Elogio do Fado
Página 6 de 7
Da condição humana também faz parte o amor e, portanto, não podia deixar de ser este um dos grandes temas do Fado. E como é bem cantado o amor no Fado!Já em 1928, António Menano cantava versos destes: “O mundo dá tanta volta, / quem me dera fosse assim: / que em uma dessas voltas / tu viesses para mim. //Depois de Deus só é grande / o teu amor para mim. / Não é Deus, por ter princípio, / é quase Deus, por não ter fim”. ("Fado da Ansiedade").
Cantam-se amores delicados como no já mencionado “Colchetes d’oiro”, uma letra de Henrique Rego: “Toma lá colchetes d’oiro, /aperta o teu coletinho, /coração que é de nós dois / deve andar conchegadinho... ver a letra aqui.
E cantam-se amores rejeitados: ”Não me queres, não admira, / perdi os olhos na guerra, / com eles tudo perdi. / Mas disse-me alguém que os vira, / no chão, cheiinhos de terra, / inda choraram por ti.” (Maria Emília Ferreira, “Fado Franklim”, 1929). Cantam-se ainda amores difíceis, marginais: “De mãos nos bolsos e olhar distante, / jeito de marinheiro ou de soldado, / era o rapaz da camisola verde, / negra madeixa ao vento, / boina maruja ao lado... ver a letra aqui, letra de Pedro Homem de Mello, “O rapaz da camisola verde”, 1954 (canta Amália, Frei Hermano da Câmara). Reparem na interjeição, naquele “ai”. Não se diz “Ai, o rapaz da camisola verde” – isso seria traduzível noutras línguas. Diz-se “Ai do rapaz”, como se diz “coitado do rapaz”. Mas, ao invés de dizer “coitado” ou “desgraçado” ou “infeliz”, substitui-se o adjectivo por essa interjeição aflita, “ai”, o que empresta à frase uma emoção muito mais plangente. “Ai de ti se fazes isso!”, dizem os portugueses, com uma interjeição a fazer as vezes de um adjectivo. Isto é único, só acontece na esplendorosa língua portuguesa (hoje em dia, obscenamente maltratada). Não tinha de ser o povo que inventou esta língua a inventar o Fado também?
O Fado e o Amor fundem-se num só, são indestrinçáveis. O Fado é a expressão maior do modo de amar português: “Ó Fado, torturado, tão magoado / quem te fez? / Ó Fado, não sei quem és. / Só sei que ouvi-te um dia e chorei / e ao encontrar-te encontrei / a voz do amor português. // Meu sonho, tão risonho / que eu suponho, nem sonhei. / Meu sonho, quero acordar. / Volver de novo ao Fado e sofrer / porque sofrer é viver / e eu vivo e sonho a cantar.” Letra de Silva Tavares (canta Amália). Em “Zanguei-me com o meu amor ”, onde toda a cumplicidade entre os amantes gira em torno do Fado, o sofrimento de amor, mais uma vez, contribui para a excelência do canto: “Zanguei-me com meu amor, / não o vi em todo o dia, / à noite cantei melhor / o Fado da Mouraria. // O sopro duma saudade / vinha beijar-me hora a hora. / P’ra ficar mais à vontade, / mandei a saudade embora. // De manhã, arrependida, / lembrei-o, pus-me a chorar. / Quem perde um amor na vida, / jamais devia cantar. // Quando regressou ao ninho, / ele, que mal assobia, / vinha a assobiar baixinho / o Fado da Mouraria.” Letra de Linhares Barbosa (canta Amália).
O Fado (como sempre o foi toda a música) é o maior instrumento de conquista amorosa. Quem canta melhor o Fado é quem ganha o troféu: “Foi na Travessa da Palha / que o meu amante, um canalha, / fez sangrar meu coração. / Trazendo ao lado outra amante / vinha a gingar, petulante, / em ar de provocação. // Na taberna do Friagem / entre muita fadistagem / enfrentei-os sem rancor, / porque a mulher que trazia / com certeza não valia / nem sombra do meu amor. // A ver quem tinha mais brio, / cantámos ao desafio, / eu e essa outra qualquer. / Deixei-a a perder de vista, / mostrando ser mais fadista, / provando ser mais mulher. // Foi uma cena vivida, / de muitas da minha vida, / que não se esquecem depois. / Só sei que de madrugada, / após a cena acabada, / voltámos p’ra casa os dois.” Letra de Gabriel de Oliveira, “Travessa da Palha ” (canta Lucília do Carmo).
Cantava José Porfírio, em 1929, num "Fado Vitória" que, para conseguir entreter-se com o seu bem, precisaria de uma voz que se assemelhasse à do rouxinol: “Inda o céu não mostra o dia, / já nos troncos do choupal / da linda estrada aldeã, /o rouxinol desafia / a toutinegra real, /que espera a luz da manhã. // Quando, à linda luz do sol, / ouço o meu amor cantar, / com sua voz feiticeira, /julgo ouvir o rouxinol, / numa noute de luar, / junto à fonte ou na ribeira. // Quem me dera possuir, /a voz que o rouxinol tem, / sem ter outro que o afronte. / Havia de conseguir, / entreter-me com o meu bem, / na ribeira, junto à fonte.” Mas, no fim de contas, apesar de tantas paixões sofridas, o amor pelo próprio Fado é o maior amor dos fadistas: “Se queres ser o meu senhor / e ter-me sempre a teu lado, / não me fales só de amor, / fala-me também do Fado.” Letra de Aníbal Nazaré (canta Amália, Lucília do Carmo).
No Fado não se receiam temas como a morte ou a despedida: “Disse-te adeus, e morri / e o cais, vazio de ti / aceitou novas marés. / Gritos de búzios perdidos / roubaram dos meus sentidos / a gaivota que tu és. / (…) Presa no ventre do mar / o meu triste respirar / sofre a invenção das horas. / Pois na ausência que deixaste, / meu amor, como ficaste, / meu amor, como demoras.” Letra de Vasco de Lima Couto (canta Amália).
A saudade, claro, é um dos seus temas predilectos: “Achei-te tanta diferença / quando de novo te vi / que, estando em tua presença, / tive saudades de ti”. Letra de João de Freitas (canta Adelina Ramos). E Alfredo Marceneiro em “Cabelo Branco”: “Saudade são pombas mansas / a que nós damos guarida, / paraísos de lembranças / da mocidade perdida”. Ou esta letra de um dos muitos aristocratas fadistas, D. António de Bragança: “São tão lindos os teus olhos / quando se fitam nos meus! / Contam coisas, dizem coisas… / Ai, Jesus! Valha-me Deus! // O amor tem duas moradas / que Nosso Senhor lhe deu: / o coração onde vive / e os olhos onde nasceu! // Eu quero bem aos teus olhos / mas muito mais quero aos meus, / pois, se perdesse os meus olhos / não podia ver os teus! // Nossa Senhora das Dores / tem sete espadas no peito…/Saudade tem sete letras / que ferem do mesmo jeito!”
O Fado nasceu nos bairros miseráveis, onde todas estas experiências humanas atingiam paroxismos dificilmente suportáveis: “Dizem que é enorme o mundo / colossal o seu roteiro. / Quanta vez um ai profundo / é maior que o mundo inteiro!” (Madalena de Melo, "Cantares", 1928.) Com olhar sábio, reflectiu sobre elas e transformou-as em canto: “Para expandir minha dor, / a guitarra me ensinou / a ter amor à poesia. / Nas horas de sofrimento, / o meu pobre coração / se não cantasse, morria.” (Maria Silva, Fado da Paixão, 1928.)
Perpassa pelo Fado uma visão do mundo que tem algo de oriental. O mundo é ilusório, nele caminhamos como num sonho. Nada é apenas o que aparenta ser: “Se tu me deixares eu digo / o contrário a toda a gente. / Neste mundo de ilusões / fala verdade quem mente.”, cantava Maria Silva, no “Fado Dois Tons”, em 1928. E Marceneiro, em "Olhos Fatais", 1936, falava “neste mundo enganador”. No passado, os ingleses, com desprezo, classificavam os portugueses como “orientais” de temperamento. Teriam alguma razão, mas o desprezo pelos orientais só os diminuía a eles, ingleses.
Artigos Relacionados
Comentar
Vamos corrigir o título do artigo. O link para o seu blogue está no próprio nome (do autor) no final do artigo. Como o seu artigo é um pouco longo iremos publicá-lo periodicamente em partes!
PS.: Nós é que agradecemos o seu excelente artigo! Citação