Elogio do Fado
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Outra extraordinária característica do Fado, que revela a sua extrema maturidade, é o facto de se pensar a si próprio. É assombroso o número de letras em que tal sucede.O rock não se pensa a si próprio, não explana a sua própria história. Está sempre a nascer de novo, como se não a tivesse. Refiro-me, mais uma vez, ao pop-rock, pelo vivo contraste que forma com o Fado e porque é um universo que domino um pouco também. O Fado, pelo contrário, amiúde remete para o seu próprio universo, é auto-referencial. Quantas letras existem a explicar, ou a tentar explicar o que é o Fado! “Perguntaste-me outro dia/se eu sabia o que era o Fado. / Eu disse que não sabia, / tu ficaste admirado. /Sem saber o que dizia/eu menti naquela hora/e disse que não sabia /mas vou-te dizer agora. // Almas vencidas, noites perdidas, sombras bizarras/na Mouraria cantam rufias, choram guitarras. / Amor, ciúme, cinzas e lume, dor e pecado:/tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é Fado. // (…) A canção que é meu castigo, /só nasceu para me prender. /O Fado é tudo o que eu digo/mais o que eu não sei dizer.“ Letra de Aníbal Nazaré (canta Amália, Lucília do Carmo).
O Fado pensa em si, indaga sobre si – o que sou? - e, por isso, acaba por debruçar-se sobre a sua própria história, mítica ou factual. Pensa em si tanto em termos da sua história musical como em termos histórico-sociais. Fazendo-o, descreve Portugal e os portugueses. Mais uma vez, na pop-rock, nada de semelhante se passa.
Eis alguns exemplos de letras de fados que se referem à sua história musical –
Cantavam em dueto, em 1931, Ercília Costa e Joaquim Campos, explicando a génese de todos os fados a partir do Fado Marialva e do Fado Corrido: “Era só na Mouraria/ desde a noute ao romper d’alva/ que antigamente se ouvia/ a cantar o Marialva. // Seu irmão, o Fado Corrido, / em muita noutada louca, / era sempre um fado ouvido, / andava de boca em boca. // Glórias, epopeias, brilhos, / estes dois fados tiveram. / E sempre foram seus filhos / os outros mais que vieram. // São fados lindos, risonhos, / os fados da nossa idade. / E os velhos vivem dos sonhos / da passada mocidade. // Tanto a minh’ alma lhe quer, / com tamanha idolatria, / que eu canto enquanto puder/ o Fado da Mouraria.”. Linhares Barbosa explica assim a hegemonia do Fado da Mouraria em tempos idos: “Noutro tempo eu não sabia, / para mal dos meus pecados, /que o Fado da Mouraria/ era afinal Rei dos Fados. //Pegava e picava toiros, / tinha uma amante, a guitarra, /nascera nos bairros moiros, /na desordem e na algazarra. / O Fado da Mouraria, / esse velho e lindo fado, / era o pão de cada dia/ dos fadistas do passado.” (“Noutro Tempo ”, canta Mª do Espírito Santo).
Quando conta a sua história, o Fado fá-lo muitas vezes com a bonita preocupação de não fazer esquecer os fadistas do passado, de que os seus nomes e feitos constem na memória do povo (mais uma vez, cada canção pop-rock é demasiado centrada em si própria para que nela isso aconteça). Nomeiam os nossos heróis fadistas – cantadores, violistas, guitarristas – cujos feitos deverão ser lembrados de geração em geração: “Junto ao Chafariz da Esperança, /houve em tempo uma taberna /onde o Fado se cantava/e que ainda tem por lembrança/ o sítio onde uma lanterna/tristemente iluminava. // Na tasca que então mantinha /o nome mal afamado,/tudo cantava a seu jeito, / mas foi lá que o Vianinha /compôs um dia o seu fado/que lhe deu nome e proveito. // Era ali que o Avelino, /a rir com o Manuel da Mota,/iam beber e fumar, /enquanto um vago destino/levava o Júlio Janota/às cantigas atirar. // Levou-me o instinto rasca/ à porta dessa taberna, / não para cantar ou beber, / mas para ver onde era a tasca/ que a fadistagem moderna/ não chegou a conhecer.” “Chafariz da Esperança ”, letra de Carlos Conde (canta Raul Pereira). E este outro, de Fernando Farinha, intitulado “Evocação”, onde o fadista faz um registo auto-biográfico: ver aqui . Ainda outro, este com letra de Júlio Vieitas, “Ser fadista ”, canta Mário Mota).
E depois, o Fado tem, como é sabido, um mito fundador, a história do amor entre a prostituta Severa e o Conde de Vimioso: “O Fado nasceu de um beijo, / beijo que um dia foi dado/ com lealdade sincera. / Teve por pai Vimioso, / fidalgo nobre e donoso, / por mãe, a linda Severa. // Severa amou Vimioso,/ cantando tristes baladas/ no Fado de Portugal. / Em França, arrastando sedas, / Margarida Gauthier/ amou Armando Duval.” (Maria Emília Ferreira, Fado Franklim, 1929.)
Num Fado da Severa mais jocoso, versão de Coimbra, composto talvez pelo Sales Patuscão, moço de forcado do Conde de Vimioso, instiga-se: “Chorai, fadistas, chorai, / que uma fadista morreu, / hoje mesmo faz um ano que a Severa faleceu. //O Conde de Vimioso / um duro golpe sofreu, / quando lhe foram dizer/"tua Severa morreu". //Corre à sua sepultura, / o corpo ainda se vê: ”Adeus, ó minha Severa, / Boa sorte Deus te dê! //Lá nesse reino celeste, /com tua banza na mão, /farás dos anjos fadistas/porás tudo em confusão.”
No delicioso “Tia Macheta”, Berta Cardoso canta: “O amante não aparecera, / triste, a Severa, sempre fiel, /chamou a tia Macheta, /velha alcoveta, p’ra saber dele. //A velha pegou nas cartas, /sebentas, fartas, de mãos tão sujas, /e antes de as embaralhar/pôs-se a grasnar como as corujas. //Ele não vem, minha filha, / di-lo a espadilha, há maus agoiros. /Há também uma viagem/ e um personagem, a Dama d’Oiros. //Esse conde é o meu fraco, /tome um pataco, tia Macheta./A velha guardou as cartas, / de sebo fartas, sob a roupeta. // Caíram três badaladas, /fortes, pesadas, três irmãs gémeas. /Cá fora, nos portais frios, /cantam vadios feias blasfémias. //O fidalgo não voltou, /Severa o esperou até ser dia. /E desde essa noite é que existe/o fado triste da Mouraria.” (Letra de Linhares Barbosa).
No acima citado "Liberdades Poéticas", de finais do séc. XX, Sérgio Godinho retoma este tema da génese do Fado se achar num amor abandonado: "Meu ouvido corre aberto pelas ruas, / que será do meu amado? / Não me deixa, esta amargura, / é mais leve que a loucura. / E só por isso canto o Fado."
Sobre o tema do Mito já correram rios de tinta e só vou aqui relembrar que os mitos servem para dizer aquilo que de outro modo – a não ser através deles – não poderia ser dito. Ouve-se muitas vezes o comentário depreciativo: “Não passa de um mito!” Mas o mito não é algo de menor. Obviamente, devemos ser capazes de distinguir o que é mito do que não é; e mitos não devem ser aceites sem discernimento crítico. Subvalorizar o mito, porém, não é uma atitude correcta. O mito é algo de profundamente enraizado na história e na mente do ser humano. As sociedades humanas começaram por ser mitológicas e, ainda hoje, a literatura embebe-se de mito, a poesia embebe-se de mito, a arte embebe-se de mito, a religião embebe-se de mito. Vamos ao cinema para sentir o “transporte” que sentiam os nossos antepassados (e os nossos irmãos das sociedades tribais de hoje em dia), reunidos em volta da fogueira, em caindo a noite, ao escutar as histórias dos anciãos. O tempo cronológico pára e passamos a viver fora do espaço-tempo. O poder do Fado revela-se também no facto de estar profundamente enraizado em mitos.
É por isso que custa ouvir certos fadistas afirmar que as letras do fado têm de se adaptar a este tempo, pois já não há Severas e Vimiosos! Ora, um mito está fora do tempo. Isso assemelha-se a dizer que o poema do “Adamastor” de Fernando Pessoa está ultrapassado, pois é um mito, já ninguém acredita no Adamastor. Ora, alguém se cansou de ouvir a história do Adamastor? E de Abel e Caim ou de Eros e Psyché? Claro que não, uma das particularidades dos mitos poderosos é poderem ser repetidos até à exaustão. O ser humano afeiçoa-se a eles, tal como as crianças às histórias antes de adormecer. Sempre as mesmas, sempre novas. Uma vez que o tema que os mitos abordam é mistério, são inesgotáveis. Daí que se possa ser incrivelmente criativo pegando num tema velho e, pelo contrário, apesar de o tema ser novo, falhar-se criativamente.
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