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Amália na URSS, 40 anos depois

“Que significa cativar?” perguntou o principezinho à raposa. “Significa criar laços, que é uma coisa de que toda a gente se esqueceu.” Amália Rodrigues faria este mês 94 anos.

No dia 1 ou no dia 23 – como ela própria disse, ligaram tão pouca importância ao acontecimento que nem se deram ao trabalho de anotar a data exacta. Mas os laços que criou, a poesia da voz e na voz de Amália perduram, longos, no tempo e no espaço.

Natália Rumiantseva, bibliotecária em São Petersburgo, deixou-se cativar por essa poesia. Natália não se identifica com a música pop ou rock, diz. E, na sua busca por outras sonoridades, encontrou um dia um CD de Amália, e foi uma revelação. “Talvez para os Portugueses seja normal, nascem dentro desta cultura, mas eu descobri esta música há relativamente pouco tempo; quando a ouvi pela primeira vez pareceu-me tão próxima, e mesmo sem saber a língua senti que a compreendia. E, mais tarde, vi que estava certa.”

Em 2006 visitou Lisboa, “para ouvir o fado onde ele tinha nascido”. Sem saber que andava literalmente pelos caminhos de Amália, subiu uma vez a Rua de São Bento. “De repente oiço a voz de Amália, viro-me e vejo uma porta, era um fim de tarde de Agosto e a porta estava aberta, e vejo o retrato de Amália! Que encontro! Fado”, diz Natália, séria e simplesmente, no rosto a expressão de quem sente verdadeiramente o significado daquela palavra.

E conta, com emoção e gratidão, como foi recebida por Estrela Carvas, amiga e confidente de Amália, que hoje vela pela Casa-Museu. “Eu ainda não falava português, ela falava um pouco de inglês. Sensibilizou-me muito a maneira como me recebeu, tão simples e com tão grande amizade, e, com tão grande amor por Amália, me levou em visita guiada pela casa. Numa parede vi referências à passagem de Amália por vários cantos do mundo, mas nada da Rússia. Mas Estrela Carvas disse-me que ela cá tinha estado. Depois, encontrei o livro Amália – Uma biografia, de Vítor Pavão dos Santos, e, na lista das tournées, a informação de que Amália deu, em Maio de 1969, vários concertos na então União Soviética.

“E eu pensei – eu sou bibliotecária, agora regresso a São Petersburgo, pesquiso nos arquivos dos jornais e revistas da época, recolho informação e escrevo cá um destes artigos! Mas, imagine, no princípio não encontrei nada. Mas não desisti. E assim começou a minha investigação.” Entretanto, começou a estudar português, na Faculdade de Filologia da Universidade Estatal de São Petersburgo, para compreender melhor a cultura que sentia tão próxima. “Quanto mais conheço a arte de Amália, mais me impressionam a sua profundidade e beleza. Eu estudei muito a literatura clássica Russa, e, para mim, a arte de Amália está ao mesmo nível. Ela tem essa nobreza de alma que transparece na nossa grande literatura”.

Teve ainda a ideia de procurar pessoas que estiveram presentes naqueles concertos. “A própria Amália disse que Fado é lamento, pranto, e isto está-nos muito próximo. Há fados alegres e fados muitos tristes, sobre a solidão, o medo, mesmo o amor à Pátria. Agora, vivemos em tempo de paz” - Natália fica silenciosa um momento - “mas então, tínhamos passado por uma guerra horrível, quanta dor e sofrimento, em geral todo o século XX parece um pesadelo, a Primeira Guerra Mundial, a Revolução terrível, a Guerra Civil, depois repressão, a Segunda Guerra Mundial, outra vez repressão – horror. E, para além disso, era impossível falar abertamente do próprio sofrimento, chorar abertamente. É um paradoxo da nossa vida.” E por isso se interroga - o que terão as pessoas sentido ao ouvir esta cantora? Como foi o seu encontro com o fado? “A língua era desconhecida, mas aquilo que ela cantava não era possível esconder. O fado fala do que é também o nosso destino, da história da nossa vida.”

Natália tem vindo a construir, com grande sensibilidade, um arquivo-testemunho da arte de Amália, com todo o material que tem encontrado ao longo da sua pesquisa: o programa dos espectáculos na URSS, referências em jornais e revistas da época, uma entrevista que fez a Helena Golubeva - uma das maiores especialistas em língua portuguesa na Rússia, que esteve presente num dos concertos há quarenta anos… Aos poucos, vai traduzindo poemas-fado e artigos sobre Amália em Russo, e partilhando esse material na internet. Um exemplo do requinte com que o faz: na página dedicada à tournée por Leninegrado, o pormenor vai ao ponto de incluir a descrição do estado do tempo nos dias dos concertos.

Natália gostava que na Casa-Museu de Amália aparecessem registos da passagem pela Rússia, e de traduzir, um dia, o livro Amália – Uma biografia em Russo. Mas, mais importante, diz, “é o caminho – fado é caminho”: e continuará a sua viagem de descoberta pela cultura portuguesa, velando para que os laços que Amália criou se tornem realidade para cada vez mais pessoas.
A. L. Simões Gamboa (São Petersburgo) 


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