Amália no Olympia
Vítor Pavão dos Santos é biógrafo e amigo de Amália Rodrigues.
Seguiu, praticamente desde criança, a vida e a carreira
da cantora.
Autor de várias obras sobre Amália, recorda, neste artigo
que escreveu para a 10 de Outubro de 1999 (quatro dias após a
morte da fadista), o dia em que a foi ver cantar no Olympia de Paris...
Em 1987, recebi um convite daqueles que não se podem recusar. Era, nem mais nem menos, para ir ao Olympia assistir à estreia de um espectáculo que a Amália faria naquele tão célebre teatro de "music-hall" durante toda uma semana. Nem pensei duas vezes e fui até Paris, onde, como seria de esperar, acabei por ficar os dias todos.
Nesse ano, tinha-se publicado a biografia que eu escrevi de Amália, produto de muitas horas de conversa, durante mais de quatro anos. E tínhamos ficado grandes amigos. Para esse trabalho eu tinha investigado muito o passado artístico da Amália em vários sítios, de Nova Iorque a Paris, passando por Roma, e, claro, muita coisa nos jornais portugueses. Isto para, pelo menos, fixar algumas datas, recolher algumas críticas, já que à Amália nunca interessou guardar nada dessas coisas. E até era lógico, pois o importante para ela era cantar, e o sucesso era sempre tão grande, por todo o mundo, que nunca teve tempo, ainda que tivesse o desejo, que não tinha, de guardar coisas dessas.
Portanto, porque sabia que o Olympia era, para Amália, um lugar muito importante, pois foi dali que, em 1956, partiu para o mundo como uma grande cantora internacional, era lá que a queria ver, embora já tivesse assistido à loucura que desencadeava noutras cidades, como Roma e até em Paris, no prestigiado Théâtre de la Ville, mas nunca no Olympia.
Como fui para Paris dois dias mais cedo, ainda pude assistir aos ensaios, em que a luz se afina e o som se acerta. E a experiência não podia ter sido mais fascinante. Embora Amália ensaiasse muito pouco, ouviria a sua voz dar vida a uma cantiga, que cantava sempre de maneira diferente, num contínuo processo de criação, num crescendo que causava espanto. Amália dizia sempre que gostava de ouvir o primeiro grito, ela que era tão exigente consigo própria, porque então "temos Amália", então o público ia, de certeza, gostar também.
E foi esse grito magnífico, único no canto universal, que a televisão francesa foi uma dessas tardes fiixar, quando Amália cantou "Quando eu era pequenina", uma canção do folclore da Beira Baixa. Uma canção que Amália aprendera em criança, em casa dos avós maternos, com quem viveu até aos 14 anos, quando a família que estava em Lisboa se reunia aos domingos. Mal sabiam eles como essas cantigas, que lhe mitigavam a saudade dos grandes espaços da serra, haviam de um dia correr mundo, levadas pela voz de Amália.
Amália estava sempre bem-disposta, íamos todos jantar e, muitas vezes, as conversas continuavam, já no hotel onde se encontrava instalada, pela noite fora. E eu pedia a Amália para cantar esta ou aquela cantiga. E se ela não se lembrava bem, começava eu a trautear. Então é que era mau, porque sou muito desafinado, e a Amália ficava horrorizada a dizia-me: "Não cante. Não cante. Diga só a letra. É que você tira-me a música." E eu tinha pena de não cantar, mas conformava-me em acreditar que os desafinados julgam todos que cantam bem. E ríamos muito. Isto aconteceu tantas vezes, em tantos sítios. E agora, que me lembro, dá-me uma saudade tão grande pensar que não se vai repetir.
Quando chegou o dia do primeiro espectáculo, as coisas começaram a mudar de figura. Amália, com a sua eterna insegurança, essa insegurança que todos os grandes artistas têm, começou a ficar muito nervosa. Horas antes do início do espectáculo, foi à Igreja da Madeleine recolher-se, rezar um bocadinho, a depois foi a pé até ao Olympia. Como de costume, Amália, com o seu grande profissionalismo, chegava muito cedo ao teatro.
No camarim do Olympia já estava a sua gente, a arranjar tudo, a dispor os móveis, alinhar as jóias, a Lili a engomar os vestidos, sempre uns três ou quatro, para depois, mesmo à beira de entrar em cena, Amália escolher os dois que mais lhe apetecia vestir, um para cada parte do espectáculo.
Desta vez, o maquilhador era um rapaz novo, que trabalhava no cinema, que nunca contactara com a Amália. Ela simpatizou com ele, deixou-o fazer o seu trabalho, mas os últimos retoques eram sempre dados pela Amália. Como ela dizia, gostava de olhar para o espelho e reconhecer-se, nada de exageros. E esse tal rapaz, que tinha de se levantar de madrugada para ir pintar as estrelas do cinema, sentiu por ela tal fascínio que ficou, todas as noites, a assistir ao espectáculo até ao fim. E quando, nesse dia da estreia, apareceu uma "corbeille" de flores tão grande que nenhum dos homens do pessoal de palco do Olympia conseguia movimentar, foi ele que lhe pegou em peso e a levou ao palco, para a depôr aos pés da Amália, por entre as muitas flores que enchiam a cena.
É claro que o espectáculo foi um sucesso tremendo, com toda a gente a aplaudir de pé, a cantar com a Amália as cantigas alegres, como ela gostava, que era a sua maneira de "meter o público no espectáculo". E, depois, a vibrar, naqueles momentos que não é possível explicar, como o "Povo que lavas no rio", em que a sua entrega era total, sempre diferente, sempre mais arrebatadora, em que nenhum público, mesmo sem saber uma palavra daquilo que ela cantava, podia deixar de sentir um arrepio na espinha, em que o génio da grande intérprete se revelava avassalador. E era verdadeiramente de génio que se tratava, um génio bem presente, ali no palco, defronte de nós, sem truques nem técnicas, toda a verdade, fazendo sentir a "piedade e o medo" que definem a tragédia.
Depois, era outra vez a grande artista, a mulher muito bonita, com o seu porte de raínha, o seu vestido sempre enorme, sempre lindo, a Amália que vinha ao nosso encontro, com uma cantiga do folclore português ou uma alegre e bem ritmada canção gitana, para nos aliviar dessa dôr enorme, dessa solidão sem remédio que há pouco nos fizera sentir.
Por fim, quando o espectáculo acabou numa emocionante apoteose, seguiu-se uma fila muito densa de pessoas que se aglomeravam à porta do camarim para a saudar. Havia embaixadores, havia cançonetistas franceses famosos, havia aristocratas a milionários, havia admiradores de longa data, e havia também gente que desde há muito gostava de Amália a não queria perder a oportunidade de estar junto dela, ao menos uma vez na vida, e queria, se possível, pedir-lhe um autógrafo.
Depois, houve uma ceia muito animada. Estava lá o João Belchior Viegas, o Rui Valentim de Carvalho, o Alain Oulmain, o Jean Jacques Lafaye, o Zéni d'Ovar, os guitarristas todos, que ela fazia questão de ter sempre ao pé nestas alturas, e mais uma porção de gente amiga.
Era impressionante como as pessoas reconheciam Amália nas ruas de Paris. Um dia, andei com ela às compras, e Amália, como era muito desprendida, depois de comprar muita coisa, esqueceu-se da mala numa loja. Quando se deu por isso, já estávamos longe. Voltámos para trás, apressadamente, e eis que apareceu um senhor francês, muito distinto, com a mala na mão. "Muito obrigada", disse-lhe Amália. "Eu é que agradeço, Madame, por cantar tão bem."
Nesse dia, Amália tinha uma entrevista às seis horas. Já passava das seis e estávamos nos Campos Elísios, na hora de maior trânsito. Eu achava que não íamos apanhar um táxi. "Isso é que vamos", disse-me Amália. E, de repente, saindo da sua natural timidez, avançou para o meio dos carros e conseguiu um táxi rapidamente.
Como já disse, vi todos os espectáculos dessa temporada. E, no intervalo, ía ao camarim de Amália e dizia coisas que tinha ouvido na assistência. Uma vez, havia um grande grupo de italianos ao pé de mim, eu disse-lhe e Amália cantou uma cantiga italiana para ser amável com eles. Outra vez, era uma rapariga na plateia que morria se não ouvisse uma ranchera, e a Amália cantou o "Fallaste Corazon", que foi de chorar de tanto sofrimento. Na matinée de domingo, a que assistia um membro da realeza teatral, a maravilhosa Edwige Feuillère, o espectáculo começou um bocadinho mais tarde. É que a Pina Bausch e a sua companhia, que actuavam num teatro um pouco afastado, não queriam, nem por nada, perder uma cantiga que fosse.
Passava-se tudo um pouco familiarmente onde quer que Amália cantasse. Era uma grande vedeta, uma das maiores cantoras mundiais, mas o público tinha sempre com ela uma relação mais do que de admiração, era uma espécie de relação de amizade. Nunca me posso esquecer de ter visto, em Roma, no enorme Teatro Sistina a abarrotar de gente, pessoas a correr, a rodear o palco, a pedir-lhe que cantasse mais, a tentar tocar no vestido, a oferecer-lhe braçadas de flores.
Lembrei-me de falar no Olympia por ser um sítio muito importante para Amália. Mas, claro, mais importante era o Coliseu dos Recreios, onde a Amália se sentia melhor do que em qualquer outro lugar. Um destes dias hei-de falar do Coliseu. Agora, resta-nos ouvir os seus discos. O que é muito, o que é quase nada. Porque ela, ela é que não vamos poder voltar a ver.
Em 1987, recebi um convite daqueles que não se podem recusar. Era, nem mais nem menos, para ir ao Olympia assistir à estreia de um espectáculo que a Amália faria naquele tão célebre teatro de "music-hall" durante toda uma semana. Nem pensei duas vezes e fui até Paris, onde, como seria de esperar, acabei por ficar os dias todos.
Nesse ano, tinha-se publicado a biografia que eu escrevi de Amália, produto de muitas horas de conversa, durante mais de quatro anos. E tínhamos ficado grandes amigos. Para esse trabalho eu tinha investigado muito o passado artístico da Amália em vários sítios, de Nova Iorque a Paris, passando por Roma, e, claro, muita coisa nos jornais portugueses. Isto para, pelo menos, fixar algumas datas, recolher algumas críticas, já que à Amália nunca interessou guardar nada dessas coisas. E até era lógico, pois o importante para ela era cantar, e o sucesso era sempre tão grande, por todo o mundo, que nunca teve tempo, ainda que tivesse o desejo, que não tinha, de guardar coisas dessas.
Portanto, porque sabia que o Olympia era, para Amália, um lugar muito importante, pois foi dali que, em 1956, partiu para o mundo como uma grande cantora internacional, era lá que a queria ver, embora já tivesse assistido à loucura que desencadeava noutras cidades, como Roma e até em Paris, no prestigiado Théâtre de la Ville, mas nunca no Olympia.
Como fui para Paris dois dias mais cedo, ainda pude assistir aos ensaios, em que a luz se afina e o som se acerta. E a experiência não podia ter sido mais fascinante. Embora Amália ensaiasse muito pouco, ouviria a sua voz dar vida a uma cantiga, que cantava sempre de maneira diferente, num contínuo processo de criação, num crescendo que causava espanto. Amália dizia sempre que gostava de ouvir o primeiro grito, ela que era tão exigente consigo própria, porque então "temos Amália", então o público ia, de certeza, gostar também.
E foi esse grito magnífico, único no canto universal, que a televisão francesa foi uma dessas tardes fiixar, quando Amália cantou "Quando eu era pequenina", uma canção do folclore da Beira Baixa. Uma canção que Amália aprendera em criança, em casa dos avós maternos, com quem viveu até aos 14 anos, quando a família que estava em Lisboa se reunia aos domingos. Mal sabiam eles como essas cantigas, que lhe mitigavam a saudade dos grandes espaços da serra, haviam de um dia correr mundo, levadas pela voz de Amália.
Amália estava sempre bem-disposta, íamos todos jantar e, muitas vezes, as conversas continuavam, já no hotel onde se encontrava instalada, pela noite fora. E eu pedia a Amália para cantar esta ou aquela cantiga. E se ela não se lembrava bem, começava eu a trautear. Então é que era mau, porque sou muito desafinado, e a Amália ficava horrorizada a dizia-me: "Não cante. Não cante. Diga só a letra. É que você tira-me a música." E eu tinha pena de não cantar, mas conformava-me em acreditar que os desafinados julgam todos que cantam bem. E ríamos muito. Isto aconteceu tantas vezes, em tantos sítios. E agora, que me lembro, dá-me uma saudade tão grande pensar que não se vai repetir.
Quando chegou o dia do primeiro espectáculo, as coisas começaram a mudar de figura. Amália, com a sua eterna insegurança, essa insegurança que todos os grandes artistas têm, começou a ficar muito nervosa. Horas antes do início do espectáculo, foi à Igreja da Madeleine recolher-se, rezar um bocadinho, a depois foi a pé até ao Olympia. Como de costume, Amália, com o seu grande profissionalismo, chegava muito cedo ao teatro.
No camarim do Olympia já estava a sua gente, a arranjar tudo, a dispor os móveis, alinhar as jóias, a Lili a engomar os vestidos, sempre uns três ou quatro, para depois, mesmo à beira de entrar em cena, Amália escolher os dois que mais lhe apetecia vestir, um para cada parte do espectáculo.
Desta vez, o maquilhador era um rapaz novo, que trabalhava no cinema, que nunca contactara com a Amália. Ela simpatizou com ele, deixou-o fazer o seu trabalho, mas os últimos retoques eram sempre dados pela Amália. Como ela dizia, gostava de olhar para o espelho e reconhecer-se, nada de exageros. E esse tal rapaz, que tinha de se levantar de madrugada para ir pintar as estrelas do cinema, sentiu por ela tal fascínio que ficou, todas as noites, a assistir ao espectáculo até ao fim. E quando, nesse dia da estreia, apareceu uma "corbeille" de flores tão grande que nenhum dos homens do pessoal de palco do Olympia conseguia movimentar, foi ele que lhe pegou em peso e a levou ao palco, para a depôr aos pés da Amália, por entre as muitas flores que enchiam a cena.
É claro que o espectáculo foi um sucesso tremendo, com toda a gente a aplaudir de pé, a cantar com a Amália as cantigas alegres, como ela gostava, que era a sua maneira de "meter o público no espectáculo". E, depois, a vibrar, naqueles momentos que não é possível explicar, como o "Povo que lavas no rio", em que a sua entrega era total, sempre diferente, sempre mais arrebatadora, em que nenhum público, mesmo sem saber uma palavra daquilo que ela cantava, podia deixar de sentir um arrepio na espinha, em que o génio da grande intérprete se revelava avassalador. E era verdadeiramente de génio que se tratava, um génio bem presente, ali no palco, defronte de nós, sem truques nem técnicas, toda a verdade, fazendo sentir a "piedade e o medo" que definem a tragédia.
Depois, era outra vez a grande artista, a mulher muito bonita, com o seu porte de raínha, o seu vestido sempre enorme, sempre lindo, a Amália que vinha ao nosso encontro, com uma cantiga do folclore português ou uma alegre e bem ritmada canção gitana, para nos aliviar dessa dôr enorme, dessa solidão sem remédio que há pouco nos fizera sentir.
Por fim, quando o espectáculo acabou numa emocionante apoteose, seguiu-se uma fila muito densa de pessoas que se aglomeravam à porta do camarim para a saudar. Havia embaixadores, havia cançonetistas franceses famosos, havia aristocratas a milionários, havia admiradores de longa data, e havia também gente que desde há muito gostava de Amália a não queria perder a oportunidade de estar junto dela, ao menos uma vez na vida, e queria, se possível, pedir-lhe um autógrafo.
Depois, houve uma ceia muito animada. Estava lá o João Belchior Viegas, o Rui Valentim de Carvalho, o Alain Oulmain, o Jean Jacques Lafaye, o Zéni d'Ovar, os guitarristas todos, que ela fazia questão de ter sempre ao pé nestas alturas, e mais uma porção de gente amiga.
Era impressionante como as pessoas reconheciam Amália nas ruas de Paris. Um dia, andei com ela às compras, e Amália, como era muito desprendida, depois de comprar muita coisa, esqueceu-se da mala numa loja. Quando se deu por isso, já estávamos longe. Voltámos para trás, apressadamente, e eis que apareceu um senhor francês, muito distinto, com a mala na mão. "Muito obrigada", disse-lhe Amália. "Eu é que agradeço, Madame, por cantar tão bem."
Nesse dia, Amália tinha uma entrevista às seis horas. Já passava das seis e estávamos nos Campos Elísios, na hora de maior trânsito. Eu achava que não íamos apanhar um táxi. "Isso é que vamos", disse-me Amália. E, de repente, saindo da sua natural timidez, avançou para o meio dos carros e conseguiu um táxi rapidamente.
Como já disse, vi todos os espectáculos dessa temporada. E, no intervalo, ía ao camarim de Amália e dizia coisas que tinha ouvido na assistência. Uma vez, havia um grande grupo de italianos ao pé de mim, eu disse-lhe e Amália cantou uma cantiga italiana para ser amável com eles. Outra vez, era uma rapariga na plateia que morria se não ouvisse uma ranchera, e a Amália cantou o "Fallaste Corazon", que foi de chorar de tanto sofrimento. Na matinée de domingo, a que assistia um membro da realeza teatral, a maravilhosa Edwige Feuillère, o espectáculo começou um bocadinho mais tarde. É que a Pina Bausch e a sua companhia, que actuavam num teatro um pouco afastado, não queriam, nem por nada, perder uma cantiga que fosse.
Passava-se tudo um pouco familiarmente onde quer que Amália cantasse. Era uma grande vedeta, uma das maiores cantoras mundiais, mas o público tinha sempre com ela uma relação mais do que de admiração, era uma espécie de relação de amizade. Nunca me posso esquecer de ter visto, em Roma, no enorme Teatro Sistina a abarrotar de gente, pessoas a correr, a rodear o palco, a pedir-lhe que cantasse mais, a tentar tocar no vestido, a oferecer-lhe braçadas de flores.
Lembrei-me de falar no Olympia por ser um sítio muito importante para Amália. Mas, claro, mais importante era o Coliseu dos Recreios, onde a Amália se sentia melhor do que em qualquer outro lugar. Um destes dias hei-de falar do Coliseu. Agora, resta-nos ouvir os seus discos. O que é muito, o que é quase nada. Porque ela, ela é que não vamos poder voltar a ver.
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