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Portugal de Fado em sol

Archive - Fevereiro 17, 2007
Ó Fado, ai se não fosse esta dúvida soletrada que a vida mais desgarra, serias balsamo doce, seio de mãe libertada, firme amarra e desamarra...

O Fado, dito de Lisboa, tem três vertentes por onde se estende a decrescer: triste e nostálgico, alegre e humorístico. Há ainda o Fado de Coimbra, concebido com subtil nostalgia e de característica melódica inconfundível em sons e vozes, que se apresenta habitualmente em duas quadras septíssilabas muitíssimo bem elaboradas: uma enuncia a abordagem ao assunto e outra assume o desfecho (arte de doutores).


Para que bem se entenda a abragência e o seu âmplo significado, o Fado domina almejos que estão para o Tango tal como este está para o Paso Doble. É sobretudo um cântico histriónico sério, aprazívelmente nostálgico, espécie de oração melancólica que a si mesma conforta e alivia, ora suavizando, ora empolgando o espírito para estados de êxtase, tanto para quem o canta, como para quem o toca e ouve.


Outrossim, para escapar da fonte donde deveras emana, volta-se de sopetão para alegria e marcha, foge para o folguedo, inverte por completo os dons de fazer-se sentir para dentro e corre, percorre as folias, explode febril a sacudir as vicissitudes espirituais, palmeia, bate o pé e até dança. No auge da festa, solicita então o humor, o descontrolo do sorriso que leva as mãos à barriga. Ocorre-me de momento citar dois grandes mestres na função: Frutuoso França e Neca Rafael.


Em refinado apuro, sempre que o sincronismo das partes intervenientes se consuma, é soer dizer-se: isto sim, isto é Fado! Só entre conhecedores e alguns neutrais convivas, à parte habilidades artísticas, entusiasmos espontâneos ou negaciados cálculos que dão ideia de ser o que não são - a assistência gosta mas não sente enlevo - é que se logra excepcionalmente que o Fado desça pleno ao benquisto redil das almas em comunhão entre a diversidade de sentimentos que as letras, os poemas e os sons interpretados fazem despoletar.


Amália, transportando consigo todas as pormenorizadas emoções cultivadas sob a benquista ambiência do retiro típico, onde Alfredo Marceneiro foi enorme, conseguiu elevar toda essa complexa carga sentimental até ao vazio dos palcos, enchendo-os de lés a lés, milagrando a doação e a atracção espiritual, conduzindo tantas vezes as palmas à indizível quietude do silêncio arfante. A assistência pairava em ovação íntima, que se via nos olhos, nos rostos, nas poses, e o Fado seguinte entrava esplendoroso em térreo-chão de anjos


Hoje em dia, por exemplo, Carlos do Carmo e Mariza são dos intérpretes que conseguem ascender a um patamar superior. Souberam quiçá subir os degraus que separam o humano do endeusamento, atitude assaz muito pessoal que não só no Fado, mas em tudo se pode alcançar, algo muito especial que Fernando Maurício não dominava, o consagrado "rei-sem-coroa" do Fado castiço, do Fado que brota do chão e faz aspergir consoladores sentimentos de conformação perante os dramas da vida.


O Fado é bandeira portuguesa, é arauto de lusa gente, é emissário da mais antiga nacionalidade europeia, é candeia de povo pequeno que se agigantou e foi candelabro, é sustentáculo da saudade nos longícuos lugares onde vivam portugueses e seus descendentes, é trem de manter e divulgar a língua portuguesa. Admira-me que o engenho político de imediato não o considere uma apta alavanca adjacente para ajudar à debelação da crise que perpassa. Já diminuído da vista, coloco os óculos e vejo nitidamente que era só dar uma apertozinho na cravelha azada. Estarei a ver aquém da realidade uma miragem?

António Torre da Guia


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