Amália, Maluda e Moçambique
No essencial, sou um mau moçambicano, pois lá sou branco filho de colono e saí em 75 para estudar em vez de sustentar o gulag moçambicano. E cá, sou um mau português, pois não sou católico, não gosto de futebol e mal tolero o fado (para além duma listinha de coisas que não vem para o caso). Atento, respeito e observo - mas como um outsider.
Bem, de fado abro apenas duas excepções: A Senhora Dona Amália da Piedade Rodrigues e Carlos Paredes . Amália vi uma vez de raspão numa dessas digressões para emigrantes na América do Norte, acompanhada de bacalhau, vinho tinto e saudades, já meio rouca da idade (ah, ainda por cima em vez de vinho prefiro Coca-Cola). Paredes nunca vi, apesar de, com 15 anos a estudar em Coimbra e de estar na fase plena e escapista do Dark Side of The Moon dos Pink Floyd, ter ouvido um dia numa discoteca na baixa da então decrépita cidade académica, uma canção sua que me deixou parado.
Como faz hoje dez anos que Amália nos deixou, outro dia apanhei algures o quadro acima, feito pela pintora Maria de Lurdes Ribeiro, a.k.a. Maluda, que achei interessante e dramático. Maluda pintou este quadro de Amália numa suite do Hotel George V em Paris e a sua pintura e o mero facto de se conhecerem tem tudo que ver com Moçambique.
De facto, sempre me tinham dito que Maluda tinha que ver qualquer coisa com Moçambique, mas não conhecia bem qual a ligação. Passar por lá nos tempos das colónias não basta no meu cardápio e de facto o resumo biográfico que me apareceu na minha rasante pesquisa no Gúgele (Google nos termos do novo Acordo Ortográfico) diz numa miseranda linha que viveu na actual Maputo entre 1948 e 1963, ou seja e fazendo as contas, dos 14 aos 29 anos de idade.
Huum! Curta explicação. Andei às voltas e dei com esta magnífica e muitíssimo mais rica e detalhada descrição dos anos de Moçambique da Maluda e do que porventura isso terá significado para ela, pela mão de Maria de Lurdes Simões de Carvalho.
Amália Rodrigues cantou em Maputo em 1951, num recinto improvisado no Grupo Desportivo, na baixa. O João Maria Tudela, cantor de Uma Casa Portuguesa Com Certeza (poema de Reinaldo Ferreira, música e arranjo de Vasco M Sequeira e Artur Fonseca - ou seja, a gangue do Café Scala estava lá (Tudela ainda está vivo e de saúde em Portugal) bem assim como Vitorino Ribeiro, virtuoso da guitarra de fado e enfermeiro nas horas vagas e que foi meu vizinho durante anos e anos na Rua da Argélia. Ainda me lembro de Vitorino a dedilhar a sua guitarra altas horas da noite.
Para além de um texto absolutamente delicioso de ler, a Maria de Lurdes às tantas escreveu duas frases impagáveis que quase me fizeram rebolar de riso.
A primeira:
“Eça de Queirós criou uma personagem hilariante a quem coube a pasta das colónias e que supunha Moçambique na costa ocidental de África. Quando o corrigiram, proclamou que a situação geográfica da colónia era irrelevante para o bom desempenho do cargo.”
A segunda:
“Sérgio Kamal, colega de Maluda na Guérin, cimentou com ela uma amizade de irmão: depois da independência de Moçambique, tornou-se um homem de negócios, cliente dos grandes hotéis, íntimo dos ministros dos estados africanos francófonos e anglófonos. Em Lisboa, gostava de perguntar, ironicamente, referindo-se a si mesmo: ”Aceitam pretos?” Um dia perguntei-lhe por que razão gostava tanto de Maluda. “Foi a primeira branca que em Lourenço Marques ousou convidar-me para dançar!” respondeu, com uma gargalhada.”
Não querendo tornar este dia num longo registo de Amaliana, (...) quis a divina providência que esta noite, (...) abordasse com um amigo o tema en passant, entre um dúbio e oleoso crepe chinês e um magnífico chop-suey de galinha, regados com uma deliciosamente refrigerada Coca Cola Zero.
Aí descobri que em Lourenço Marques, quando os habituais suspeitos colonial-fascisto-racisto-imperialistas não estavam ocupados a oprimir o bom povo nas redondezas, eram uma verdadeira e alegre tertúlia de fadistas e de guitarristas, o que me surpreendeu, pois lá em casa decididamente imperavam o Frank Sinatra, Óscar Peterson, Nat King Cole e o Walter Wanderley, entre outros. Tocava-se uma balada da Hermínia Silva quando o rei fazia anos.
Já no final do jantar, enquanto bebericava a ritual bica com adoçante, tive a surpresa de ouvir do outro lado da mesa qualquer coisa como “mas sabes, eu até acho que tenho qualquer coisa a ver com isso guardado lá em casa”. Desde logo respondi “ai sim? tens email e scanner em casa? então manda lá o scan, please, se faz favor”. Uma hora depois e graças à mais moderna e barata tecnologia, tive a oportunidade de ver, e de agora poder partilhar em primeira mão, os seguintes mimos. Vitorino Ribeiro era o guitarrista de que falei antes. Aparentemente fez um pouco mais do que dedilhar a guitarra sózinho, alta noite na Rua da Argélia.
Portanto celebro aqui Amália, a única fadista portuguesa que aprendi a
gostar. Com muita Maluda e Moçambique pelo meio. E uma pitada de Eça e
de Sérgio Camal.
Fotos gentilmente cedidas por José Teixeira