Elogio do Fado
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"O Fado é uma das músicas que os portugueses fazem bem, que realmente sabem sentir e julgar. Não precisa de ser recuperado, nem curado, nem reabilitado, nem salvo. O Fado já está salvo há muito tempo." Miguel Esteves Cardoso"Foi quando Deus fez os sóis, / as ilusões, as tristezas, / que entristeceu, e depois,/ fez as canções portuguesas. // Quando Deus criou as rosas, / num paraíso encantado, / caiu uma, e desfolhou-se/ e dela nasceu o Fado. // Junto aos marcos da fronteira/ há um letreiro gravado / que nos diz, entre quem queira, / mas só quem gosta de Fado. // Aos que vêm pelo mar, diz-lhes a onda na barra:/ entre quem saiba chorar / ao ouvir uma guitarra.” Ercília Costa, “Fado Dois Tons”, 1931.
Vou aqui fazer um elogio do Fado. Não porque o Fado necessite de ser elogiado por mim, mas eu é que gosto tanto de Fado que sinto necessidade de o elogiar.
Como é sabido, o Fado tem, ao longo dos tempos, suscitado vivas polémicas. São sobejamente conhecidos vários argumentos que contestam a qualidade desse estilo musical. Alguns intelectuais e artistas portugueses, como José Gomes Ferreira e Fernando Lopes Graça (que considerava o Fado “o inimigo número um” da música popular portuguesa), gastaram o seu latim e a sua tinta a vociferar contra ele. Confesso que a maior parte desses argumentos não me convencem de todo e tentarei aqui refutá-los.
Sobretudo por parte daqueles que nasceram nas décadas de 60 e 70 do século passado, a velha afirmação de que o Fado é piegas, “choradinho”, que tende a abordar temas relacionados com desgraças de folhetim, ainda se ouve, estranhamente. É verdade que não é difícil encontrar letras que corroborem esse argumento, letras que choram filhos ceguinhos e filhinhas que em tenra idade se tornaram anjinhos do céu. O problema é que não são a maioria e não o são há muito tempo – pelo menos, desde que o Fado começou a ser gravado em discos, nos princípios do séc. XX. Trata-se, pois, da vulgar falácia de julgar o todo pela parte. Nos seus primórdios, quando se estabeleceu como canção urbana, no séc. XIX, talvez assim tenha sido. Mas decerto era esse o ar do tempo em Portugal, não se passava isso apenas no Fado! Basta lermos “Os Maias”, do Eça de Queiroz, para encontrar uma sátira feroz contra a poesia lamechas que por cá imperava naquele tempo. Ainda assim, e como contra-exemplo, o Caetano Calcinhas, fadista do séc XIX (morreu em 1894) já criava algumas quadras na boa tradição popular: “Eu rendo culto à pena,/ não rendo culto à espada./Quem mata p’ra ter glória/cá p’ra mim não vale nada!”
Atente-se que essas mesmas pessoas que esgrimem o argumento da pobreza poética das letras do Fado – demonstrando, assim, que estão escandalosamente desactualizadas no assunto – não se insurgem contra a futilidade “I love you / you love me” de tantas canções pop-rock, por exemplo. Por que será? Porque é que, nesse caso, isso não as aflige? Será que a alegria pode ser superficial, mas o sofrimento não? De facto, o sofrimento é coisa séria. E se o Fado ama glosar o tema é porque é uma canção, já se sabe, muito “madura”. O Fado exige de si próprio uma qualidade que se dispensa nesse adolescente eterno que é a música pop-rock. O que acontece é que o Fado é incompatível com a mediocridade, enquanto que esta sobrevive bem na pop-rock (e eu gosto muito também, para que conste desde já, de pop-rock). A mediocridade, no Fado, (no que respeita às letras, à interpretação, à apresentação, à melodia) torna-se insuportável. Porque o Fado não é, nunca quis ser, mero entretenimento.
Tratar o tema do sofrimento através de um apelo grosseiro aos sentimentos, no estilo “Meu amor abandonou-me/, tirei a faca da cozinha/ e a vida a três filhinhos/ e tirei depois a minha.” é imperdoável, além de patético e escrito já no túmulo. Como não recusou a sua maioridade, se não planeava desistir de temas “pesados”, o Fado depressa percebeu que a qualidade era essencial. E que diferença entre uma letra como a inventada por mim ali acima (houve semelhantes) e a de Sérgio Godinho, sofisticadíssima, sobre o mesmo tema do abandono: “Meu amor deixou-me um dia/ pus a mão na laje fria.” ("Liberdades Poéticas ", canta Mísia). Todo o frio de alma sentido pelo abandono é elegantemente transferido para uma pedra. O sofrimento diz-se assim muito melhor, a sua transmissão é muito mais eficaz. Os fadistas, criaturas geralmente muitíssimo inteligentes e de sensibilidade poética muito apurada, aperceberam-se cedo disso. O Fado, nem na alegria se permite ser superficial. Relembremo-nos da letra dessa linda “Sardinheiras ”, um amor feliz cantado por uma jovem Amália, onde “há sol por dentro e por fora/ da minha alegria enorme.”
Na verdade, letras de qualidade existem no Fado há longo tempo. Não significa isso que se trate de “Grande Poesia”. Alguns grandes poemas podem ser musicados e isso resulta bem, mas se é um grande poema então sustém-se sozinho. Isto é, se é um bom poema não necessita de ser musicado (ou, por exemplo, ilustrado). E uma boa melodia e interpretação (o Fado é sobretudo interpretação) pode aguentar-se também, apesar de uma letra deficiente. Recorde-se o imortal “Ai, Mouraria”: “ (…) por ter passado mesmo a meu lado certo fadista/ de cor morena, boca pequena e olhar trocista. // Ai, Mouraria, do homem do meu encanto/ que me mentia/ mas que eu adorava tanto!” Convenhamos que esta adoração por um cabotino de boquinha pequena para rimar com a pele morena não convence ninguém.
Mas importamo-nos nós realmente com isso? A verdade é que se trata de um fado cujos pecadilhos na letra não conseguem afectar a sua imortalidade. Claro que é maravilhoso quando letra e música são irrepreensíveis mas, para que tal aconteça, não é de todo imprescindível que se trate de “Grande Poesia”, de Luís de Camões e de Fernando Pessoa, como alguns fadistas agora parece pensarem. Há imensos versos do Linhares Barbosa, por exemplo, que não podiam ser mais apropriados para se tornarem fados. “Lá porque tens cinco pedras ” e “Fado marujo ” são bons exemplos. São letras de uma tal graça e engenho! – que mais se pode desejar? : ”Quando ele passa, /o marujo português, /não anda, passa a bailar, /como ao sabor das marés. //Quando se ginga, / põe tal jeito, /faz tal proa, /só p’ra que se não distinga/ se é corpo humano ou canoa. //Chega a Lisboa, / salta do barco e, num salto, /vai parar à Madragoa/ou então ao Bairro Alto. /Entra em Alfama/e faz de Alfama um convés. / Há sempre um Vasco da Gama/num marujo português. // Quando ele passa/com seu alcaz vistoso/traz sempre pedras de sal/no olhar malicioso. / Põe com malícia a sua boina maruja,/ mas se inventa uma carícia,/não há mulher que lhe fuja.//Uma madeixa de cabelo descomposta, / pode até ser a fateixa/ de que uma varina gosta. /Sempre que passa, / o marujo português, /passa o mar numa ameaça/de carinhosas marés.” (“Fado marujo", canta Amália).
Letras como “Colchetes d’oiro ” (canta Frei Hermano da Câmara, Alfredo Marceneiro), “Avé Maria Fadista ” (canta Amália, Pinto Basto), “Maria Madalena ” (canta Lucília do Carmo),“Tia Macheta ” (canta Berta Cardoso) originam fados magistrais. São perfeitas, tendo em conta o seu propósito. E o seu propósito não foi serem grandes poemas, foi serem grandes suportes para fados. Os grandes poemas são outra coisa, servem outros propósitos e, contendo por si sós uma melodia interior, dispensam perfeitamente serem musicados. Que os fadistas sejam prudentes, pois, que os tratem com pinças de ouro, não porque os possam estragar, pois eles erguem-se sozinhos, mas porque a sua carreira pode ficar arruinada se a interpretação não estiver à altura.
Linhares Barbosa, Carlos Conde, Frederico de Brito, Francisco Radamanto, Silva Tavares, o grande Gabriel de Oliveira – o “poeta marujo” – autor da “Sra. da Saúde ” (canta Marceneiro, Amália, Lucília do Carmo) – eram homens “do povo”, como se dizia dantes, e grandes mestres letristas. Linhares Barbosa vivia (mal, infelizmente) da venda das letras para fados que escrevia. Hoje em dia, muitos fadistas, não podendo a eles recorrer, ou a outros que se lhes assemelhassem, mergulham na obra dos grandes poetas consagrados à procura do que cantar. É pena, assim não surgem letras novas. Devia isso que se passa ser a excepção e não a regra. A Amália, que foi a primeira a atrever-se a cantar poetas consagrados, ciente do que fazia, nunca caiu no exagero, nunca se limitou a eles.
Os grandes poemas não ganham nada em ser musicados – não precisam disso. E nós sentimo-lo ao escutarmo-los musicados. No entanto, se o trabalho for bem feito, também nada perdem e é uma maneira de chegarem a quem não os lê. “Com que voz ”, de Luís de Camões, nunca precisou de ser cantado por Amália. Era em si inteiro e autónomo, criação de um grande poeta. Mas Amália ousou cantá-lo e, génio também que era, conseguiu superar a prova. À Amália não tem cabimento impor-se-lhe limites; ela própria era ilimitada. Mas não deu mais qualidade ao poema, pois ele já a tinha toda. Conseguiu foi cantá-lo respeitando-lhe a qualidade.
Uma letra feita de raiz para ser cantada, contudo, como as de Linhares Barbosa ou Gabriel de Oliveira, “sabe” que só ficará completa com a melodia e que, assim, irá ultrapassar imperfeições que possa esconder. No final, tudo estará certo e resultará bem: esse é o grande milagre das canções. Toda a gente conhece a velhinha canção popular: “Ai, que lindos olhos tem a padeirinha ,/ é mal empregada andar à farinha./ Andar à farinha, andar ao calor/oh, que lindos olhos tem o meu amor!” Isto assim, cru, sem a melodia, parece muito fraquinho. Mas todos lhe conhecemos também a melodia – quereríamos nós outra letra para ela? Não, esta é que está certa, não queremos uma letra “de qualidade”, obrigada! A qualidade está em ser o que ela é e em não querer ser mais do que isso.
Poemas que, sendo embora razoáveis, parece que lhes falta qualquer coisa, resultam em óptimos fados – letras do Pedro Homem de Mello como “Povo que lavas no rio ” (imortalizado por Amália, este poema “subiu até ao povo”, nas palavras do autor), “O rapaz da camisola verde ” (canta Amália, Frei Hermano da Câmara) ou “Cavaleiro Monge ” que é um poema menor de Fernando Pessoa. A esses a música traz-lhes realmente qualquer coisa de novo, acrescenta-lhes toda uma dimensão de que careciam.
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