Maria Teresa de Noronha - O melhor de...
Discos - Janeiro 07, 2009
Maria Teresa de Noronha foi uma
figura incaracterística no meio do fado. Não lhe correspondeu nas
desgraças amorosas, na miséria quotidiana, ou até no protagonismo de
concursos ou casas de fado.
A sua condição social determinou mesmo que
fosse intitulada a "voz aristocrática" do fado. Mas no fado não existe
hierarquia e todos padecem o seu sentido funesto: "Cansada de ter
saudade/ tudo fiz para esquecer/ e hoje tenho saudade/ de saudade já
não ter". Iniciando-se como cantora no coro de Ivo Cruz, onde cantava
com o irmão D. Vasco de Noronha, Maria Teresa de Noronha moldou o seu
talento como lhe convinha a condição: cantando quando queria, recusando
os compromissos, a submissão a uma "carreira". Gravou muito, tanto para
editoras como para rádio, cantava em concertos de beneficência, em
iniciativas diplomáticas ou quando a cumplicidade a fazia aceder. Era
uma amadora. Mas preparava o seu trabalho com rigor e exigência, como
lembra o seu sobrinho e também fadista Vicente da Câmara: "Trabalhava
como uma profissional. Nunca seguiu carreira, nunca fez grandes coisas
no estrangeiro, mas o que fazia na Emissora [Nacional] eram coisas com
muito profissionalismo."
Gravou o primeiro disco — "O Fado dos Cinco Estilos" — em 1939, tinha então 20 anos, exactamente para a Emissora Nacional. Vaticinando a sua "carreira" de recusas, em que actuou tanto menos quanto mais eram os admiradores e os pedidos, o single foi impresso ao contrário, sendo a leitura feita da parte de dentro para a extremidade do disco. Em 1946 cantou no Brasil, na sequência do voo inaugural da TAP Lisboa-Rio de Janeiro. Três anos depois casava-se com José António Sabrosa, conde de Sabrosa, e as suas actuações tornaram-se ainda mais esparsas. "Não havia imposições familiares, só que naquele tempo não era costume. Uma senhora cantar na Emissora era uma coisa quase que mal vista. Quando apareceu a cantar, havia um certo receio. Não da família, que sobre esse aspecto era bastante aberta, não pensava nada disso, mas não era costume. A ideia era que os artistas eram tidos como uma classe depravada, com mau carácter", recorda Vicente da Câmara.
José António Sabrosa é autor de alguns dos fados que Maria Teresa de Noronha cantava e era um executante considerado de guitarra: "Tocava guitarra muito bem, mas, curiosamente, ela não gostava da maneira dele a ‘apanhar’." Apesar de ser um "músico extraordinário Maria Teresa de Noronha preferia escutar o marido a cantar com ele. Assim, depois de Fernando Pinto Coelho e Abel Negrão, os seus habituais acompanhantes foram os que integram as gravações deste "o Melhor de... ". Temas registados em 1961, "Fado Vianinha", "Alexandrino". "No Amor Não Há Segredos", "Mouraria" ou "Fado João" constituíram as primeiras experiências de gravações estereofónicas, que a Valentim de Carvalho interrompeu durante essa década até 1969, segundo o técnico de som Hugo Ribeiro, quando os discos passaram a ser gravados em Paço d’Arcos. Também nesta antologia se encontram algumas das derradeiras gravações de Maria Teresa de Noronha, que datam de 1972 (os restantes fados desse ano encontram-se no segundo volume). No ano seguinte deixou igualmente de actuar ao vivo. Entrevistas também nunca as dera e preferiu, até morrer (sofria da doença de Parkinson) no dia 5 de Julho de 1993, os aromas de Sintra. "Ficou sempre no fado clássico, nunca deu aquele salto em frente que a Amália deu."
O vínculo à tradição, por parte de Maria Teresa de Noronha, podia comprovar a afirmação de Vicente da Câmara. No entanto, como considerar apenas conservadora a primeira mulher a iniciar-se no fado de Coimbra? Mais do que a conveniência, era um sentido de dignidade — do respeito pelo que era autêntico — o que a movia nas suas convicções: "Nunca cantou fado de revista nem nada disso, o que cantava era o rigoroso, o ‘Corrido’, o ‘Menor’ e o ‘Mouraria’." "No nosso tempo — continua Vicente da Câmara — quem cantava o ‘Corrido’, o ‘Menor’ e o ‘Mouraria’ é que cantava o fado, quem não cantava esses fados era porque não sabia cantar. Mais tarde, as meninas todas vieram cantar os fados da Amália. Já eram fados com música feita, em que não havia improviso." Em "Fado Vianinha" cantou: "Devagar se vai ao longe/ e eu bem vou devagarinho/ vamos ver se me não perco/ nos atalhos do caminho." Os territórios do improviso no fado foram sempre esses, os da "Rosa humilde e perfumada".
Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos ou o próprio Vicente da Câmara, citado nesta página, são alguns dos colegas de Maria Teresa de Noronha que se mantiveram no fado clássico sem concessões. Eram os tempos em que se escutava quem sabia improvisar e, a quem o fazia, exigia-se-lhe "estilo". Qual seria então o estilo de Maria Teresa de Noronha? "Sou essa rosa caprichosa sem ser má", cantou em "Rosa Enjeitada", com poema de José Galhardo. Longe do dramatismo, do virtuosismo ou das provocações maliciosas, Maria Teresa de Noronha infiltrou-se no intervalo em que as guitarras "gemem" para, aí, murmurar as visões permitidas pela sua religiosidade.
Como no poema de José Mariano, em "Pintadinho", quando tão transparentemente canta: "Fiquei na sombra discreta." "Fado da Defesa", que reúne na composição o seu marido e um dos seus poetas favoritos, António Calém, transporta-nos para a compreensão de um tempo amoroso, que é onde reside, distante, a mais frágil e preciosa ideia do fado: "É tão longa a viagem / que só te vejo em miragem / num sonho que não tem fim." Como prova de que, se o fado permite um alento inovador, recusa a mera busca na forma, podendo mesmo constranger-se aos desígnios mais tradicionais para descobrir as veredas em que se acede à saudade, "que é como a luz". "Se o apagar de uma chama/ uma agonia traduz/ no coração de quem ama/ a saudade é como a luz." Em "Minha Luz" Maria Teresa de Noronha explica a vitalidade de um "clássico": é que a paixão tem o fôlego de quem espera pelo futuro.»
Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa",1998
Gravou o primeiro disco — "O Fado dos Cinco Estilos" — em 1939, tinha então 20 anos, exactamente para a Emissora Nacional. Vaticinando a sua "carreira" de recusas, em que actuou tanto menos quanto mais eram os admiradores e os pedidos, o single foi impresso ao contrário, sendo a leitura feita da parte de dentro para a extremidade do disco. Em 1946 cantou no Brasil, na sequência do voo inaugural da TAP Lisboa-Rio de Janeiro. Três anos depois casava-se com José António Sabrosa, conde de Sabrosa, e as suas actuações tornaram-se ainda mais esparsas. "Não havia imposições familiares, só que naquele tempo não era costume. Uma senhora cantar na Emissora era uma coisa quase que mal vista. Quando apareceu a cantar, havia um certo receio. Não da família, que sobre esse aspecto era bastante aberta, não pensava nada disso, mas não era costume. A ideia era que os artistas eram tidos como uma classe depravada, com mau carácter", recorda Vicente da Câmara.
José António Sabrosa é autor de alguns dos fados que Maria Teresa de Noronha cantava e era um executante considerado de guitarra: "Tocava guitarra muito bem, mas, curiosamente, ela não gostava da maneira dele a ‘apanhar’." Apesar de ser um "músico extraordinário Maria Teresa de Noronha preferia escutar o marido a cantar com ele. Assim, depois de Fernando Pinto Coelho e Abel Negrão, os seus habituais acompanhantes foram os que integram as gravações deste "o Melhor de... ". Temas registados em 1961, "Fado Vianinha", "Alexandrino". "No Amor Não Há Segredos", "Mouraria" ou "Fado João" constituíram as primeiras experiências de gravações estereofónicas, que a Valentim de Carvalho interrompeu durante essa década até 1969, segundo o técnico de som Hugo Ribeiro, quando os discos passaram a ser gravados em Paço d’Arcos. Também nesta antologia se encontram algumas das derradeiras gravações de Maria Teresa de Noronha, que datam de 1972 (os restantes fados desse ano encontram-se no segundo volume). No ano seguinte deixou igualmente de actuar ao vivo. Entrevistas também nunca as dera e preferiu, até morrer (sofria da doença de Parkinson) no dia 5 de Julho de 1993, os aromas de Sintra. "Ficou sempre no fado clássico, nunca deu aquele salto em frente que a Amália deu."
O vínculo à tradição, por parte de Maria Teresa de Noronha, podia comprovar a afirmação de Vicente da Câmara. No entanto, como considerar apenas conservadora a primeira mulher a iniciar-se no fado de Coimbra? Mais do que a conveniência, era um sentido de dignidade — do respeito pelo que era autêntico — o que a movia nas suas convicções: "Nunca cantou fado de revista nem nada disso, o que cantava era o rigoroso, o ‘Corrido’, o ‘Menor’ e o ‘Mouraria’." "No nosso tempo — continua Vicente da Câmara — quem cantava o ‘Corrido’, o ‘Menor’ e o ‘Mouraria’ é que cantava o fado, quem não cantava esses fados era porque não sabia cantar. Mais tarde, as meninas todas vieram cantar os fados da Amália. Já eram fados com música feita, em que não havia improviso." Em "Fado Vianinha" cantou: "Devagar se vai ao longe/ e eu bem vou devagarinho/ vamos ver se me não perco/ nos atalhos do caminho." Os territórios do improviso no fado foram sempre esses, os da "Rosa humilde e perfumada".
Alfredo Marceneiro, Carlos Ramos ou o próprio Vicente da Câmara, citado nesta página, são alguns dos colegas de Maria Teresa de Noronha que se mantiveram no fado clássico sem concessões. Eram os tempos em que se escutava quem sabia improvisar e, a quem o fazia, exigia-se-lhe "estilo". Qual seria então o estilo de Maria Teresa de Noronha? "Sou essa rosa caprichosa sem ser má", cantou em "Rosa Enjeitada", com poema de José Galhardo. Longe do dramatismo, do virtuosismo ou das provocações maliciosas, Maria Teresa de Noronha infiltrou-se no intervalo em que as guitarras "gemem" para, aí, murmurar as visões permitidas pela sua religiosidade.
Como no poema de José Mariano, em "Pintadinho", quando tão transparentemente canta: "Fiquei na sombra discreta." "Fado da Defesa", que reúne na composição o seu marido e um dos seus poetas favoritos, António Calém, transporta-nos para a compreensão de um tempo amoroso, que é onde reside, distante, a mais frágil e preciosa ideia do fado: "É tão longa a viagem / que só te vejo em miragem / num sonho que não tem fim." Como prova de que, se o fado permite um alento inovador, recusa a mera busca na forma, podendo mesmo constranger-se aos desígnios mais tradicionais para descobrir as veredas em que se acede à saudade, "que é como a luz". "Se o apagar de uma chama/ uma agonia traduz/ no coração de quem ama/ a saudade é como a luz." Em "Minha Luz" Maria Teresa de Noronha explica a vitalidade de um "clássico": é que a paixão tem o fôlego de quem espera pelo futuro.»
Rui Catalão, in "Os Melhores Álbuns da Música Popular Portuguesa",1998
Artigos Relacionados
Comentar
Alberto Saraiva Citação
Alberto Saraiva Citação