A Guitarra Portuguesa
É nas grandes cidades que a Guitarra atinge a sua cotação
mais elevada, com a associação ao fado amador dos estudantes de Coimbra
e nas mãos dos mais talentosos guitarristas profissionais do fado de
Lisboa.
Na origem directa da nossa guitarra encontra-se um modelo de Cítara europeia conhecido em Portugal desde o século XVI, filiado na Cítola medieval e referido em várias fontes literárias e representações iconográficas.
Entre as mais conhecidas encontra-se a descrição de Garcia de Resende (cronista, cantor e músico), na “Hida da Princeza D.Beatriz para Sabóia,” relatando uma situação ocorrida em 1521, na qual uma cítara e três violas de arco são embarcadas no navio que transporta a princesa, a de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515-1585) , incluída no rifão popular: “palavras sem obras, cíthara sem cordas...” (Comédia Eufrosina, 1543) e a de Frei Phillipe de Caverel (cronista da embaixada papal que visitou o nosso país em 1582), texto no qual são sumariamente descritos os instrumentos musicais conhecidos dos portugueses da época.
No século XVII, as referências mais interessantes ao uso da cítara entre nós dizem respeito à comunidade clerical, com a conhecida notícia sobre Frei João de S.José Queiroz, clérigo de Barcelos e grande tocador de cítara e com a magnífica escultura em barro polícromo do Retábulo da Morte de S.Bernardo do Mosteiro de Alcobaça (c.1680), a mais importante e detalhada fonte para o estudo da cítara barroca em Portugal.
Além destas fontes foram conhecidos em Portugal os tratados de Michael Praetorius (1619), de Marin Mersenne (1639) e de Athanasius Kircher (1650), todos com capítulos especialmente dedicados ao estudo da cítara europeia, descrevendo afinações, tecendo considerações de ordem técnica e musical e comentários sobre a cotação social do instrumento e dos seus utilizadores.
Em São Paulo, no Brasil, a cítara aparece referida no inventário de Francisco de Leão, realizado em 1632, no qual se indica também que o instrumento, importado de Portugal, custou 480 reis.
No Catálogo da Livraria Real de Música de D.João IV, publicado em 1649, encontramos alguns dos mais importantes livros estrangeiros de Cítara publicados na época, bem como um livro contendo “obras para Cíthara, escritas de mão”, presumivelmente português, infelizmente perdido no Terramoto de 1755.
No início do século XVIII (1712-1715), temos a indicação numa carta de Ribeiro Sanches (famoso cirurgião, cristão-novo e filósofo) de que “meu pai me mandou para a Guarda para aprender a tocar cítara”, facto que atesta a existência de cultores do instrumento também no interior do país. Também temos a notícia nos “Desagravos do Brasil”, (B.N.Ms. B16.23) sobre o Padre João de Lima que tocava na perfeição os instrumentos de corda, tais como: Viola, Cíthara, Theorba, Harpa, Bandurrinho e Rabeca.
O Diccionário de Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Morais e Silva e publicado em Lisboa em 1789, refere a cítara como “instrumento músico de braço mais longo que a viola, com cordas de arame, e trastos de latão uns inteiros e outros até meia largura do braço”, mostrando que entre nós ainda se usava o modelo antigo, com distribuição irregular do trasteado.
Em 1795 é publicado o “Estudo de Guitarra” de António da Silva Leite e nele é mencionada a cítara, a par de outros instrumentos indicados pelo autor como sendo próprios para o acompanhamento musical do canto ou de solos instrumentais.
Este tratado é totalmente dedicado à “Guitarra Inglesa”, instrumento que tendo origem na cítara alemã (que os autores franceses designavam por “Guitare Allemande”) introduzida em Inglaterra no início do século XVIII , tem todavia características muito diferentes da cítara/guitarra portuguesa .
A leitura superficial desta obra tem conduzido alguns autores (com grande responsabilidade no meio musicológico português), a erros grosseiros na determinação das origens da guitarra portuguesa, assumindo estes, sem qualquer justificação organológica, a filiação da nossa guitarra num instrumento com número de cordas, afinação, técnica e estrutura interna totalmente diferente.
A partir do século XIX, apesar de continuarem a ser referidos em diccionários literários e musicais como dois instrumentos distintos (Diccionário de Fonseca e Roquete, 1848, Diccionário de Eduardo Faria, 1849, Diccionário de F.Fétis / José Ernesto d’Almeida, Porto, 1858) a cítara e a guitarra tendem a confundir-se sob mesma designação, vindo gradualmente a “guitarra portuguesa” a adoptar elementos acessórios de um e outro instrumento (p.ex. o cravelhal em chapa de leque).
A desqualificação social da cítara é um facto, referido desde o início do século XIX , (p.ex. em 1820, um tal Manuel Raimundo, mulato, foi preso na Calçada de Santana , em Lisboa , por estar “tocando em uma Cytara numa loja de louça que também vende aguardente” ) e esta situação tornou-a o instrumento ideal de acompanhamento do fado, canção então em voga em meios marginais dos bairros pobres da cidade de Lisboa.
No entanto e sob a nova designação de Guitarra Portuguesa, esta vai sendo gradualmente reabilitada até chegar novamente aos salões burgueses e aos palácios da aristocracia na segunda metade do século.
Na década de setenta já a Guitarra se apresentava em sessões de concerto (Casino Lisbonense, 1873), bem como era obrigatório o seu uso no acompanhamento do fado, entretanto popularizado de norte a sul do país, através dos tocadores e cantadores ambulantes que frequentavam as principais feiras e romarias.
No primeiro quartel do século XX, a guitarra portuguesa coexistia nas zonas interiores do país, no mundo rural, com a chamada “cítara campeira”, designação do tipo de guitarra de pinho com cravelhal em espátula e cravelhas de madeira que acompanhava os recitadores do fado de cordel tão abundante nas nossas feiras. Segundo testemunhos recentes recolhidos por mim na Beira Alta e em Trás-os-Montes, estes tipos mais arcaicos sobreviveram até aos anos 30, nas mãos de moleiros e de artesãos carpinteiros que, nas horas vagas e em dias de festa, reuniam à sua volta verdadeiras tertúlias de poetas-cantadores de fados e romances, improvisando também cantos ao desafio.
Com o incremento do fado e das guitarradas, promovido pelas companhias de discos e de gramofones na década 20/30 e a sua subsequente difusão por todo o país através da rádio (a partir de 1935), a Guitarra Portuguesa tornou-se um instrumento ainda mais presente nos conjuntos instrumentais próprios das funções de baile, nas rusgas do Minho, nas rondas da Beira Alta, em grupos do Douro e de Trás-os-Montes, reforçando o timbre estridente das violas de arame e apoiando o acompanhamento harmónico dos violões.
Mas é certamente nas grandes cidades que a Guitarra atinge a sua cotação mais elevada, com a associação ao fado amador dos estudantes de Coimbra e nas mãos dos mais talentosos guitarristas profissionais do fado de Lisboa.
Da década de 40 até hoje, pouco se fez para modificar os aspectos essenciais da construção da Guitarra, verificando-se no entanto uma gigantesca evolução nas técnicas de execução e no reportório, o qual passou das simples “guitarradas” acompanhadas à viola, para verdadeiros solos de concerto e peças orquestrais com a guitarra em posição solística de destaque.
Assistimos mesmo, a partir da década de 70, a verdadeiras incursões pela música erudita contemporânea, com utilização pontual de meios electro-acústicos e de manipulação electrónica dos sons da Guitarra Portuguesa.
Entre as mais conhecidas encontra-se a descrição de Garcia de Resende (cronista, cantor e músico), na “Hida da Princeza D.Beatriz para Sabóia,” relatando uma situação ocorrida em 1521, na qual uma cítara e três violas de arco são embarcadas no navio que transporta a princesa, a de Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515-1585) , incluída no rifão popular: “palavras sem obras, cíthara sem cordas...” (Comédia Eufrosina, 1543) e a de Frei Phillipe de Caverel (cronista da embaixada papal que visitou o nosso país em 1582), texto no qual são sumariamente descritos os instrumentos musicais conhecidos dos portugueses da época.
No século XVII, as referências mais interessantes ao uso da cítara entre nós dizem respeito à comunidade clerical, com a conhecida notícia sobre Frei João de S.José Queiroz, clérigo de Barcelos e grande tocador de cítara e com a magnífica escultura em barro polícromo do Retábulo da Morte de S.Bernardo do Mosteiro de Alcobaça (c.1680), a mais importante e detalhada fonte para o estudo da cítara barroca em Portugal.
Além destas fontes foram conhecidos em Portugal os tratados de Michael Praetorius (1619), de Marin Mersenne (1639) e de Athanasius Kircher (1650), todos com capítulos especialmente dedicados ao estudo da cítara europeia, descrevendo afinações, tecendo considerações de ordem técnica e musical e comentários sobre a cotação social do instrumento e dos seus utilizadores.
Em São Paulo, no Brasil, a cítara aparece referida no inventário de Francisco de Leão, realizado em 1632, no qual se indica também que o instrumento, importado de Portugal, custou 480 reis.
No Catálogo da Livraria Real de Música de D.João IV, publicado em 1649, encontramos alguns dos mais importantes livros estrangeiros de Cítara publicados na época, bem como um livro contendo “obras para Cíthara, escritas de mão”, presumivelmente português, infelizmente perdido no Terramoto de 1755.
No início do século XVIII (1712-1715), temos a indicação numa carta de Ribeiro Sanches (famoso cirurgião, cristão-novo e filósofo) de que “meu pai me mandou para a Guarda para aprender a tocar cítara”, facto que atesta a existência de cultores do instrumento também no interior do país. Também temos a notícia nos “Desagravos do Brasil”, (B.N.Ms. B16.23) sobre o Padre João de Lima que tocava na perfeição os instrumentos de corda, tais como: Viola, Cíthara, Theorba, Harpa, Bandurrinho e Rabeca.
O Diccionário de Rafael Bluteau, reformado e acrescentado por Morais e Silva e publicado em Lisboa em 1789, refere a cítara como “instrumento músico de braço mais longo que a viola, com cordas de arame, e trastos de latão uns inteiros e outros até meia largura do braço”, mostrando que entre nós ainda se usava o modelo antigo, com distribuição irregular do trasteado.
Em 1795 é publicado o “Estudo de Guitarra” de António da Silva Leite e nele é mencionada a cítara, a par de outros instrumentos indicados pelo autor como sendo próprios para o acompanhamento musical do canto ou de solos instrumentais.
Este tratado é totalmente dedicado à “Guitarra Inglesa”, instrumento que tendo origem na cítara alemã (que os autores franceses designavam por “Guitare Allemande”) introduzida em Inglaterra no início do século XVIII , tem todavia características muito diferentes da cítara/guitarra portuguesa .
A leitura superficial desta obra tem conduzido alguns autores (com grande responsabilidade no meio musicológico português), a erros grosseiros na determinação das origens da guitarra portuguesa, assumindo estes, sem qualquer justificação organológica, a filiação da nossa guitarra num instrumento com número de cordas, afinação, técnica e estrutura interna totalmente diferente.
A partir do século XIX, apesar de continuarem a ser referidos em diccionários literários e musicais como dois instrumentos distintos (Diccionário de Fonseca e Roquete, 1848, Diccionário de Eduardo Faria, 1849, Diccionário de F.Fétis / José Ernesto d’Almeida, Porto, 1858) a cítara e a guitarra tendem a confundir-se sob mesma designação, vindo gradualmente a “guitarra portuguesa” a adoptar elementos acessórios de um e outro instrumento (p.ex. o cravelhal em chapa de leque).
A desqualificação social da cítara é um facto, referido desde o início do século XIX , (p.ex. em 1820, um tal Manuel Raimundo, mulato, foi preso na Calçada de Santana , em Lisboa , por estar “tocando em uma Cytara numa loja de louça que também vende aguardente” ) e esta situação tornou-a o instrumento ideal de acompanhamento do fado, canção então em voga em meios marginais dos bairros pobres da cidade de Lisboa.
No entanto e sob a nova designação de Guitarra Portuguesa, esta vai sendo gradualmente reabilitada até chegar novamente aos salões burgueses e aos palácios da aristocracia na segunda metade do século.
Na década de setenta já a Guitarra se apresentava em sessões de concerto (Casino Lisbonense, 1873), bem como era obrigatório o seu uso no acompanhamento do fado, entretanto popularizado de norte a sul do país, através dos tocadores e cantadores ambulantes que frequentavam as principais feiras e romarias.
No primeiro quartel do século XX, a guitarra portuguesa coexistia nas zonas interiores do país, no mundo rural, com a chamada “cítara campeira”, designação do tipo de guitarra de pinho com cravelhal em espátula e cravelhas de madeira que acompanhava os recitadores do fado de cordel tão abundante nas nossas feiras. Segundo testemunhos recentes recolhidos por mim na Beira Alta e em Trás-os-Montes, estes tipos mais arcaicos sobreviveram até aos anos 30, nas mãos de moleiros e de artesãos carpinteiros que, nas horas vagas e em dias de festa, reuniam à sua volta verdadeiras tertúlias de poetas-cantadores de fados e romances, improvisando também cantos ao desafio.
Com o incremento do fado e das guitarradas, promovido pelas companhias de discos e de gramofones na década 20/30 e a sua subsequente difusão por todo o país através da rádio (a partir de 1935), a Guitarra Portuguesa tornou-se um instrumento ainda mais presente nos conjuntos instrumentais próprios das funções de baile, nas rusgas do Minho, nas rondas da Beira Alta, em grupos do Douro e de Trás-os-Montes, reforçando o timbre estridente das violas de arame e apoiando o acompanhamento harmónico dos violões.
Mas é certamente nas grandes cidades que a Guitarra atinge a sua cotação mais elevada, com a associação ao fado amador dos estudantes de Coimbra e nas mãos dos mais talentosos guitarristas profissionais do fado de Lisboa.
Da década de 40 até hoje, pouco se fez para modificar os aspectos essenciais da construção da Guitarra, verificando-se no entanto uma gigantesca evolução nas técnicas de execução e no reportório, o qual passou das simples “guitarradas” acompanhadas à viola, para verdadeiros solos de concerto e peças orquestrais com a guitarra em posição solística de destaque.
Assistimos mesmo, a partir da década de 70, a verdadeiras incursões pela música erudita contemporânea, com utilização pontual de meios electro-acústicos e de manipulação electrónica dos sons da Guitarra Portuguesa.
Pedro Caldeira Cabral
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