Amália Rodrigues - Segredo
Discos - Novembro 10, 2006
"Segredo" é o último grande álbum de gravações inéditas
de Amália Rodrigues, se bem que realizadas 20 a 30 anos antes,
quando a sua voz estava no apogeu de sublimidade.
"Segredo" é um
disco com doze gravações de estúdio inéditas de Amália no auge absoluto
da sua carreira e na plenitude da sua maturidade artística, entre 1965
e 1975. Dito isto, a presente edição não necessitaria certamente de
qualquer outra justificação.
Mas dito isto, também, surgem desde logo perguntas inevitáveis, a começar, naturalmente, pela mais óbvia de todas elas: de onde vem – e como é possível que só agora, vinte ou trinta anos mais tarde, nos surja – aquele que passa a constituir, em minha opinião, um dos grandes discos de Amália? A resposta está, antes de mais, no verdadeiro ritual que eram, nos anos 60 e 70, as sessões de gravação de Amália nos estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho, experiência que até hoje ficou marcada na memória de todos os que tiveram o privilégio de nelas estarem presentes e cujas descrições tantas vezes ouvi, fascinado.
A própria Amália explica essas sessões no seu estilo pragmático inconfundível: "havia um ambiente de grande amizade. Eu levava o jantar de casa, com carnes minhas, carapaus meus, havia amigos à volta, comíamos e quando começava a gravar estava completamente à vontade e gravava noite fora". E, de facto, quando as gravações começavam estava já criada uma atmosfera de empatia profunda entre ela e esse seu público de amigos fiéis, para quem começava então a cantar com a mesma entrega com que poderia estar em palco, como se os microfones não fossem senão ouvidos de mais um espectador atento.
Amália, como é bem sabido, sempre foi visceralmente incapaz de cantar duas vezes seguidas da mesma maneira o mesmo fado. Por conseguinte, a noção de take, no sentido hoje corrente, da recolha de sucessivas execuções da cada número, susceptíveis de uma posterior operação de retalho e montagem, às mãos de produtores e engenheiros de som, até se chegar à colagem final de uma versão melhorada era, claro está, não só inexistente como impossível.
De um modo geral, ensaiava pouco (ou muitas vezes nada) antes de passar à gravação, como se não quisesse desperdiçar a energia da sua entrega sempre total e precisasse da tensão do tempo real de fita para se concentrar integralmente. Por isso mesmo, cada execução registada era uma versão absolutamente autónoma, longe de ser programada como uma aproximação progressiva a um resultado racionalmente pré-estabalecido, e muito menos como material bruto para posteriores manipulações de estúdio.
Assim se explica que das muitas sessões de gravação realizadas tenha resultado um repertório muito mais extenso do que aquele que acabou por vir a público nos seus discos, abrangendo tantas versões alternativas dos fados neles editados quer, inclusive, obras experimentadas em estúdio e depois deixadas de fora da escolha final de cada álbum. [...] "Segredo" contém, portanto, um pouco de tudo isto, constituindo de algum modo uma espécie de antologia transversal do repertório típico de Amália da década a que se reporta».
É também pertinente citar um belo texto do pianista Nuno Vieira de Almeida, propositadamente escrito para esta edição: «Na história da interpretação musical do nosso século, o nome de Amália Rodrigues é incontornável. Os fados e canções que canta deixam, graças à força da sua interpretação, de pertencer apenas ao domínio da música popular para se transformarem em testemunhos universais dos nossos sentimentos mais profundos.
De todas as intérpretes que conheço, Amália é a única que consegue esta proeza. Analisar o porquê deste facto é difícil, já que o génio não se analisa, e Amália "diz" sempre o que não é possível exprimir senão através da música. Aproveitando o aparecimento deste inadjectivável disco de inéditos, arrisco, mesmo assim, duas ou três pistas. Amália tem, como nenhuma outra, um sentido infalível de "rubato".
O tempo musical para ela nunca é inflexível, e se a sua voz se adianta neste ou naquele momento, de modo a fazer sobressair alguma palavra ou frase musical, tal gesto é imediatamente compensado com um ligeiro "ritardando", de modo a manter orgânico o discurso musical. Conseguir fazer isto sem alterar de forma abrupta o tempo global, sentindo-se apenas o realce pretendido, leva, muitas vezes, a qualquer músico menos dotado, o tempo de uma vida inteira; para Amália, isso é uma evidência.
Uma capacidade única de variar as cores da voz, de acordo com o sentido do poema, é outro atributo de Amália. Colorir as palavras de modo a que mesmo quem não perceba a língua em que se canta possa intuir o seu significado, era uma qualidade fundamental e exclusiva dos grandes cantores de "Lied". Amália chama-a a si, com rara felicidade, chegando mesmo ao ponto de se notar uma diferença de aproximação vocal de fado para fado; veja-se, neste disco, a diferença de atitude entre "Minha Boca Não Se Atreve" e "Amor em Casa".
Se atentarmos no modo como Amália "diz" a palavra "cheiinha" ("cheiinha de frio") do fado "Longe Daqui" – qualquer coisa entre a criança desprotegida e mimada – parece-me que fica clara a noção de colorir a voz. A intensidade dramática conferida a todas as interpretações é outra característica importante, e o final do fado "Primavera", quando Amália repete "ninguém fale em Primavera", é suficientemente explícito deste fenomenal talento.
Mas acima de tudo há essa voz, essa voz de uma beleza única nos seus arremessos de paixão, ironia, tristeza ou ternura, que parece ter-nos habitado sempre, que nos parece ancestral, tal é a força telúrica que a habita. Essa voz que reúne todas as qualidades, sem nenhum defeito, e que, ao unir-se à personalidade artística de Amália Rodrigues constitui, para mim, a prova irrefutável da existência de Deus».
Mas dito isto, também, surgem desde logo perguntas inevitáveis, a começar, naturalmente, pela mais óbvia de todas elas: de onde vem – e como é possível que só agora, vinte ou trinta anos mais tarde, nos surja – aquele que passa a constituir, em minha opinião, um dos grandes discos de Amália? A resposta está, antes de mais, no verdadeiro ritual que eram, nos anos 60 e 70, as sessões de gravação de Amália nos estúdios de Paço d’Arcos da Valentim de Carvalho, experiência que até hoje ficou marcada na memória de todos os que tiveram o privilégio de nelas estarem presentes e cujas descrições tantas vezes ouvi, fascinado.
A própria Amália explica essas sessões no seu estilo pragmático inconfundível: "havia um ambiente de grande amizade. Eu levava o jantar de casa, com carnes minhas, carapaus meus, havia amigos à volta, comíamos e quando começava a gravar estava completamente à vontade e gravava noite fora". E, de facto, quando as gravações começavam estava já criada uma atmosfera de empatia profunda entre ela e esse seu público de amigos fiéis, para quem começava então a cantar com a mesma entrega com que poderia estar em palco, como se os microfones não fossem senão ouvidos de mais um espectador atento.
Amália, como é bem sabido, sempre foi visceralmente incapaz de cantar duas vezes seguidas da mesma maneira o mesmo fado. Por conseguinte, a noção de take, no sentido hoje corrente, da recolha de sucessivas execuções da cada número, susceptíveis de uma posterior operação de retalho e montagem, às mãos de produtores e engenheiros de som, até se chegar à colagem final de uma versão melhorada era, claro está, não só inexistente como impossível.
De um modo geral, ensaiava pouco (ou muitas vezes nada) antes de passar à gravação, como se não quisesse desperdiçar a energia da sua entrega sempre total e precisasse da tensão do tempo real de fita para se concentrar integralmente. Por isso mesmo, cada execução registada era uma versão absolutamente autónoma, longe de ser programada como uma aproximação progressiva a um resultado racionalmente pré-estabalecido, e muito menos como material bruto para posteriores manipulações de estúdio.
Assim se explica que das muitas sessões de gravação realizadas tenha resultado um repertório muito mais extenso do que aquele que acabou por vir a público nos seus discos, abrangendo tantas versões alternativas dos fados neles editados quer, inclusive, obras experimentadas em estúdio e depois deixadas de fora da escolha final de cada álbum. [...] "Segredo" contém, portanto, um pouco de tudo isto, constituindo de algum modo uma espécie de antologia transversal do repertório típico de Amália da década a que se reporta».
É também pertinente citar um belo texto do pianista Nuno Vieira de Almeida, propositadamente escrito para esta edição: «Na história da interpretação musical do nosso século, o nome de Amália Rodrigues é incontornável. Os fados e canções que canta deixam, graças à força da sua interpretação, de pertencer apenas ao domínio da música popular para se transformarem em testemunhos universais dos nossos sentimentos mais profundos.
De todas as intérpretes que conheço, Amália é a única que consegue esta proeza. Analisar o porquê deste facto é difícil, já que o génio não se analisa, e Amália "diz" sempre o que não é possível exprimir senão através da música. Aproveitando o aparecimento deste inadjectivável disco de inéditos, arrisco, mesmo assim, duas ou três pistas. Amália tem, como nenhuma outra, um sentido infalível de "rubato".
O tempo musical para ela nunca é inflexível, e se a sua voz se adianta neste ou naquele momento, de modo a fazer sobressair alguma palavra ou frase musical, tal gesto é imediatamente compensado com um ligeiro "ritardando", de modo a manter orgânico o discurso musical. Conseguir fazer isto sem alterar de forma abrupta o tempo global, sentindo-se apenas o realce pretendido, leva, muitas vezes, a qualquer músico menos dotado, o tempo de uma vida inteira; para Amália, isso é uma evidência.
Uma capacidade única de variar as cores da voz, de acordo com o sentido do poema, é outro atributo de Amália. Colorir as palavras de modo a que mesmo quem não perceba a língua em que se canta possa intuir o seu significado, era uma qualidade fundamental e exclusiva dos grandes cantores de "Lied". Amália chama-a a si, com rara felicidade, chegando mesmo ao ponto de se notar uma diferença de aproximação vocal de fado para fado; veja-se, neste disco, a diferença de atitude entre "Minha Boca Não Se Atreve" e "Amor em Casa".
Se atentarmos no modo como Amália "diz" a palavra "cheiinha" ("cheiinha de frio") do fado "Longe Daqui" – qualquer coisa entre a criança desprotegida e mimada – parece-me que fica clara a noção de colorir a voz. A intensidade dramática conferida a todas as interpretações é outra característica importante, e o final do fado "Primavera", quando Amália repete "ninguém fale em Primavera", é suficientemente explícito deste fenomenal talento.
Mas acima de tudo há essa voz, essa voz de uma beleza única nos seus arremessos de paixão, ironia, tristeza ou ternura, que parece ter-nos habitado sempre, que nos parece ancestral, tal é a força telúrica que a habita. Essa voz que reúne todas as qualidades, sem nenhum defeito, e que, ao unir-se à personalidade artística de Amália Rodrigues constitui, para mim, a prova irrefutável da existência de Deus».
Rui Vieira Nery
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