Mísia: "O fado tem sido banalizado, feito espetáculo de variedades"
Naquele tempo, nos anos 90, havia o fado tradicional, cantado com as mesmas premissas, década após década. Cristalizado no tempo. Raras vozes destoavam dessa sina. Então apareceu a Mísia, o Paulo Bragança. Foi a rutura, o conflito. Novos acordes rítmicos, uma explosão no conceito dos poemas que ditavam as letras do fado novo. Para Mísia escreveram Sérgio Godinho, Vitorino, Saramago, Lobo Antunes. Dos poemas mais belos de amor que se escreveram neste país de tantos poetas. Letras de fados. Estava a dar-se uma revolução no mais vincado instrumento cultural do povo português.
E nada mais foi como dantes...
É verdade, nós nunca fomos consensuais. Ao contrário da nova geração, que é consensual.
Uma geração que tem vozes magníficas.
Magníficas!
Mas vão buscar ao passado demasiados referenciais, e ficam-se por essa segurança.
Há excelentes vozes, mesmo as muito jovens, mas o que estão a fazer
não é muito contemporâneo e comporta pouco risco e pouca reflexão. Não é
culpa dessas pessoas. Imagino que devem ser pressionadas para
aproveitarem o facto de o fado estar na moda.
Como foi esse tempo de rutura, no final do século passado?
Queria-se que fosse marcante. Pelo discurso, pela postura social,
pela imagem. E por uma transformação dos parâmetros do fado, com novas
músicas e, pelo que me cabe, com letras que cortavam com o discurso da
tragédia iminente, da marginalidade e da subalternização da mulher.
Sempre cantei a mulher afirmativa.
Interrompia-se o percurso fadista em que dor, "destino", tragédia eram marcos. Tinham acabado as desgraçadinhas?
Infelizmente não deixaram de existir na sociedade, basta olhar para
os índices da violência familiar. Mas sempre tive o cuidado, para estar
de acordo comigo, em não utilizar a imagem da mulher maltratada e
infeliz, ou de um Portugal miserabilista. O mais subversivo estava na
escolha dos poemas. Talvez as pessoas não reparassem, estavam sempre à
volta da minha franja e da minha minissaia, e era difícil tirá-las dali,
da minha imagem. Cantei em 1993 o primeiro poema que o Jorge Palma fez
para o fado, onde eu dizia "hás de ser meu algum dia". Era eu, a mulher,
a escolher, a mulher "predadora". Lembro também o fado "Ciúmes de um
Coração Operário", fados com títulos desusados. Na altura houve um
choque. Se me tivesse apercebido disso antecipadamente talvez não o
tivesse feito. Foi natural, era a minha personalidade. Avancei com
respeito pelos outros mas sem medo, sem pedir licença aos opinadores do
fado, às "forças" fadistas.
Há tantas forças ocultas no meio?
O público não sabe, mas há lóbis, há pater famílias, poderes
instituídos. E eu avancei só, não por falta de respeito mas por uma
questão de sobrevivência, por precisar de trabalhar. Avancei com o que
sabia e com aquilo em que acreditava.
Marcou com essa atitude.
Sim. Mas não era nada desrespeitosa, friso. Era a atitude de alguém
que sabia porque é que estava a agir assim. Hoje acontece, e não só com a
nova geração, que as fadistas cantam o que é aconselhado pelo produtor,
pelo guitarrista, pelo manager. Outra coisa que chocou, e que
não percebi na altura, é que eu não tinha um homem ao meu lado. Quase
todas as fadistas tiveram o carimbo de aprovação de um nome maior, ou
foram ajudadas por várias pessoas. Era fácil perceber que tudo era
decidido por mim, do que cantava até ao grafismo do disco. Foi uma das
coisas que criou muitos anticorpos no mundo do fado.
E há os poemas. Por exemplo, "Liberdades Poéticas",
do Sérgio Godinho, em que se diz "Meu amor deixou-me um dia/ Pus a mão
na laje fria/ Dei-o assim por enterrado". É fado puro, há dor, perda. E
há uma postura nova de quem recusa ser esmagada pelo destino.
Esse fado foi, dito por especialista, o momento da viragem. Ajudado
por outros fados, claro, com letras inovadoras, através do convite a
pessoas que nunca tinham escrito para fado. E ainda por cima, por acaso,
eram pessoas de esquerda. Vaticinaram-me que ia ser excomungada! Eles
tinham uma linguagem muito contemporânea, mas nunca fugindo aos sinais,
aos signos do fado.
E há a revelação de um novo relacionamento sexual,
contrário àquele em que o homem geralmente é quem se julga que conquista
- é o engate -, onde é raro que se perceba que na maioria das vezes é a
mulher que escolhe entregar-se.
É por isso que os fados cantados por homens ou por mulheres são
muito diferentes, a temática e tudo. Isso é verdade. Neste disco que
acabo de gravar voltei ao papel da mulher, que foi importante no meu
caso, mas também porque estou atenta ao papel da fadista. Porque ela,
como elemento social, era uma mulher que, nos anos 50, ia para a rua
maquilhada, à noite, preparada para cantar (não havia camarins...), e
podia ser incomodada, insultada. Mas quando se levantava e cantava, os
mesmos homens olhavam-na como a uma virgem, uma santa. uma deusa. E
caíam-lhes as lágrimas. Essa transfiguração da mulher para mim é muito
importante.
Nesta geração, que já não tem que confrontar-se com esses estigmas sociais, destaca-se uma nova atitude?
Há a Aldina Duarte, por exemplo - não sei se é da nova geração,
detesto escalonar as pessoas assim -, que tem uma reflexão sobre aquilo
que faz. Não quero cometer injustiças, não citarei mais nomes, mas
muitas das pessoas que hoje cantam fado estão a interpretar uma espécie
de fado balada, de género híbrido. Quem sou eu para dizer isto... mas
baladas nunca cantei. Preocupa-me que se tire a força interpretativa do
fado, que se faça algo fácil e bonitinho para ser acessível. O fado não
tem que ser isso, às vezes tem que ser difícil de ouvir. Fala da vida e
ela não é fácil. Ultimamente o fado tem sido banalizado, feito
espetáculo de variedades com sonoridades que se aplicam só porque é
moderno. Podemos fazer uma coisa errada, mas temos que saber porquê e
dizermos: "Podemos ou não fazer isso? Porque é que o fazemos?" É um
sinal dos tempos, o fado tornou-se uma moda por favor da world music
e eu estou mal situada para fazer comentários, porque estou entre a
Amália e a nova geração, numa terra de ninguém. O meu companheiro, que
era o Paulo Bragança, não está. Portanto, estou sozinha. É visível que
muitos que não gostam do que faço passam diretamente da Amália para os
mais novos e eu nem sequer lá estou.
Naquela altura, sentiu que não havia muita gente a romper as normas? Senti-me muito só. A multidão, a minha multidão, está a chegar agora. O que eu sentia era uma imensa "transparência", uma não existência. Aqui. Às vezes olho para trás e nem sei como é que consegui, mas está feito. Era uma espécie de "não poder pôr portas ao mar". A minha grande força era dizer que não obrigava ninguém, que não prejudicava ninguém. Se me enganasse era comigo, assumiria a responsabilidade fazendo aquilo em que acredito, à minha maneira. Por isso, quando me dizem que tenho mais êxito no estrangeiro do que cá, discordo... porque o êxito não deve ser a medida.
Mas o reconhecimento é algo importante para um artista.
Sim, mas o que há em Portugal e me entristeceu - muita gente diz,
"ai, tu não deves falar disso"... - é que eu não acho que em Portugal
não se goste de mim, acho é que não se conhece o que faço, não teve
visibilidade. Ainda hoje acho que o meu trabalho tem menos visibilidade
aqui do que noutros países.
Essa ferida não está sarada?
Estou decidida a pôr um pano neste assunto. Acho que esta é a última
entrevista em que falo disto, senão cria-se algo para toda a vida, há 20
anos que isto parece um chiclete que pisei e está grudado ao sapato sem
que eu o consiga descolar.
O disco riscado da Mísia mais conhecida no estrangeiro do que na sua terra...
Exato, e já não é tanto assim. Por causa das minhas escolhas
artísticas, éticas, estéticas, de tudo, não sou popular... mas percebo
que, fazendo tais escolhas, é este o resultado. Paga-se, pronto. Também
sei como fazer para que seja de outra maneira. Mas não quero.
Há quem julgue que a sua saída foi uma longa diáspora.
Há. Mas eu vivi aqui até ao ano de 2005. Na cabeça dos portugueses
parece que se interiorizou algo que dizia "se ela faz isto desta
maneira, não pode estar aqui, não é nossa". Se olharmos para o Almada
Negreiros com aquelas calças dadá, não encaixa aqui, vem de um sítio
qualquer. No fundo, terei estado em nenhures. Quando fui viver para
Paris em 2005, então perceberam que eu não vivia lá até àquele momento. E
fui para lá porque estava cansada desse engano. Nunca tinha tido casa
em Paris, nem um quarto alugado! Agora voltei e fico. Mas sou como uma
esponja, sou curiosa, tenho espírito cosmopolita, tenho o espírito de
encontrar a minha cultura no outro e vice-versa, estou em vários sítios
ao mesmo tempo, e isso é que é realmente importante para o meu trabalho.
Como acontece com este disco que está para sair?
Onde encontrei a relação trágica com o destino em temas de flamenco,
em canções japonesas e turcas, a mesma relação trágica com o destino
que existe no fado.
Na sua relação com o "destino" há duas pessoas que lhe marcam o sendeiro da vida: a sua mãe e a sua avó.
A minha avó era uma cantora tipo Mistanguette, que cantava letras
malandras com leitura dupla. Fui educada por mulheres, a minha casa era o
núcleo matriarcal, o meu pai estava ausente, via-o aos domingos. O
ambiente boémio era muito forte, só se falava de coisas de artistas, daí
a minha falta daquilo que se chama naturalidade.
Essa "falta" de naturalidade é a naturalidade da Mísia?
Exato, o que não quer dizer que eu não seja genuína. Sou verdadeira
mas sem a naturalidade da cara lavada, etc. Preciso sempre de ter
qualquer mensagem na maquilhagem, há sempre uma "inscrição"qualquer.
Entre as duas, foi a minha avó que mais me atraiu. A minha mãe
afastou-me no princípio da vida. Achava que ser artista era sofrer, a
minha avó tinha uma atitude diversa. Demarquei-me delas ao escolher o
fado. Por outro lado, foram duas mulheres que acabaram sozinhas... de
momento ainda estou nesse caminho, mas não é obrigatório!
Como é que se decide pelo fado?
Lá em casa ouvia-se fado, o meu pai, português, não era muito disso.
Mas a minha mãe e a minha avó gostavam de Amália, de Maria Teresa de
Noronha, de António dos Santos. Ouvia-se coplas espanholas, Edith Piaf,
mas fado ouvia-se imenso. E comecei a gostar muito de alguns fados que a
Amália cantava. Por acaso eram todos do Alain Oulman. O primeiro fado
que cantei foi "Sombras", que os guitarristas nem sabiam o que era. A
partir daí aproximei-me do fado tradicional. E pronto, eu que queria
estudar Antropologia, de certa forma é o que faço com o fado.
Essa tensão da antropologia provoca-lhe uma atenção que a faz observar, estudar o fado cantando "antes da Amália".
Exato, quando diziam que o fado era da ditadura, sem mais, esqueciam
os fados anarquistas do princípio do século. O Paulo Bragança percebia
muito bem o facto de o fado estar, nesses anos, ligado aos ambientes
lumpen, ao protesto e à rebeldia, à afirmação pessoal. Nas fadistas que
eu mais aprecio incluem-se a Beatriz da Conceição e a Fernanda Maria, um
tipo de mulher afirmativa, muito menos espiritual.
Disse um dia: "A fêmea que eu sou no meu íntimo
contrasta com esta minha imagem limpa de bonequinha japonesa". Quer
explicar melhor?
Eu não disse assim. Li assim, mas não foi isso que eu disse. O que
quero dizer é que esta imagem japonizante, que terá a ver com uma pele
limpinha, disfarça, sobretudo esconde uma grande visceralidade, o que se
nota quando eu canto. As veias incham, vem das entranhas, canto com o
corpo inteiro, costumo dizer que da cintura para baixo também. Portanto,
é cantado com a pele, uma coisa orgânica, visceral. Mas quando se olha
para mim parece que não sou assim, que sou quase seráfica, entende?
De resto, em si há tudo menos passividade.
Uma vez, um jornalista alemão escreveu que é fascinante ver a Mísia
passar de ícone à visceralidade mais extrema. E alguém me disse que os
meus concertos eram muito violentos para o público no sentido emocional,
como num concerto de rock. Há uma entrega e uma demanda. Mas nunca
disse essa frase que me é atribuída, terá sido como o jornalista o
percebeu.
Talvez aconteça como descreve por se tratar, para si, de uma luta. Concordo. Mesmo a minha matriz, na infância, foi uma luta, aquelas coisas que são demasiadamente evidentes... Acho que foi a Bette Davis que disse: "Quando eu morrer ponham no meu epitáfio - Fez tudo da maneira mais difícil." É exatamente isso, mas nem sequer é procurado. É que se for fácil e evidente não me interessa. Tenho que descobrir o caminho. Quando canto fado não é para cantar fado, é para falar da vida e tenho que descobrir esse meu caminho em relação a ela. Se for tudo caminho aberto ou feito por outros, não é o meu.
Por isso o reportório é tão importante.
É verdade... os poemas, os arranjos. O próximo disco tem uns
arranjos! Ninguém vai dizer, canta bem ou canta mal, nem é isso que eu
quero, o que quero é fazer sentir. A Mísia não é só imagem, por amor de
Deus! Podem não gostar do reportório, dos poemas, dos arranjos, mas se
escolhem fixar-se na imagem, a responsabilidade é vossa! Há muito mais. O
essencial não é a minha imagem.
O que é um disco de fado ou um outro que é menos de fado? Há uma barreira? Como se decide?
Um disco de fado tem que ser feito com temas que falem de coisas como a
morte e o destino. Pode-se fazê-lo de várias maneiras, mas não escapa
ter que falar de coisas essenciais à alma humana. E tem que ser cantado
sem pudor, não se pode fazer batota, tem que arriscar-se o próprio
físico.
Fala muito de destino. Eu não acredito nele e é algo que me irrita.
A mim também! Para mim o destino é daquelas coisas que têm que ser
feitas daquela maneira e não podem ser feitas de outra. Não quer dizer
que tivessem que ter sido feitas. O meu destino é sentido um pouco a posteriori:
foi assim porque teve que ser, e não o sacrossanto será assim porque
terá que ser. Fiz-me entender? No meu caso está presente a sensação de
ter de ser assim porque não deve ser de outra maneira. É isso que me dá
força para cantar com quaisquer condições vocais, quase. O destino está
todo lá, o pathos está lá. O que tem que ser, inelutável... Há
uma frase de que gosto muito - talvez até seja minha! (risos) - "o que
eu canto é a continuação do primeiro choro até à última inspiração".
Quais são as suas verdadeiras influências? Digo no fado, digo na vida, na sua construção cultural.
Aquilo que me marcou para ser o que sou foram as minhas vivências de
infância. São essenciais. Depois, sei lá... o Mark Rothko, acho que há
imenso fado nos quadros dele, vida e morte lá dentro. E o Jimmy Scott,
que canta jazz mas é como se cantasse fado. O uso da palavra fado não
como género musical mas como um sentimento. E depois, ir tentando
sempre. Apetece-me fazer muitas outras coisas. E a liberdade de dizer
"já sei que me vou magoar, mas vou por ali." E vou mesmo.
A Mísia é uma resistente.
Sou. Mas já era antes de cantar fado, não foi nada de novo. Sou sim,
uma resistente, uma sobrevivente de uma matriz de dores, de ausências e
de vazio. E o que me feriu mais foi a grande ingenuidade, uma grande
inocência quando comecei a gravar, pois achei que por fim ia ser aceite,
ia conhecer um sentimento de pertença, ia encontrar uma família aqui em
Portugal -uma família cósmica, quase. Não pensei em nada do que devia
ter pensado! Mas, por favor, não me faça parecer uma vítima queixosa,
que não o sou!
Não tenho essa impressão de si.
Agora, não sou uma pessoa que tenha que esconder que houve coisas que me
magoaram. É engraçado que a frase que mais ouço é: "Ah! Antes de a
conhecer julgava que era assim, que era assado."
Voltar a viver em Lisboa significa o quê, do ponto de vista profissional? Havia uma coisa que me irritava quando me diziam que vivia em Paris antes de 2005... Pensava: como é que poderia ter feito "Garra dos Sentidos" ou "Ritual" sem ser em Lisboa? As escolhas que fiz foram todas marcadas por ter vivido em Lisboa. "Ruas" é evidentemente um disco feito de longe. O próximo, que se chama "Senhora da Noite", é, depois de dez anos, o retorno a um disco totalmente de fado. Andei a gravar boleros, tangos - agora há mais gente a gravar, da nova geração... Outra causa do meu regresso foi, de certa forma, a moda e o que ela trazia de banalidade, incomodou-me um bocadinho. Por outro lado, achei que a atenção que essa moda trazia para o fado da parte dos meios de comunicação era boa.
Mas também há o seu novo trabalho.
Após "Ritual", de 2001, vou fazer um disco só com fado. É o retorno ao fado tradicional.
E é totalmente escrito por mulheres.
Escrito por mulheres e, como sempre, o ponto de honra dos meus
trabalhos: as escritoras que estão vivas escrevem especialmente para
este registo, não fui aos livros buscar. Aqui, a mulher não é só
intermediária, intérprete, passa a ser criativa, a nível dos poemas.
O que é que pensa a Susana Aguiar da Mísia?
Acho que me rio muito de mim própria, gosto de brincar comigo, sou
muito palhaça. Mesmo com este ar todo que as pessoas imaginam, sou muito
palhaça. Ela ri-se bastante da Mísia, muito mesmo!