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Nomes há muitos, mas Amália só há uma

Nomes há muitos! Severa houve só uma! Severa, um nome único! Nunca conheci ninguem que se chamasse Severa! Severa é um nome mítico que emana a doçura dum passado distante que, permanentemente, nos invade…

Uma época que muitos de nós gostariamos de ter vivido! E se eu tivera sido Conde? E se eu fôra Vimioso?…
Da Severa, a rainha do fado, não nos ficou o som da sua voz, apenas algumas das suas parcas imagens duma fabulosa época lisboeta e de uma mulher legendária que conquistou Lisboa, dentro e fora de portas.

Amálias há muitas, Rodrigues há muitos, mas Amália há só uma! Como conseguiu Amália prescindir do seu apelido e fazer do seu nome - Amália -  uma quina da bandeira portuguesa, um padrão de Portugal e dos portugueses? Há os que gostam de Amália, os que a idolatram, e há os que a destetam, mas ninguem consegue ficar indiferente ao seu nome! Amália a diva do Fado! A Embaixatriz de Portugal no mundo inteiro! Aquela que depois de Vasco da Gama fez lembrar ao mundo que Portugal não é nenhuma provincia de Espanha! Com Vasco da Gama descobrimos o mundo, com Amália Rodrigues o mundo descobriu Portugal! Mas como começou este mito vivo chamado Amália?

Como alguém disse uma vez: Amália é uma doença contagiosa, incurável! Uma vez contaminado, só a morte o curará de seu doce tormento! Quem é, quem foi Amália? Para mim Amália é uma imagem longínqua da minha infância ou um som que me vem de longe e que me tem acompanhado desde a minha mais tenra idade. Tinha eu cinco anos! Foi em 1940, na Rua do Arco do Carvalhão, na Vila Alberto, que ouvi pela primeira vez essa voz singular, “aquele trinado”, aquele “requebrado” que nos fazia dizer: Ah! Fadista!… Muitos tentaram, mas nunca ninguem a conseguiu imitar!

Nessa manhã de sol em Lisboa, na Rua do Arco do Carvalhão, descobri a Amália e, com ela o Fado! Desde esse manhã, a sua voz tem-me acompanhado sem nunca me ter abandonado. Ela foi a minha alegria num fado corrido e a minha tristeza, a minha amargura, a minha agonia num Fado Victória, onde ela, com a sua voz e o seu talento interpretativo, a sua força e garra, nos transmite a quase tragédia de ser português.

Amália, a imagem trágica da musica portuguesa com a qual melhor nos identificamos. Do dramatismo do fado ao nosso alegre folclore, vivo, colorido, ela melhor que ninguém, sabe dar ao nosso folclore a sua côr local e vivacidade, mas é no fado, no mais profundo de sentimento português que ela se mostra por dentro. Quando é que Amália nasceu? Nem ela própria o sabe! Junho? Julho? Foi em Lisboa em 1920, perto da Mouraria, na freguesia da Pena, num dia ou numa noite das Marchas Populares. Sabemos que pertence ao signo do Leão. Qual é o destino do Leão? Seja qual for, ninguém consegue modificar o destino que nos foi forjado pelas estrelas quando fomos concebidos no ventre materno!

Amália nasceu Leão, nasceu com o seu destino, e o seu destino foi cantar e encantar! Cantar o fado, dar ao fado um destino, outra dimensão! Cantar a música portuguesa, cantar a música universal! De Gershwin a Carlos Gonçalves, Frederico Valério, Alain Oulman, Amália cantou tudo, dando a cada tema por ela cantado, um outro cunho, o cunho fadista, o sabor popular! Para mim, Amália nasceu nessa manhã soalheira de Lisboa, em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. Foi em Abril? Foi em Maio? Foi na Rua do Arco do Carvalhão, ali entre Campolide e o Campo de Ourique. Uma imagem da minha infância em mim eternizada. Ela nasceu comigo e comigo morrerá!

Eu tinha cinco anos. Estava sentado no degrau do chafariz público, ali mesmo por debaixo de um dos arcos do Aqueduto das Aguas Livres, aquele sob o qual passa a Rua do Arco do Carvalhão. Mesmo ao lado havia uma taberna. Essa taberna era uma daquelas espeluncas sombrias das velhas ruas de Lisboa, onde o sol mal entrava, onde havia uma longa mesa cheia de migalhas e dois longos bancos de madeira com nódoas de vinho. Em cima do balcão havia um enorme rádio de madeira castanha com uma oval janelinha coberta de serapilheira. Por baixo dessa janelinha havia tres botões: Um para apagar e acender, outro para procurar a estação, e outro para pôr o som mais alto ou mais baixo.

Desse radio saiam sempre vozes misteriosas e músicas que me faziam sonhar. Nessa altura chamavam-se telefonias. Eu olhava a sua janelinha e ouvia as vozes que de lá saiam. Era a voz do Churchill e os seus longos discursos anti-nazis que eu não compreendia, mas logo a seguir vinha uma música de Glen Miller que me enchia os ouvidos de espanto ou um fado do Marceneiro que fazia calar a clientela. Havia as vozes dos locutores. Quem seriam eles? Maria Leonor? Pedro Moutinho? Era a Emissora Nacional? Uma coisa era certa: Aquilo, para mim, era magia, uma caixinha de surpresas da qual inventei um par de asas para na minha fantasia poder voar ainda mais alto do que os pregões de Lisboa: “Quem quer figos, quem quer almoçar?… Fava Rica!…  Sardinha Fresca!…” Mais alto ainda que o som do badalo do homem da petrolina!

Sentava-me no degrau do chafariz a ver passar as caleches e um “fordezito” de vez em quando. Via os outros rapazes da minha idade a jogar à bola com as suas bolas de trapo feitas duma meia velha e as meninas às janelas, por detras dos vidros a vestir as bonecas, pois que era “feio” as meninas brincarem na rua. Eu, como era rapaz, podia brincar na rua, mas como não tinha bola, sentava-me no degrau do chafariz a brincar com a minha fantasia, a ver as pessoas passar, os homens a assobiar, a ouvir a telefonia da taberna mesmo ao lado, e a ver a Ponte Duarte Pacheco crescer…

Nessa inesquecível manhã, o sol a pino queimava a minha moleirinha, e eu deixava-me embalar pelo som da água do chafariz a chapinhar, a escorrer da torneira mal fechada para dentro do recipiente de cimento por baixo da torneira, onde os cães e os gatos vadios iam matar a sede, e onde as andorinhas se iam espavonear. A frescura da água invadia todo o meu pequeno corpo ainda imberbe, certas gotas de água, atrevidament salpicavam o meu pescoço descoberto. Repentinamente, vinda da telefonia da taberna, ouvi uma voz cantar, um “requebre” que me penetrou e me sacudiu. Eu não sabia o que era, não sabia quem era, sei apenas que, nessa manhã, o sol ficou mais quente e o ceu mais azul e os ruidos da rua mais melodiosos.

Vinda da porta da taberna, uma voz grosseira e rouca gritou: "Calem o bico! Deixem-me ouvir a Amália!". Olhei na direcção dessa porta de onde vinha essa voz roufenha que, por instantes, quebrara o meu encantamento. Encostado ao ombral da porta da taberna, descobri um tipo rasca, de bonézinho a três pancadas, beata de tabaco Superior apagada, suspensa do seu arrocheado lábio inferior. Com as mãos afundadas nos bolsos das calças, ele parecia amassar os forros dos bolsos. Sem quase movimentar os ombros,  vira ligeiramente a cabeça para o interior da tasca e vocifera: "Ò seus cabrões! Acabem-me com esse chinfrim! Deixem-me ouvir a Amália!".

Para mim, nesse momento, como por milagre, nascera a Amália e com ela, o fado, o Fado de Lisboa! Cinquenta anos mais tarde, a Ponte Duarte Pacheco ainda abraça a Rua do Arco do Carvalhão. Os quatros blocos de cimento, cada um com um algarismo diferente, no meio do arco, junto ao paredão lá em cima, também! O primeiro bloco à esquerda tem o algarismo “1”; o segundo bloco tem o algarismo “9”; o terceiro bloco tem o algarismo “4” e o último bloco à direita tem o algarismo “0” – 1940! Vi-os serem colocados pelos construtores. Tinha eu cinco anos! Ainda não sabia ler, mas já sabia contar… Contar… Sempre gostei de contos! Não de "contos" das notas!

Gostava dos contos que a minha tia Arminda me contava para eu adormercer… Mas o mais bonito conto ou o mais bonito conto que me cantaram, foi a Amália, naquela manhã de sol em Lisboa. Desde essa manhã, a sua voz sempre me tem acompanhado! Onde quer que eu fosse ou vá, pelo mundo fora, a sua voz ou ia comigo ou estave lá à minha espera! Mas o que foi a Amália para mim, na minha vida? Foi uma voz divina, uma côr e uma quentura que me adoçaram os dias e as noites, nas minhas tristezas e nas minhas alegrias. E ambas foram muitas! Tantas...

Nessa altura, 1940/41, Amália ainda não tinha discos gravados. Penso que cantava, como se fazia nessa altura, em directo dos estudios. Amália só viria a gravar o seu primeiro disco em 1945, no Brasil. Amália, para mim, não tinha imagem, era apenas uma voz! Uma voz que me refrescava nos dias quentes de verão e que me aquecia e enchia os dias invernosos de sol. Nessa manhã inolvidável ela era simplesmente uma voz divina que me vinha do céu azul de Lisboa, e da taberna do senhor Martins! A imagem de Amália foi-me revelada mais tarde, pela primeira vez, num jornal. Seria o Diário de Noticias? Lá estava ela entre duas fotos "carbonizadas" do rei Jorge VI de Inglaterra e outra de Salazar. Ela era linda com a sua cabeleira negra sobre um vestido branco com um decote em bico! Bem, o jornal era a preto e branco, ainda não havia jornais a cores nessa altura!…
Rogério do Carmo

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