Amália Rodrigues
Fadistas - Actualizado em Setembro 04, 2021
Uma das figuras mais emblemáticas da cultura portuguesa do século XX, é um farol que baliza toda a evolução do meio musical
português.
Iniciada numa altura em que era através do palco que a
reputação se ganhava e retirando-se em pleno domínio televisivo, a
carreira daquela que foi durante muitos anos a embaixadora cultural de
Portugal acabou por atravessar todas as grandes alterações do mercado
cultural e comercial em que se inseria.
Os mais de cinquenta anos de carreira contínua de Amália são habitualmente divididos em décadas que correspondem, grosso modo, a estágios no seu desenvolvimento artístico. Embora essa divisão tenha inicialmente sido pensada para a sua carreira discográfica, é igualmente transponível para a evolução cronológica da sua actividade artística, com cada década a marcar fases específicas.
A segunda metade dos anos 30 corresponde aos seus tímidos primeiros passos. Uma Amália adolescente (nascera em Julho de 1920) começa a chamar a atenção em concursos amadores dos quais sai invariavelmente convidada para actuações regulares. Contudo, só em 1939 se estreia profissionalmente como fadista, no Retiro da Severa, no ponto inicial da bola de neve que se seguiria.
A década de 40 abrange a sua ascensão a vedeta multidisciplinar. Logo em 1940 Amália é já artista exclusiva do Solar da Alegria e pouco depois estreia-se na revista, onde marcará presença com grande sucesso durante a década, embora sem aí criar muitos dos seus grandes êxitos -- será antes no género irmão, a opereta, que Amália introduzirá clássicos como "Fado do Ciúme" ou "Sabe-se Lá". Os palcos do teatro musicado marcam o seu encontro com Frederico Valério, o primeiro compositor a compreender o alcance da sua voz e a escrever-lhe sob medida melodias que a valorizavam, não se limitando à rigidez do fado.
É também nos anos 40 que Amália sai de Portugal pela primeira vez, a Madrid em primeiro lugar e depois para o Brasil, onde em 1944 e 1945 repete o triunfo português e grava os seus primeiros discos; e que se estreia no cinema, com "Capas Negras" (durante muitos anos o filme português de maior sucesso de sempre) e "Fado -- História de uma Cantadeira".
A década de 50 partilha duas vertentes que de algum modo se alimentam mutuamente: por um lado, começa em 1952 a gravar regularmente, factor importante no alargamento da sua popularidade; por outro, começa a viajar e a actuar um pouco por todo o mundo, atingindo grandes êxitos nas suas passagens por França e pelos EUA, para o que muito contribui a sua presença no filme francês "Os Amantes do Tejo", onde cria "Barco Negro" e "Solidão (Canção do Mar)". É uma década passada quase sempre fora de portas, marcada pelo seu primeiro encontro com David Mourão-Ferreira, poeta que começa a escrever para a sua voz ("Primavera" é a primeira letra, em 1953) e se encarregará de abrir novos horizontes à cantora. O cansaço acumulado levará a um ano sabático, entre 1960 e 1961, durante o qual se ausenta do olhar público.
Por contraste com a década de 50 passada "em viagem", os anos 60 são um período em que Amália se fixa em Portugal e se dedica à sua carreira discográfica. Embora continue a viajar e a actuar por todo o mundo, retorna sempre à base portuguesa e grava, ao longo da década, aqueles que são os seus discos mais marcantes e aclamados, com a ajuda preciosa de David Mourão-Ferreira e do compositor francês Alain Oulman -- que, depois de Frederico Valério e até ao seu repatriamento para Paris pelo governo de Salazar, será o outro melodista a saber explorar a voz de Amália e abrir-lhe novos horizontes. É a década da Amália trágica e amargurada de "Maria Lisboa", "Madrugada de Alfama", "Estranha Forma de Vida", "Abandono", "Povo que Lavas no Rio", "Fado Português", "Gaivota"? Mas também a confirmação de uma Amália alegre e descontraída, bairrista e simples, gravando folclore das Beiras, marchas de Lisboa ou "Vou Dar de Beber à Dor". Amália surge em controlo absoluto da sua voz, que atinge uma riqueza aveludada e um poder evocativo ganho com as décadas anteriores, tornando-se numa intérprete de recursos inesgotáveis.
"Com Que Voz" é a charneira. Este álbum gravado em 1969 e editado em 1970, composto de melodias de Alain Oulman sobre poemas de autores como Camões, Pedro Homem de Mello, Ary dos Santos, David Mourão-Ferreira ou Alexandre O'Neill, é para muitos o ponto mais alto da sua carreira. E não sem razão: encerra uma década de ouro ao mesmo tempo que relança internacionalmente o seu nome.
Forçosamente, os anos 70 são um período de reflexão, em que Amália regressa aos grandes concertos no estrangeiro enquanto, em Portugal e apesar dos êxitos de "Oiça Lá ó Senhor Vinho" ou de mais dois álbuns de folclore, os acontecimentos do 25 de Abril e a revolução nos gostos do público a votam a um fugaz esquecimento. Amália permitira-se antes da Revolução gravar com um saxofonista de jazz -- Don Byas, em "Encontro" -- ou apadrinhar poetas -- editando discos com Vinícius de Moraes, Natália Correia e Ary dos Santos; mas essas "revoluções" estéticas são esquecidas por um Portugal efervescente de liberdade e que identificava o fado com o antigo regime.
Depois do ensaio com "Cantigas numa Língua Antiga", o verdadeiro grande regresso dá-se em 1980 com "Gostava de Ser Quem Era", uma colecção de fados originais com letras da própria cantora. Os anos 80 serão assim os anos da redescoberta da obra de Amália, coincidindo com a edição dos seus últimos discos de material original gravados em estúdio -- "Fado" e "Lágrima" -- e as primeiras afecções das cordas vocais que a obrigam a tratamentos no estrangeiro. Miguel Esteves Cardoso, então o mais ousado e influente crítico musical nacional, elogia Amália nas suas crónicas e, em 1985, duas colecções de êxitos monopolizam as tabelas de venda, quase que forçando um retorno a palco em 1987, com o seu primeiro grande concerto no Coliseu de Lisboa.
Finalmente, os anos 90 serão a década da celebração. Amália surge ainda esporadicamente ao vivo, mas é constantemente requisitada para entrevistas, homenagens, apresentações na televisão, fruindo do seu estatuto de verdadeira lenda viva da música nacional. A sua obra gravada é sistematicamente relançada e antologizada, mas os dois discos de material novo lançados na década -- "Obsessão" e "Segredo" -- recolhem gravações de arquivo até aí inéditas.
Amália deixou-nos em Outubro de 1999, mas deixou connosco a sua música e a sua voz gravada em dezenas de discos que fazem já parte da herança cultural portuguesa.
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Os mais de cinquenta anos de carreira contínua de Amália são habitualmente divididos em décadas que correspondem, grosso modo, a estágios no seu desenvolvimento artístico. Embora essa divisão tenha inicialmente sido pensada para a sua carreira discográfica, é igualmente transponível para a evolução cronológica da sua actividade artística, com cada década a marcar fases específicas.
A segunda metade dos anos 30 corresponde aos seus tímidos primeiros passos. Uma Amália adolescente (nascera em Julho de 1920) começa a chamar a atenção em concursos amadores dos quais sai invariavelmente convidada para actuações regulares. Contudo, só em 1939 se estreia profissionalmente como fadista, no Retiro da Severa, no ponto inicial da bola de neve que se seguiria.
A década de 40 abrange a sua ascensão a vedeta multidisciplinar. Logo em 1940 Amália é já artista exclusiva do Solar da Alegria e pouco depois estreia-se na revista, onde marcará presença com grande sucesso durante a década, embora sem aí criar muitos dos seus grandes êxitos -- será antes no género irmão, a opereta, que Amália introduzirá clássicos como "Fado do Ciúme" ou "Sabe-se Lá". Os palcos do teatro musicado marcam o seu encontro com Frederico Valério, o primeiro compositor a compreender o alcance da sua voz e a escrever-lhe sob medida melodias que a valorizavam, não se limitando à rigidez do fado.
É também nos anos 40 que Amália sai de Portugal pela primeira vez, a Madrid em primeiro lugar e depois para o Brasil, onde em 1944 e 1945 repete o triunfo português e grava os seus primeiros discos; e que se estreia no cinema, com "Capas Negras" (durante muitos anos o filme português de maior sucesso de sempre) e "Fado -- História de uma Cantadeira".
A década de 50 partilha duas vertentes que de algum modo se alimentam mutuamente: por um lado, começa em 1952 a gravar regularmente, factor importante no alargamento da sua popularidade; por outro, começa a viajar e a actuar um pouco por todo o mundo, atingindo grandes êxitos nas suas passagens por França e pelos EUA, para o que muito contribui a sua presença no filme francês "Os Amantes do Tejo", onde cria "Barco Negro" e "Solidão (Canção do Mar)". É uma década passada quase sempre fora de portas, marcada pelo seu primeiro encontro com David Mourão-Ferreira, poeta que começa a escrever para a sua voz ("Primavera" é a primeira letra, em 1953) e se encarregará de abrir novos horizontes à cantora. O cansaço acumulado levará a um ano sabático, entre 1960 e 1961, durante o qual se ausenta do olhar público.
Por contraste com a década de 50 passada "em viagem", os anos 60 são um período em que Amália se fixa em Portugal e se dedica à sua carreira discográfica. Embora continue a viajar e a actuar por todo o mundo, retorna sempre à base portuguesa e grava, ao longo da década, aqueles que são os seus discos mais marcantes e aclamados, com a ajuda preciosa de David Mourão-Ferreira e do compositor francês Alain Oulman -- que, depois de Frederico Valério e até ao seu repatriamento para Paris pelo governo de Salazar, será o outro melodista a saber explorar a voz de Amália e abrir-lhe novos horizontes. É a década da Amália trágica e amargurada de "Maria Lisboa", "Madrugada de Alfama", "Estranha Forma de Vida", "Abandono", "Povo que Lavas no Rio", "Fado Português", "Gaivota"? Mas também a confirmação de uma Amália alegre e descontraída, bairrista e simples, gravando folclore das Beiras, marchas de Lisboa ou "Vou Dar de Beber à Dor". Amália surge em controlo absoluto da sua voz, que atinge uma riqueza aveludada e um poder evocativo ganho com as décadas anteriores, tornando-se numa intérprete de recursos inesgotáveis.
"Com Que Voz" é a charneira. Este álbum gravado em 1969 e editado em 1970, composto de melodias de Alain Oulman sobre poemas de autores como Camões, Pedro Homem de Mello, Ary dos Santos, David Mourão-Ferreira ou Alexandre O'Neill, é para muitos o ponto mais alto da sua carreira. E não sem razão: encerra uma década de ouro ao mesmo tempo que relança internacionalmente o seu nome.
Forçosamente, os anos 70 são um período de reflexão, em que Amália regressa aos grandes concertos no estrangeiro enquanto, em Portugal e apesar dos êxitos de "Oiça Lá ó Senhor Vinho" ou de mais dois álbuns de folclore, os acontecimentos do 25 de Abril e a revolução nos gostos do público a votam a um fugaz esquecimento. Amália permitira-se antes da Revolução gravar com um saxofonista de jazz -- Don Byas, em "Encontro" -- ou apadrinhar poetas -- editando discos com Vinícius de Moraes, Natália Correia e Ary dos Santos; mas essas "revoluções" estéticas são esquecidas por um Portugal efervescente de liberdade e que identificava o fado com o antigo regime.
Depois do ensaio com "Cantigas numa Língua Antiga", o verdadeiro grande regresso dá-se em 1980 com "Gostava de Ser Quem Era", uma colecção de fados originais com letras da própria cantora. Os anos 80 serão assim os anos da redescoberta da obra de Amália, coincidindo com a edição dos seus últimos discos de material original gravados em estúdio -- "Fado" e "Lágrima" -- e as primeiras afecções das cordas vocais que a obrigam a tratamentos no estrangeiro. Miguel Esteves Cardoso, então o mais ousado e influente crítico musical nacional, elogia Amália nas suas crónicas e, em 1985, duas colecções de êxitos monopolizam as tabelas de venda, quase que forçando um retorno a palco em 1987, com o seu primeiro grande concerto no Coliseu de Lisboa.
Finalmente, os anos 90 serão a década da celebração. Amália surge ainda esporadicamente ao vivo, mas é constantemente requisitada para entrevistas, homenagens, apresentações na televisão, fruindo do seu estatuto de verdadeira lenda viva da música nacional. A sua obra gravada é sistematicamente relançada e antologizada, mas os dois discos de material novo lançados na década -- "Obsessão" e "Segredo" -- recolhem gravações de arquivo até aí inéditas.
Amália deixou-nos em Outubro de 1999, mas deixou connosco a sua música e a sua voz gravada em dezenas de discos que fazem já parte da herança cultural portuguesa.
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Eu tento, mas acabo rápido por introduzir mais um dela na minha lista/repertório. Citação