Luísa Rocha - Uma noite de amor
Discos - Janeiro 21, 2011
O disco foi preparado com vagares próprios da grande gastronomia. Sem
uma receita milagrosa e bombástica mas com os melhores ingredientes:
músicos de primeira água, um reportório onde as versões e os temas
originais se equilibram sabiamente...
De repente, este Verão, uma voz desconhecida do grande público entrou nos nossos ouvidos, discreta mas insistentemente, sem ninguém explicar que o futuro do Fado passa por ela ou fazer a lista das inovações que ficaríamos a dever-lhe. Um pouco como antigamente, primeiro chegou a canção; depois, o prazer duma voz. Só agora, finalmente, vem a altura de tirar a fotografia a quem está a cantar.
Chama-se Luísa Rocha. Canta o fado... desde sempre!, profissionalizando-se há uns dez anos e tendo actuado metade desse tempo no Marques da Sé e a outra no Clube de Fado, onde canta regularmente; pelo meio, participou no Festival de Zamora e teve uma pequena actuação ao vivo no filme “Amália”.
Mas nunca teve pressa em gravar. Aprendeu devagarinho; há coisas que se aprendem melhor sem pôr o carro à frente dos bois. E talvez ainda não tivesse gravado se não fosse o entusiasmo dum grande músico, o viola Carlos Manuel Proença, que se apaixonou pela sua voz.
O disco foi preparado com vagares próprios da grande gastronomia. Sem uma receita milagrosa e bombástica mas com os melhores ingredientes: músicos de primeira água, um reportório onde as versões e os temas originais se equilibram sabiamente e um estúdio onde as coisas demoraram o que tinham de demorar, uns temas sendo rapidamente gravados, outros requerendo um pouco mais de tempo para casar as palavras e as músicas, para os arranjos ficarem como devia ser, para a voz servir as palavras, Luísa, discreta e eficaz, sabendo que uma interpretação é apenas tão boa quanto ficar aquilo que se canta – afinal de contas, o que chega até nós e mais profundamente mexe connosco.
O álbum de estreia de Luísa Rocha é uma verdadeira cimeira de guitarristas. Para além de José Manuel Neto, encontramos aqui (só...!) Mário Pacheco, Custódio Castelo e Ricardo Rocha, guitarristas que têm feito ao longo dos últimos quinze anos, como solistas ou como acompanhadores, alguma da mais importante discografia do Fado e da Guitarra. E encontramos também o mais jovem Guilherme Banza que já acompanhou Kátia Guerreiro, Ana Moura e Raquel Tavares.
E encontramos também, Daniel Pinto (baixo acústico) e Luís Clode (violoncelo) e os cantores Tó Cruz e Paulo Ramos, as duas vozes que aparecem de surpresa no 1º single de Luísa Rocha, um fado-canção inédito de Paulo de Carvalho, “Dou-te um Beijo (e Fujo de Ti)”.
Luísa Rocha move-se com o mesmo à-vontade no fado-canção e nos fados tradicionais, nos inéditos e no reportório que foi aprendendo com a sua experiência e com os seus músicos. Na velha criação da hoje injustamente esquecida Maria José da Guia, “Sem Ti”, podemos adivinhar a resposta dum coro, quase em surdina, feito por frequentadores da Revista ou duma Casa de Fados; isto é música para quem sabe. E na adaptação musical de Mário Pacheco para um comovente poema de José Carlos Ary dos Santos, “Na Mesa do Santo Ofício”, fica o registo muito menos tranquilizante de que o Fado sempre pôde ser – também – voz da dor e dos excluídos. Paradoxal? Nada. Será preciso lembrar grandes exemplos de quem soube incluir na mesma voz e nos mesmos espectáculos a maior alegria e o mais profundo sofrimento?
Na selecção de trechos já antes gravados, o dedo de quem conhece vê-se nas escolhas pouco óbvias de algum material recente que não teve todo o destaque que teria merecido. É o caso de “Mar Menor” (António Lobo Antunes/José Luís Tinoco) do álbum “Margens”, que Carlos do Carmo gravou na 2ª metade dos anos 90, Luísa mantendo a elegância de Carlos do Carmo e acrescentando-lhe a sensualidade tranquila da sua voz; ou da faixa que dá o nome ao álbum, “Por uma Noite de Amor”, uma música de Carlos Manuel Proença com letra de Mário Raínho, que Vasco Rafael gravou em ‘94 e que pode muito bem vir a ser o segundo grande êxito deste álbum de estreia.
Não vamos contar aqui o disco todo! É para ouvir; e ninguém se vai arrepender quando o fizer. Mas sempre adiantamos que no meio deste álbum – que flui como se se tratasse dum pequeno espectáculo – temos uma guitarrada que ocupa boa parte da faixa nº 7, “Clave de Sol, Fado e Guitarrada”. Para nossa grande sorte, Neto e Proença não resistiram à tentação. E quando, ao ouvirem o resultado, lhes pareceu que o instrumental tinha ficado demasiado longo foi a vez de Luísa bater o pé e dizer que era assim mesmo que ia ficar. Em boa hora...
O magnífico “Silêncio” fecha o disco, com a inesperada entrada dum violoncelo que sublinha o recolhimento da despedida. Nela se conclui esta prova de fogo que faz de Luísa Rocha uma intérprete que queremos voltar a ouvir.
“Uma Noite de Amor”, produzido por Carlos Manuel Proença e gravado por Fernando Nunes, ouve-se tão bem e tão depressa como se estivéssemos ali, Luísa cantando ao pé de nós. Não se espantem, pois, se alguém trocar o nome do disco e lhe chamar “Um Amor duma Noite”...! David Ferreira