o último da minha vida. Se tiver dois concertos em duas noites consecutivas chego a perder dois quilos.
É difícil encontrar com quem partilhar a vida?
Já senti isso muitas vezes. Ou é alguém da mesma área, ou então não compreende.
Tem mantido contacto com os Rolling Stones, com os quais gravou e dividiu o palco no Estádio José Alvalade?
Trocamos contactos, e-mails, e vamos falando de quando em vez. Quando vou actuar aos Estados Unidos também falamos. Aliás, numa das últimas vezes em que actuei na Califórnia estive com eles pois davam um concerto ali perto na mesma noite. Foi muito importante, em diversos aspectos, tê-los conhecido, porque são pessoas fantásticas e que me puseram muito à vontade. Na noite antes do dueto no José Alvalade tinha estado com eles na casa de fados Bacalhau de Molho e foi lá que me convidaram para ir ao concerto mas não para cantar com eles! Quando estava a chegar ao estádio é que recebi um telefonema a perguntar se queria subir ao palco. Foi um momento inesquecível: estava muito nervosa e feliz ao mesmo tempo. Não ensaiámos, tive de improvisar uma melodia dentro da melodia da canção, e cantar com o Mick Jagger, que o faz quatro tons acima de mim... Mas estar naquele palco é uma energia enorme. Quando entrei, o Keith Richards e o Ron Wood começaram a dizer o meu nome, depois foi o público português... Ainda hoje, quando vejo as fotografias nos jornais, vejo a minha cara feliz.
Eles vieram ao Bacalhau de Mollho ouvir fado, certamente. São fãs?
Da Amália, sobretudo. Adoram fado, porque é uma música que está ligada aos blues. E eles tinham muita curiosidade em conhecer uma típica casa de fados.
A casa fechou para eles ou estavam lá mais clientes?
Na sala deles não havia mais ninguém. Ou melhor, só lá estava o embaixador e o staff deles.
Acabou de lançar o seu primeiro DVD, gravado ao vivo nos Coliseus. Actuar nessas míticas salas de Lisboa e Porto era um sonho?
Era um sonho muito grande, como creio que é para qualquer artista português. Depois foram duas noites inesquecíveis: dividi o palco com as minhas três maiores referências no fado (Maria da Fé, Beatriz da Conceição e Jorge Fernando), a plateia estava cheia, as pessoas acompanhavam as canções desde o início. Ainda hoje, quando recordo esses momentos, fico toda arrepiada. E acho que foi essa a intenção do registo: imortalizar duas noites de enorme felicidade.
Costuma dizer que a Maria da Fé é a sua madrinha de fado. Que coisas ela lhe ensinou?
Comecei a cantar na casa de fados dela e tive a sorte de ouvir muitos dos seus ensinamentos. Cantar o fado tem regras, tem os seus próprios rituais, e ela fez questão de me transmitir tudo isso logo no início da minha carreira.
E quando anda lá fora, em digressão, a que rituais obedece?
Sigo o ditado ‘Em Roma sê romano’. Gosto de me embrenhar na cultura, viver como as pessoas de lá vivem, comer o que elas comem. Talvez por isso, dois dos locais que mais me seduziram são bastante longínquos: China e Cuba. Cada país tem o seu encanto, pelas suas diferenças, e cada um toca-me pela sua peculiaridade.
O que nunca falta na sua bagagem?
Antes era a minha almofada, porque tenho problemas de coluna. E nunca me esqueço agora do xaile.
Só tem um ou vários?
Tenho vários mas uso sempre o mesmo. Até já tem buraquinhos. Mandei-o fazer. Comprei a renda na Baixa e foi a minha mãe quem o bordou. Se não o tiver em palco sinto que falta qualquer coisa...
SERÁ O PRIMEIRO NATAL LONGE DE CASA
Neste ano estará a actuar na noite da Consoada...
É verdade. Vou estar num concerto na Holanda, a convite da Orquestra Filarmónica. É um espectáculo de muito prestígio em que até a rainha estará presente.
Vai ser o primeiro Natal longe de casa?
Sim, e está a ser um bocadinho difícil lidar com essa ideia. Inclusive, fiquei triste quando soube da marcação do concerto – aliás, já me convenci de que vai ser uma festa também, porém diferente. Todavia, custa ver a família a fazer os preparativos. A minha sobrinha, que já chegou para passar o Natal connosco...