Elogio do Fado
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Um fadista muito mediático dizia há pouco tempo que, antigamente, ser fadista “era uma coisa muito feia” e que os fadistas de agora tinham a obrigação de dar um novo estatuto a esse termo.Mas querer demarcar-se das origens pobretanas do fado é que é “uma coisa muito feia.” O Fado faz ainda questão de sublinhar a sua proveniência mista: é fruto da união da nobreza e do povo. Esse é mesmo um dos significados do seu mito fundador. Frederico de Brito, na “Biografia do Fado” descreve-o como um tipo popular acarinhado pela fidalguia, de tal maneira que lhe finge pertencer: ver aqui a letra (Canta Miguel Sanches, Carlos Ramos).
Vasco da Graça Moura inspira-se mais directamente no mito e fá-lo filho de ambas as classes sociais: “Talvez a mãe fosse rameira de bordel / talvez o pai um decadente aristocrata / talvez lhe dessem à nascença amor e fel / talvez crescesse aos tropeções na vida ingrata. // Talvez o tenham educado sem maneiras / entre desordens, navalhadas e paixões/talvez ouvisse vendavais e bebedeiras / e as violências que rasgavam corações. // Talvez ardesse variamente em várias chamas / talvez a história fosse ainda mais bizarra / no desamparo teve sempre duas amas / que se chamavam a viola e a guitarra. // Pois junto delas já talvez o reconheçam / talvez recuse dar p’lo nome d’enjeitado / e mesmo aquelas que o não cantam, não esqueçam / nasceu assim, viveu assim, chama-se Fado.” (Canta Carlos do Carmo). No célebre “O Embuçado”, o Fado chega ao topo dos topos da hierarquia social. É, pois, amado por todos os portugueses: ver aqui a letra (Letra de Gabriel de Oliveira, canta João Ferreira Rosa).
Não há, pois, que intelectualizar o Fado. O Fado é Arte, tem muito mais a ver com poesia do que com história. Ninguém exige à poesia, ou à Arte em geral, que seja historicamente correcta. A seiva do Fado tem de provir – e provém – das massas de gente anónima, essa é a sua base. Se começa a cantar-se apenas grandes poetas e a aburguesar a sua visão do mundo… Talvez o venham a chamar na mesma Fado, mas ter-se-á perdido aquele encanto que a gente simples, com a sua criatividade espontânea e desrespeito pelas regras académicas é capaz de lhe dar. Ou antes, criar-se-á um fado burguês, de canudo em punho (o Fado de Coimbra, que é um Fado ligado à vida académica, nunca o tratou de canudo na mão, isto é, brandindo a sapiência).
Já é em grande parte este que chega às edições discográficas. Tenderá a separar-se cada vez mais do outro, do que corre nas veias do povo, que prosseguirá o seu caminho, como tem prosseguido. E que continuará a viver nas ruas, como tem vivido. Porque ser humano é ser criativo, sem para isso precisar de ter canudos.
À semelhança de todos os outros povos do mundo, os portugueses são maravilhosamente criativos. Nunca houve um Fado aristocrático, mas houve sempre aristocratas fadistas. Porque não perverteram o espírito do Fado, faziam antes parte dele. Surgem, contudo, cada vez mais fadistas de cunho burguês, anémico (refiro-me, é óbvio, à mentalidade, não à camada social de que provêm). Parece que este fado burguês começa a correr paralelamente ao Fado da gente anónima, sem se tocarem. Até há fadistas que se querem demarcar da “má fama” dos fadistas do passado. A “má fama” intimida-os, como burgueses que são. Um fadista muito mediático dizia há pouco tempo na televisão que, antigamente, ser fadista “era uma coisa muito feia” e que os fadistas de agora tinham a obrigação de dar um novo estatuto a esse termo. Ou seja, não lhe agrada qualquer colagem à fadistagem do passado, à ralé das vielas e das tabernas manhosas.
Mas querer demarcar-se das origens pobretanas da sua arte é que é “uma coisa muito feia.” Desejaria talvez um Fado engravatado e respeitável? Ora, o Fado só deve ser respeitado porque, como arte, merece respeito. Não porque apregoe o respeito e os bons costumes e a moral de pacotilha. Canta-nos José da Câmara Pereira no “Fado Fadista”, com letra de Eduardo Damas: “Não digam ao Fado / com ar de disfarce / que é baixo, que é reles, / que não tem valia / que aprenda ciência / e que seja poeta / mas doutra poesia. // Não digam ao Fado / que não entristeça / que apenas se alegre / nas provas da vida / que por maus ciúmes / não perca a cabeça / e não ande às cegas / por tão maus caminhos. // O Fado fadista / tem de tudo um pouco / tem tanto de artista / como tem de louco. / E veste-se de novo / à maneira antiga, / é filho do povo / e o resto é cantiga!”.
Um fadista verdadeiro tem sempre alma de vadio - nem que seja em sonho - e, se não é fora da lei, pelo menos sabe o que é estar acima dela. Amália, Marceneiro, Hermínia, essas “estrelas de enorme grandeza”, todos esses – não cantavam apenas Fado – ERAM Fado. O seu modo de ser era Fado. A sua vida era Fado. Até a sua cara era Fado. Por isso, o que lhes saía da garganta era Fado, e provinha das entranhas. E, como provinha das entranhas, não precisavam de berrar para mostrar que tinham goela.
No Fado, não é uma boa goela que importa: “Um fado nasce e só conseguirá viver / se andar nas asas do vento, / se quem o canta tiver sofrido a valer / p’ra lhe emprestar sentimento. // Não pode cantar-se a dor / se a dor é desconhecida/ e não pode dar calor se o calor / não for ideia sentida. // Ninguém pode cantar rindo / se estiver sentindo / as penas da vida. // (...) D’alma vem a expressão / que na dor é reflectida / e então, o coração / faz a confissão toda de seguida. // É como quando se chora, / logo se melhora as penas da vida.” Letra de Alberto Janes, “Um fado nasce” (canta Amália).
Ser fadista é como uma graça, não se procura, é dada (“e deu-me esta voz a mim”). O mesmo se passa com a poesia. Ser fadista é um dom: “Por muito que se disser / o Fado não é canalha. /Não é fadista quem quer, / só é fadista quem calha. // O destino é linha recta / traçado à primeira vista. / Como se nasce poeta / também se nasce fadista.” Rodrigo de Melo, “Fado da Adiça,” (canta Amália).
“Quando nasci, o Destino / marcou-me na vida um fado. / Meu coração pequenino, / logo bateu apressado. // Que fado seria aquele / que o destino me traçava, / que tendo receio dele / minha pobre mãe chorava? // E o pranto de minha mãe, / caindo sobre o meu peito, / deu-me tristeza também, / tristeza que é meu defeito.// Fui crescendo e sou mulher / e o Destino o que me deu / foi um Fado que me quer, / um Fado que é muito meu. // Sou, portanto, agradecida, / ao fado que me foi dado, / o fado da minha vida, / que é sempre cantar o Fado.” “A Minha Vida”, gravado por Ercília Costa em 193.
“Cantam cantado”, comentava Amália referindo-se a fadistas que iam surgindo na cena musical. Ou seja, cantam com consciência de que estão a cantar em vez de se perderem no que cantam. Isso trai uma falha de autenticidade. Ora, quem tem boa voz é cantor; mas só quem tem “alma” é que é fadista. Só quem é autêntico. E não há nada mais difícil do que ser autêntico. “Quem diz que o Fado s’aprende / não conhece, não entende, / suas doces melopeias. / O Fado, para ser Fado, / deve correr misturado / no sangue das nossas veias: ver a letra aqui (Letra de Carlos Conde; canta Ilda Silva).
O Fado é uma voz interior a cantar. Não uma voz exterior. O Fado, como os portugueses – que são “almas velhas” – é sábio e um sábio nunca se exibe. O sentimento, no Fado, nunca deve ser vulgar, dramático. Mostra-se, sim, mas sempre com certo pudor, com subtileza. Há uma certa reserva, pois o tema é delicado. Os portugueses não são latinos ao modo dos italianos ou dos espanhóis. Todo o estrangeiro aponta a surpreendente reserva portuguesa que esconde, todavia, um gosto por relações profundas. Partilhamos certos traços com os japoneses – extremo ocidente e extremo oriente, – e este é um deles. Mas isso é outra história.
Os grandes fadistas atingem a extrema sofisticação de conseguirem transmitir sentimentos, emoções devastadoras, sempre com uma contenção elegante que os torna ainda mais comovedores. “Tanto entristece ou encanta / garganta que canta o Fado, / que eu não sei, quando alguém canta, / se é feliz ou desgraçado.” Ercília Costa, “Fado Tango”, 1931.
Eis o mistério do Fado. José Porfírio, numa voz de um timbre inconfundível (só conheço dois registos dele; infelizmente, morreu muito novo, nos anos 40 do século passado), expunha a mesma indefinição, em “Consagração ao Fado”, de 1929: “Há uma lenda bizarra / que no mundo me detém. / É Deus, o Fado, a Guitarra/ e a Alma da Minha Mãe. // O Fado é canção infeliz, / perdição de quem o abraça, / mas eu sinto-me feliz / por viver nessa desgraça. // E se ele um dia deixasse / a desgraça que contém, / já não tinha quem chorasse, / perdia o valor que tem.” A felicidade provém da transformação do sofrimento em Arte, que é o que significa dizer-se que a Severa inventou o Fado na noite em que o Vimioso não apareceu.
O Fado consiste, sobretudo, numa transmissão muito inteligente de emoções. Para isso contribui, não só a letra, não só a música, mas o desempenho em geral, a linguagem corporal, a interpretação como um todo. O famoso fechar de olhos dos fadistas, enquanto cantam, (“para olhar para o coração”, como canta Amália), a predilecção pelos fatos negros, a recusa da dança, mas a adopção de pequenos gestos como o torcer das mãos, tudo isso acontece porque a transmissão da emoção – que é o que mais importa no Fado – se torna muito mais eficaz. Daí este género musical conseguir comover povos das mais desvairadas latitudes.
Exigindo autenticidade, o Fado é um género extremamente difícil, apesar da base melódica, dizem os entendidos, ser bastante simples (outros defendem que não é tão simples assim). Se é verdade que é simples, tudo o resto não o é. As improvisações, as variações, o “estilar”, a dicção, o dividir das sílabas, a expressão autêntica da emoção, a linguagem corporal, a obrigação de ser original, de ter um estilo próprio de atacar fados muito cantados, as letras com temas difíceis, além do dedilhar da guitarra portuguesa, tudo o resto complexifica tremendamente a linha melódica, que não passa de uma mera indicação, de uma sugestão a ser trabalhada pelo cantador e pelos instrumentistas, os violistas e guitarristas – esses seres da sombra, essas naus dos timoneiros-cantadores. Uma voz e dois instrumentos numa comunhão profunda. Um corpo único de três partes que vai tocar num outro, aquele que escuta, convidando-o a entrar. Isto sem referir essa magia única que são as guitarradas e o emocionante despique das desgarradas, que são tão Fado quanto o quadro clássico do cantador com dois instrumentistas.
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