Jorge Fernando: "Eu pertenço a uma geração que sentiu o estigma da música portuguesa..."
Jorge Fernando esteve à conversa, levantando o véu sobre a sua vida profissional, bem como sobre os segredos por detrás de um fadista de alma e coração.
Palco Principal – O Jorge Fernando tinha um talento nato para o futebol, mas acabou por escolher o caminho da música. O que motivou essa opção?
Jorge Fernando – Na verdade, o que motivou essa opção foi uma hepatite que contraí quando regressava de umas férias na Madeira. Na altura, a hepatite era uma doença que demorava imenso tempo a curar... Hoje, penso que foi uma forma da vida de mostrar o caminho que devia seguir. Acabei por abandonar o futebol profissional, ao qual me dediquei até aos 37 anos de idade.
PP – Desde muito cedo acompanhou o seu avô na música. Por que motivo o fazia?
JF – Desde menino que gostava muito de cantar com o meu avô. Na verdade, eu tinha jeito para actuar, era afinado. Desde muito cedo que tenho essas aptidões. Portanto, quando tive que escolher entre o futebol e a música, esta acabou por levar a melhor. Pelo menos, é uma carreira muito mais duradoura...
PP – Um dia, enquanto ensaiava numa banda de garagem, quis o destino que o fadista Fernando Maurício estivesse nas redondezas. Foi uma coincidência determinante para o rumo da sua vida...
JF – O Fernando é o grande culpado pelo meu regresso ao Fado. Eu, como qualquer outro adolescente, caminhei por outros géneros musicais, até que, por volta dos 15 anos, enquanto ensaiava numa garagem perto de um restaurante com sessões de fados, me vieram dizer: "Anda cá! Está ali o rei do Fado!". E eu lá fui. Quando ouvi o Fernando, qualquer coisa mexeu profundamente comigo. A partir daí, apostei no Fado e nunca mais parei.
PP – Ainda antes dos 20 anos, conhece o guitarrista Alcino Frazão. Ao acompanhá-lo à viola, desperta a atenção do compositor de Amália Rodrigues, que acabaria por lhe abrir as portas para tocar com a fadista. Estava, na altura, consciente da dimensão desta oportunidade?
JF – Não estava nada consciente. Só com o passar de muitos anos, com uma certa distância, é que comecei a perceber a importância que a Amália teve na minha carreira e na minha vida, não só a nível musical, como também social. A Amália era uma pessoa com um conhecimento interminável e eu tive a sorte de aprender com ela.
PP – Como foi acompanhar Amália Rodrigues durante seis anos?
JF – Desde que se estivesse disposto, era interminável a quantidade de coisas que podíamos aprender com ela. Hoje eu percebo o quão privilegiado fui por ter estado ao lado de uma das grandes divas do Fado mundial e tento, sempre que possível, fazer com que essa aprendizagem passe para os tempos de hoje, sobretudo para os mais jovens.
PP – Hoje em dia, são muitos os jovens que cantam o Fado. O Fado está na moda?
JF – Já esteve, efectivamente, na moda. No entanto, nos dias de hoje, o encontro dos jovens portugueses com o Fado é o descomplexar de uma ideia formada. Eu pertenço a uma geração que, ao crescer, sentiu o estigma da música portuguesa, sobretudo do Fado. Na altura, o que vinha de fora era melhor... O que se passa é que estas últimas gerações têm perdido um pouco esse estigma, começando a encontrar-se com a sua música. Afinal, somos igualmente bons, cada um com as suas características.
PP – Nomes como Amália Rodrigues ou, mais recentemente, Mariza e Ana Moura levam o nome de Portugal a paragens mundiais. Há um fascínio dos estrangeiros pelo Fado?
JF – O Fado desperta, de facto, a sensibilidade dos povos estrangeiros, que encontram no género uma profundidade e uma beleza melódica que hoje raramente é encontrada noutros tipos de música. Hoje ouvimos música de consumir e deitar fora. Portugal tem bons compositores, o que cria nas pessoas uma vontade de ouvir coisas que tocam, que são profundas, sobretudo na linguagem entre os sentimentos.
PP – Em 1989, lançou o seu primeiro disco de fados, "Boa Noite Solidão". Como foi ver cá fora o seu trabalho?
JF – Foi inesquecível, uma vez que ainda estava na idade dos sonhos. Hoje, quando lanço um disco, fico feliz por ele chegar às pessoas, por sentir que gostam do meu trabalho. Mas, naquela altura, ainda menino, tinha a forte componente do sonho, ainda não sabia se ia ter uma carreira, apenas estava a correr atrás do futuro, lutando por ele. O disco era o primeiro troféu dessa luta. É um momento único que guardo comigo para sempre.
PP – Em 2003, a cidade italiana de Recanati homenageou-o, em reconhecimento do seu talento…
JF – Recanati é, digamos, a cidade do Camões italiano e decidiu homenagear-me com uma distinção pelo que tenho feito no Fado. Quem não gosta de ver reconhecido o seu trabalho, nomeadamente numa terra de grandes escritores italianos?
PP – Em 2005, celebrou 30 anos de carreira com o lançamento de um novo álbum, intitulado "Memória e Fado", que inclui uma gravação ao vivo de Amália Rodrigues. Foi a sua homenagem à diva do Fado?
JF – Com certeza. Foi uma gravação que fizemos em 1996. Entretanto, a Amália adoeceu e a gravação não foi editada. Não queria que pensassem que me estava a aproveitar do seu talento. Infelizmente, ela viria a falecer mais tarde e então, em 2005, falei com a sua irmã e mostrei-lhe o tema. "É um crime deixar isso na gaveta", disse ela, quando o escutou. Então incluí-o o meu álbum. Mais do que uma homenagem, foi um agradecimento por tudo o que ela representou para mim.
PP – O que mudou no Fado, na última década?
JF – Penso que se pode destacar o aparecimento de novas e grandes vozes.
PP – Como vê a candidatura do Fado a património da humanidade?
JF – É de uma profunda importância para o país. Afinal, trata-se de um género que define um povo.
PP – Ao longo da sua carreira, foram inúmeros os artistas com os quais colaborou. Que diferenças destaca entre os mais antigos e os mais recentes?
JF – Um fadista é sempre um fadista. Um fadista de hoje terá, provavelmente, outras experiências, desejará relatar outras coisas. Penso que será a principal diferença.
PP – Existe um público particular para o fado?
JF – Na minha opinião, há um público particular para determinado tipo de Fado - o chamado Fado mais fundo. Esse fado destina-se ao típico público de uma casa de Fado. Depois há um Fado que, a partir da Amália, se tornou mais abrangente, que é para todo o país, para todo o mundo. Ela provou exactamente isso.
PP – O Jorge Fernando sobe, no próximo dia 22 de Abril, ao palco do Cinema São Jorge, para o espectáculo "Jorge Fernando e os Proscritos". O que nos pode adiantar sobre o evento?
JF – Este espectáculo foi idealizado por uma questão de justiça. Hoje há, sem dúvida, gente que canta muito bem. Mas a verdade é que sempre houve gente que cantou muito bem. O Fado não pode ser visto como algo que começou com a Amália e que termina com as vozes de agora. Pelo meio, houve gente fantástica a cantar, verdadeiras pérolas, como os artistas que me vão acompanhar em palco, os Proscritos. Não vejo, na verdade, quem cante melhor neste país. Acho que há quem cante tão bem quanto eles, mas melhor não. É nesse sentido que levo este espectáculo ao São Jorge: para mostrar, por uma questão de justiça, que há gente com 50, 60 ou 70 anos que canta desta forma.
PP – Na sua opinião, qual a principal característica de um fadista?
JF – É o sentimento, a verdade com que canta, a capacidade de conseguir, através dessa verdade, fazer com que as pessoas que o ouvem sintam exactamente o que ele está a dizer.
PP – Tem algum instrumento de eleição?
JF – Adoro a viola! Toco um pouco de guitarra e viola baixo, mas a viola é, sem dúvida, o meu instrumento de eleição.
PP – Como está a sua agenda para este ano?
JF – Vou fazer uma tournée brevemente. Começará dia 23, em Tróia, e seguirá, dia 30, para Estarreja, para terminar, em dia por definir, na Casa da Música, no Porto. Já que, devido à situação actual do país, as pessoas não podem vir ter connosco a Lisboa, vamos nós ter com elas.
PP – O que podemos esperar do Jorge Fernando num futuro próximo?
JF – Vamos ver... Enquanto não me sentir esgotado, enquanto não perder a vontade de procurar e de inovar, vou estar por aí!
Fonte: Palco Principal José Aguiar