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Elogio do Fado

Há também quem pareça pensar que o Fado tem de ser renovado para sobreviver e que essa renovação tem de passar obrigatoriamente por novos adereços.

Por acrescentos. Por ornamentos. Um violoncelo. Um piano. Um violino. Uma dança. “Porque o Fado já se dançou”, justificam. Pois, repare-se que o verbo vem no passado. Não se deve proibir tentar dançar o Fado, mas se o Fado prescindiu da dança – “batia-se” o Fado, segundo parece, num episódio transitório – é porque não precisa dela para nada. Não lhe falta a dança. A sua expressão não passa por aí. Nem toda a música é feita para dançar e não é por isso menor do que a que é dançável. Tal como um poema não musicável não é menor, longe disso, do que um que possa ser cantado. 

Quanto aos pianos e aos violoncelos, também devem ser bem-vindos. A defesa exacerbada da “pureza” revela-se sempre perigosa. Agora, reconheça-se que se pode fazer óptimo Fado com uma viola e uma guitarra e ponto final. Que esse é o Fado mais difícil. O grande milagre do pouco se fazer muito. Os pintores chineses executavam as suas obras-primas apenas com papel e tinta preta. Bastava-lhes. E tocavam o infinito com esses dois instrumentos. “A Amália partiu a conquistar esse mundo fora, sozinha, apenas com duas naus: uma guitarra e uma viola” – na morte da fadista, um seu admirador anónimo proferiu esta magnífica frase frente às câmaras de televisão.

Através do máximo despojamento, atingir a excelência – esse é o grande milagre. A simplicidade original do Fado é uma mais-valia. Não é uma deficiência. É porque mais não lhe faz falta. Com uma guitarra e uma viola é possível alcançar as estrelas. Difícil? Pois é. Mas muitos conseguem-no. Temos e tivemos imensos fadistas excelentes. Num género muito difícil.

Claro que é tarefa dos historiadores do Fado perceber com distinção aquilo que no Fado é dito e que pertence à esfera mitológica. Agora, o Fado é Arte, não tem de ser historicamente correcto. Não que o Fado seja incapaz de dar verdadeiras lições de história. Recordemos o tema Antigamente no “Fado Corrido”, uma letra de Manuel de Almeida que ele próprio cantou: ver aqui a letra
Todavia, convenhamos que o Fado não tem de apresentar letras que falam do lundum e das modinhas e da conjuntura sócio-económica dos princípios do séc XIX que justificou o seu aparecimento. E o Fado não o faz. O Fado canta muitas vezes a sua própria história mitológica, que é a maneira como se sente e como se vê a si próprio. E o Fado sente-se herdeiro das “caravelas do Gama“, do marinheiro que “estando triste, cantava” (“Fado Português ”, de José Régio). E como não? O Fado é português! Não somos herdeiros das caravelas do Gama e filhos do marinheiro que, estando triste, cantava? Isso significa, pois, que o Fado se sente português. Talassicamente português. Por isso é que se diz que ele é “a alma de um povo”.

O Fado sente ser muito mais do que é cronologicamente, do que é historicamente no sentido estrito. Ultrapassa o seu tempo histórico para abraçar toda a história de Portugal. Canta a grande Hermínia Silva em “História do Fado”: ver aqui a letra (Letra de Avelino de Sousa.). E Vicente da Câmara Pereira, em “Como é que nasceu o Fado”, com letra de Francisco Branco Rodrigues: ”Se há quem lhe interesse saber/ como é que nasceu o Fado, / cantando, vou responder, / porque estou bem informado. // Ele nasceu, era fatal, / num certo e tristonho dia/ de uma união natural/ p’rós lados da Mouraria. // Ele nasceu logo fadado/ com a tradição por virtude/ e baptizaram-no de Fado/ na Senhora da Saúde. // Fez-se adulto, quis sair, / coisa a que ele não resiste, / e foi para Alcácer Quibir, /mas voltou inda mais triste. // Foi nobre e foi plebeu, / é tudo onde a Raça impera,/ pelos dotes que Deus lhe deu,/ foi amado p’la Severa.// Mas eu não disse, afinal/ quem foi a mãe. A meu ver, / ele é filho natural/ duma guitarra qualquer.”

Não havia ainda Fado no tempo das caravelas? Que importa? Importa aos historiadores, não ao Fado em si, que sente em si e canta as caravelas. Que se sente herdeiro de Alcácer Quibir. Não havia ainda Fado? Quatro anos após Alcácer Quibir, um monge francês, Philippe de Caverel, visitou Lisboa e relatou: “Para mostrar que os portugueses gostam muitíssimo das suas guitarras, conta-se que foram encontradas cerca de dez mil guitarras (coisa inacreditável) nos despojos do campo do Rei Sebastião de Portugal, em que foi derrotado pelo Rei de Fez e de Marrocos.” É mentira, isso das dez mil guitarras no areal, em Alcácer Quibir? Não é um facto histórico, dez mil. Muito bem. Escreva-se isso nos livros de História. Que importa? Significará talvez que havia muitas guitarras, ainda que não fossem dez mil. E que quando morre um português, ao lado jaz a guitarra, não (só) a espada. Quem não viu imagens de arquivo da partida dos moços do povo para a Guerra Colonial, levando a tiracolo guitarras enquanto se despedem da mãe?

“Eu quero, quando morrer, / por tantos fados cantar, / ter por dobra de pináculo / uma guitarra a chorar”, cantava a fadista Maria do Carmo, em “Desgarrada”, em 1929. E, no famoso Fado do Hilário, afirma-se: ”Eu quero que o meu caixão/tenha uma forma bizarra:/a forma dum coração,/ai! A forma duma guitarra!” (gravado por António Menano, em 1929). Ercília Costa, no "Fado sem Pernas", em 1931, enaltece assim a guitarra: “Quando tu choras, guitarra, / desafias meus lamentos,/ descobres triste poema, / composto de sofrimentos. // A minha visão agarra / teus carpidos por amor. / Sinto acalmar minha dor, / quando tu choras, guitarra. // Rainha dos instrumentos, / fada de sonhos doirados. / Com soluços magoados, / desafias meus lamentos. // Prendes-me com forte algema / feita de cordas sonoras. / Por isso, quando tu choras, / descobres triste poema. // Quisera a todos momentos / ter-te, guitarra, a meu lado, / porque o teu pranto é o Fado, / composto de sofrimentos.” 

E a mesma fadista no "Fado Corrido", em 1931: “A guitarra, quando chora, / faz estremecer a gente. /É a vida numa hora/ que soluça docemente. // A guitarra, para mim, / tem sentimento e valor. / Fala de coisas sem fim, / infinidades de amor. // (…) Ó minha guitarra d’oiro, / com cordas todas de prata, /só tu és o meu tesoiro, / a alma da serenata.” Mais recentemente, pergunta-se: “Porque dizem tanto mal /do Fado, canção dolente, / quando o Fado é, afinal, / a alma da nossa gente? // Guitarra, chora comigo, / que este meu peito cansado / precisa de ter abrigo / para dar abrigo ao Fado. // Silêncio na viela, / num quarto de pobreza, / apenas o tanger/ da lira magoada. / Não há maior encanto/ que o som duma guitarra / rasgando a madrugada. // Ó minha guitarra querida, / dizê-lo não é demais, / é ao ouvir esses teus ais, / teus ais que são minha sina / que gosto de ti inda mais. // O Fado é bendita reza / e o fadista de garra / traz a sua vida presa / às cordas duma guitarra.” Letra de DR (canta Pedro Figueira).

Forjava-se lá, decerto, em Alcácer Quibir, subliminarmente, o futuro Fado. Não somos todos sobreviventes de Alcácer Quibir? O Fado, porque é português, foi para Alcácer Quibir e lá morreu, deixando ao lado esse instrumento entre todos amado pelos portugueses: a guitarra. A guitarra é o que mais se assemelha, em relação aos portugueses, à espada do samurai. Para o samurai, a espada era a sua alma. Para o português, é a guitarra. O amor dos portugueses pelos instrumentos de cordas está gravado em documentos muito antigos.

O Fado sente-se, pois, profundamente português. Foi a história e a mentalidade portuguesas que o tornaram possível. Tem certas influências remotas vindas de África, do Brasil? Reclama uma costela moura? Bem, mas o que é isso senão ser português? O verdadeiro português sempre foi universal, “das sete partidas do mundo”. O Fado é filho de Portugal. Medrou apenas em Portugal, não em África, não no Brasil, não em Marrocos. Esses povos inventaram outras formas de se exprimirem, que convêm melhor àquilo que são: “O Fado é sexto sentido / que distingue o português, / para ficar entendido / basta cantar-se uma vez. / Só à guitarra tocamos / a alegria que fingimos: / o Fado que nós cantamos / é sina que nós cumprimos.” Letra de Rodrigo de Melo, “Fado do Fado” (canta Amália). “Para se ser bom português, / neste país encantado, / é preciso amar alguém / e saber cantar o Fado.” (Maria Silva, “Fado da Mouraria”, 1928). “O Fado é canção d’encantos, / tão nobres, tão altaneiros, / deste meu país de santos, / de poetas, de guerreiros. // Ó almas lusas, cuidado, / ouve-se ao longe cantar. / Ajoelhai, passa o Fado – / vai Portugal a passar.” (Madalena de Melo, “Fado em Ré Maior”, 1928.).

Mais recentemente, esta letra de Tó Zé Brito: “O Fado tem um fado, um destino:/ desde menino, ser português. / Nasceu num bairro antigo de Lisboa, / não foi à escola, mal sabe ler... ver aqui a letra. (Canta Rodrigo).



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Comentários
+1 #1 Okawa Ryuko 2012-04-08 15:27 Muito obrigada. Só um pequeno reparo. O título é "Elogio do Fado" e não O Elogio do Fado. e um pedido: podia inserir o link para o meu blogue? Sucesso para este seu portal! Citação
+1 #2 Portal do Fado 2012-04-08 15:41 Cara Okawa Ryuko
Vamos corrigir o título do artigo. O link para o seu blogue está no próprio nome (do autor) no final do artigo. Como o seu artigo é um pouco longo iremos publicá-lo periodicamente em partes!

PS.: Nós é que agradecemos o seu excelente artigo!
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