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Lucília do Carmo - Biografias do Fado

Discos - Agosto 07, 2007
Valentim de Carvalho / 1998
"A minha mãe foi uma das fadistas mais importantes deste século". A frase, de Carlos do Carmo, só peca por defeito: na verdade, não foi só deste mas será de todos os séculos, por muitos que passem e por muito bons fadistas que apareçam.

Enquanto for possível preservar as memórias do Fado, o lugar de Lucília do Carmo como grande figura é inquestionável. Nascida em Portalegre, nos finais de 1920, aí ensaiou os primeiros voos, até sentir que os seus dotes seriam mais apreciados em Lisboa. Não se enganou. Deu nas vistas desde logo, estreando-se como profissional apenas com 17 anos e actuando nas melhores casas típicas de então. Casou com o empresário Alfredo de Almeida, homem cultivado e de apurado sentido artístico — era também actor amador — que seria determinante na modelação da excelente matéria-prima que era a voz de Lucília do Carmo, refinando-lhe as qualidades, cuidando das letras, instilando exigência. Em 1947, abriu uma casa de fados que se tornaria histórica, inicialmente chamada "Adega da Lucília", mais tarde "O Faia". A morte prematura do marido deixou, a Lucília do Carmo, uma viuvez assumida para sempre e um filho que assegurou a direcção da casa, antes e depois de se tornar, por mérito próprio, num consagrado intérprete.

No "Faia", Lucília do Carmo não temeu rodear-se (ao contrário de muitas "estrelas") de grandes vozes no elenco: Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos, Tristão da Silva, Maria José da Guia, Beatriz da Conceição, entre muitos outros. A sua personalidade impunha-a, para além de artista, como anfitriã. Foi a penúltima grande dona de uma casa de fados (a última é Argentina Santos). Num contexto quase feudal, à moda antiga, tratada com reverência pelo pessoal, recebia como uma rainha, afável mas distante. Os grandes apreciadores não iam "aos fados", iam "à Lucília". Quando cantava, traçava o xaile de uma forma peculiar, emaranhava os dedos nos cadilhos, torcia-os levemente, semicerrava os olhos e dava primazia à voz, com a maior sobriedade, no que alguém definiu como "um porte de imperatriz". Deixou uma discografia inversamente proporcional ao seu valor. Isto porque era avessa ao estúdio, ao ambiente das gravações, tanto quanto ao palco e às entrevistas.

Quem a quisesse ouvir, em êxtase, era na sua casa. Aí, em duas ou três noites de privilégio, Maria Teresa de Noronha em visita e Alfredo Marceneiro deixavam-se ficar. Depois de sair o último cliente e todo o pessoal, apagavam-se as luzes e fechava-se a porta à chave, por dentro. Apenas com os guitarristas, num recanto da sala vazia, cada um dos três monstros sagrados pedia aos outros o que mais gostava de lhes ouvir. E era a magia de soberbas interpretações, na intimidade de grandes senhores de um género musical único, em partilha, na cumplicidade da ausência de testemunhas. Melhor dizendo, havia duas: José António Sabrosa, marido de Maria Teresa de Noronha, e o ainda adolescente Carlos do Carmo que aí decidiu pertencer também à raça dos eleitos.

Esta "biografia" permite acompanhar a evolução de Lucília do Carmo. As primeiras gravações patenteiam a voz muito clara e fresca da juventude, de tonalidades mais agudas do que mais tarde nos habituou, mas já com a dicção que lhe foi característica, matizando as vogais, arredondando-as, esculpindo-as a partir da vulgaridade de quem fala para as transformar em arte de quem canta. Os seus inconfundíveis "rr", rolados no ápex da língua — e não guturais, como é apanágio da pronúncia de Lisboa traziam a originalidade de se ouvirem pouco nos fadistas da capital. A maturidade trouxe segurança e cunho pessoal à interpretação. Deu-lhe uma voz mais volumosa e quente, até se apresentar ligeiramente velada com o tempo, o que no Fado é enriquecimento, mais uma cor a acrescentar à paleta que os grandes fadistas conseguem usar em plenitude até muito tarde, para regalo de quem os ouve. Constante foi a melhoria de sensibilidade fadista, o saber transmitir estados de alma enfatizando musicalmente a letra, daquela maneira que nem o poeta suspeita ao escrevê-la.

As duas faixas de abertura, gravadas ainda em discos de 78 rotações, em 1958, são já um primor de qualidade, ainda sem grandes arrojos mas perfeitamente reveladoras de que uma voz nova e espectacular havia surgido no Fado de Lisboa. A faixa 2, "Amor Desfeito", mostra uma curiosa transgressão ao Português, exigida pela métrica popular e condescendente, aquele "só tu fostes o culpado". Curiosa, por não ser fruto da ignorância nem do letrista nem da intérprete, logo adiante fiéis às regras em "foste mau, foste cruel". "Foi na Travessa da Palha" (faixa 3), juntamente com "Olhos Garotos" (faixa 4) e "Maria Madalena" (faixa 6, numa gravação posterior) são os primeiros êxitos da Artista, cujas primeiras gravações datam de 1958. Neles Lucília do Carmo se evidencia por adequar as cambiantes melódicas às intenções dos versos, estes provenientes dos melhores letristas que, reparando no seu talento, lhe entregavam as produções, garantia de mútuo sucesso.

Teria sido erro não incluir a "Rapsódia de Fados" (faixa 5) por excessivo escrúpulo dela conter imperfeições. Falamos do desrespeito pelo compasso patente no duplo remate do fado Sem Pernas e na entrada para o Mouraria, de resto soberbamente disfarçado pelos guitarristas. São faltas desculpáveis pelo arrebatamento da interpretação, em que o fadista muitas vezes não espera pelos guitarristas e deixa escapar os versos ou os prolonga um pouco mais porque a alma assim lho pede. Uma biografia é isso mesmo, o retrato tão fiel quanto possível de uma carreira. E esta rapsódia é, isso sim, uma portentosa manifestação do talento de Lucília do Carmo, a merecer análise mais detalhada.

Para começar, é uma peça muito difícil, pois são vários fados num só, muito diferentes uns dos outros, havendo até mudanças de tom entre eles. A concentração para produzi-los tem de ser enorme e Lucília do Carmo consegue tratá-los, um por um, de uma forma superior. A letra muito castiça de Linhares Barbosa ajuda a identificá-los, pois menciona quase todos. Em contraste com o "triste Fado Menor" de abertura, o arranque vibrante e pleno de garra daquele "Guitarra toca o Corrido" é, só por si, um paradigma. Opõe-se-lhe a suavidade com que é abordado o "Dois Tons". E que dizer do "Devagar, guitarra amiga..." que inicia o Sem Pernas? O Mouraria, arrastado como compete, é a prova de que se canta diferentemente do Corrido e não é só o desenho melódico da guitarra (aqui a fazer um Mouraria Antigo) que lhe determina a casta. Fado raro, pouco ouvido, é o fado Macau, dando suporte à letra do "Manjerico" (faixa 8) e mostrando-nos uma Lucília do Carmo tão à-vontade nos fados saltadinhos e vivos como nos fados lentos. Chegamos a "Não Voltes à Minha Porta" (faixa 13), uma belíssima letra de Frederico de Brito, a surpreender pelo inesperado conceito com que termina cada sextilha. Pedra de toque para avaliar fadistas, a "Marcha do Marceneiro" tem nesta interpretação de Lucília do Carmo uma das suas mais elevadas expressões. A alternância entre os timbres doces e ásperos, o domínio da dinâmica vocal, das suspensões, podiam ser matéria de estudo, se a houvesse, para novos fadistas.

"Madragoa" (faixa 4), outro ponto alto desta biografia, da carreira da Artista e da História do Fado é um monumento comovente a um bairro, àquilo que deve ser uma letra de fado, a uma voz que sabemos não ter substituta. Ouve-se com a certeza de que mais ninguém cantará este fado como ela cantou. O crescendo de qualidade que José Pracana teve o cuidado de garantir nesta compilação conduz-nos à talvez maior e mais emblemática criação de Lucília do Carmo: "Maria Madalena" (faixa 16). Fazendo parte já do seu segundo disco, esta letra de Gabriel de Oliveira foi regravada em melhores condições dez anos depois, em 1968. Num fado antigo e tradicional, o Mouraria, é inolvidável a impressão que nos causa e, por muitas vezes que se oiça, cada vez se gosta mais.

"Tia Dolores" (faixa 7) combina-se bem com a fase da vida em que Lucília do Carmo a cantou. Com a autoridade de mãe, com uma ou outra ruga na voz dos 48 anos, com todo o calor aveludado do seu timbre único, oferece-nos um Linhares Barbosa originalíssimo no tratamento do tema, por ela transformado em êxito.
Melhor técnica de gravação, apuro de guitarristas da melhor craveira, "Leio em Teus Olhos" (faixa 19) é de 1971: era um dos temas que Maria Teresa de Noronha e Alfredo Marceneiro sempre lhe pediam que cantasse, quando a iam ouvir. A despedida é feita com "Zé Maria" (faixa 20), um fado-marcha, popular, santantonino, de que Lucília do Carmo não foi cultora mas nos deixou como brinde.

Uma palavra para a poética escolhida por esta grande intérprete. À parte algumas letras dedicadas a Lisboa ("Madragoa", "Sete Colinas") e a um ou outro fado descritivo ("Naquela Azenha Velhinha", "Tia Dolores"), Lucília do Carmo cantou principalmente o Amor. Com toda a alma feminina, um amor-drama, contrariado, traído ou impossível, mas sempre intenso. Como em poucos vultos do Fado, o casticismo, a energia austera do seu "estilar" atenuou a fronteira entre fado tradicional e fado-canção. Cultivou os dois, com raro acerto e, sobretudo, com superior bom gosto.»
Daniel Gouveia


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