Elogio do Fado
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A consciência do tempo que passa, de que tudo muda, contribui para esse olhar melancólico sobre a precariedade e efemeridade da vida:“Tempos antigos, / tempos passados, / tempos de artistas, / tempos mortos que eu vivi. / Velhos amigos, / velhos pecados, / velhas fadistas / que não vejo agora aqui. // Já lá vão todas, / já lá vão todos / já lá não falta / senão um que espera a vez. / Foram-se as modas / foram-se os modos, / foi toda a malta / do meu tempo com vocês. // Chorai, chorai, / por mim, por mim, / rapaz do tempo que já lá vai / e eu vi no fim. / Passou, passou, / morreu, morreu, / e desse mundo que acabou / fiquei só eu. // Vi as esperas, / vi as toiradas, / pegas e tudo / no bom estilo português. / Vi as galeras, / vi as cegadas, / o velho Entrudo / com bisnagas e chechés. // Vi a Avenida / com luminárias, / toda empedrada / a preto e branco sem metrô. / Coisas da vida, extraordinárias, / o agora é nada / ao pé de tudo o que findou.” (Letra de José Galhardo, canta Carlos Ramos).
No Fado, a velhice é assumida. Não é preciso fingir-se que “ainda” se é novo, como acontece no universo da pop-rock, hoje em dia cheio de “adolescentes” da terceira-idade. E ainda outra: "Amor é água que corre, /tudo passa, tudo morre, / que me importa a mim morrer? / Adeus, cabecita louca, / eu vou esquecer tua boca / na boca doutra mulher." (Letra de Augusto de Sousa, canta Alfredo Marceneiro.)
O Fado foi ainda, durante certo tempo, acusado de conservadorismo. Mais uma vez, de tudo se encontra no Fado. Mas o grande fio condutor é, bem pelo contrário, um profundo desprezo pelos valores pequeno-burgueses da aparência e da convenção. Nas “Sardinheiras ”, de 1947, em pleno regime de Salazar, Amália cantou esta letra de Linhares Barbosa: “Um dia ele seguiu-me / até à rua onde eu morava. / Cumprimentou-me, sorriu-me, / e ao outro dia lá estava. // Atirei-lhe da trapeira / da minha água furtada, / uma rubra sardinheira / que se tornou mais corada. // Depois nunca mais o vi, / nem do seu olhar a chama. / Passou tempo e descobri que ele morava em Alfama. // Uma noite sem pensar, / pus o meu xaile, o meu lenço/ e fui atrás desse olhar / que deixara o meu suspenso. // Hoje moro onde ele mora, / hoje vivo onde ele vive. / E há sol por dentro e por fora / da minha alegria enorme.”
Numa época de intenso moralismo, de falsos pudores, de namoros vigiados à janela, de tacanhez pequeno-burguesa, a mulher da canção, “sem pensar”, vai ter com um homem com quem nunca sequer falou. Noutra letra do mesmo Linhares Barbosa, ridiculariza-se o respeito pela moral pequeno-burguesa, pelo “parece mal” social: “Porque cantamos o Fado / falam de mim e de ti. / Não te dê isso cuidado, / põe as intrigas de lado, / não dês ouvidos, sorri. // Põe o xaile de Tonquim / e vamos os dois ao baile. / Enfeita-te só p’ra mim, / gosto que sejas assim, /adoro ver-te de xaile. //Ri sempre que t’apeteça, / faz como eu que não ligo, / ainda que mal pareça, / se perdermos a cabeça, / isso é comigo e contigo. // Domingo, se Deus quiser, / vamos os dois à corrida, / todo o mundo há-de saber / que és a única mulher / por quem me perco na vida.” “A única mulher” (canta Miguel Sanches).
O Fado, em consonância com o cristianismo na sua génese – uma religião de compaixão – sai muitas vezes em defesa dos deserdados da vida, dos párias, dos enjeitados da sociedade dos “bons costumes”: “As migalhas que sobejam / da mesa dos abastados / são muitas vezes o pão / de milhares de desgraçados. // É vício cantar o Fado, / é vício amar e sofrer. / Mas, pior do que ter vícios, / é não ser capaz de os ter.” (Maria Silva, "Fado Fadista", 1929). Os dois últimos versos lembram as tiradas de Oscar Wilde! “Um quarto de pão sobeja, / querendo a gente fazer bem. / Chega para quatro ou para cinco, / pode até chegar para cem.” (Maria Silva, em "Fado Corrido", de 1928.
E canta Alfredo Marceneiro: “Fui de viela em viela, / numa delas dei com ela / e quedei-me, enfeitiçado: / sob a luz dum candeeiro / estava ali o Fado inteiro, / pois toda ela era Fado. // Arvorei um ar gingão, / um certo ar fadistão / que qualquer homem lhe assume, / pois confesso que aguardei, / quando por ela passei, / p’lo convite do costume. // E, em vez disso, no entanto, / no seu rosto só vi pranto, / só vi desgosto e descrença. / Fui-me embora, amargurado, / e era Fado, mas o Fado, / não é sempre o que se pensa. // E ainda recordo agora / a visão, que ao ir-me embora, / guardei da mulher perdida. / A pena que me desgarra / só me lembra uma guitarra / a chorar penas da vida.” Letra do Dr. Guilherme Pereira da Rosa, “A viela ”.
A defesa das “ruas sujas” e das prostitutas é omnipresente, muitas vezes através de letras de teor profundamente anti-convencional. Afinal, a Mãe do Fado foi uma “mulher perdida”! “Quem tiver filhas no mundo / não fale das desgraçadas; / as que são hoje perdidas / também nasceram honradas.” (fado cantado pela Severa, segundo Teófilo Braga). “Foi na velha Mouraria, / nas guitarradas de então, / que teve nome na orgia / o Fado, linda canção / (…) / Quem quer que és tu não fujas / da mulher que se perdeu. / Na lama das ruas sujas / brilham os astros do céu. // Donzela que vais passando, / não deves tornar-te a rir. / Na seda mais preciosa / pode uma nódoa cair. // Parti a minha guitarra, / perdi a minha alegria. / Rezemos por ela agora, / Padre-nosso, Ave-Maria!” (Maria Emília Ferreira, "Fado da Mouraria", 1929).
“Cerejas frescas, vermelhas, / vendem-se pelos caminhos: / são os brincos das orelhas / das filhas dos pobrezinhos. // Vai tão longe a mocidade, / sinto tão perto o meu fim. / Por vezes sinto vontade / de deitar luto por mim. // Já que te não dão o pão, / dá-te nua a quem to der. / Mas guarda-me o coração, / a alma que ninguém quer.” (Maria Emília Ferreira, "Fado Corrido", 1929). E, no belíssimo “Maria Madalena ” relembra-se a prostituta que se tornou santa: “Quem por amor se perdeu, / não chore, não tenha pena; / uma das santas do céu / foi Maria Madalena. // Desse amor que nos encanta, / até Cristo padeceu, / para poder fazer santa / quem por amor se perdeu. // Jesus só nos quis mostrar / que o amor não se condena. / Por isso, quem sabe amar, / não chore, não tenha pena. // A Virgem Nossa Senhora, / quando o amor conheceu, / fez da maior pecadora / uma das santas do céu. // E de tanta que pecou, / da maior à mais pequena, / aquela que mais amou / foi Maria Madalena.” Letra de Gabriel de Oliveira, “Maria Madalena ”, (canta Lucília do Carmo).
As grandes heroínas do Fado são, pois, as prostitutas: a Severa, a Rosa Maria, a Mariquinhas, Maria Madalena… “É numa rua bizarra / a casa da Mariquinhas. / Tem na sala uma guitarra, / janelas com tabuinhas. / (…) Para se tornar notada / usa coisas esquisitas, / muitas rendas, muitas fitas, / lenços de cor variada. / Pretendida e desejada, / altiva como as rainhas, / ri das muitas, coitadinhas, / que a censuram rudemente, / por verem cheia de gente / a casa da Mariquinhas.” Letra de Silva Tavares, “Mariquinhas ” (canta Alfredo Marceneiro). “Há festa na Mouraria, / é dia da procissão / da Senhora da Saúde. / Até a Rosa Maria, / da Rua do Capelão, / parece que tem virtude. // (…) Como que petrificada em fervorosa oração, / é tal a sua atitude, / que a Rosa já desfolhada, da Rua do Capelão, / parece que tem virtude.” Letra de Gabriel de Oliveira, "Há Festa na Mouraria " (canta Amália, António Pinto Basto).
A riqueza do Fado, “ele, que veio do nada”, é imensa, pois “não sendo nada, era tudo.” Quem o julga pobre, engana-se. Talvez não consiga ver que “na lama das ruas sujas / brilham os astros do céu.”
Akawa Ryuko / Ilustração:Gonçalo Viana
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