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Carta a Amália Rodrigues

Há já algum tempo, minha boa amiga, não tenho o gosto de a ver.

Mas tenho tido, com frequência, noticias suas dadas por amigos comuns, ou através da Imprensa que, como é natural, se interessa sempre pelo que dizem e pelo que fazem as pessoas como V., sempre alvo certo da curiosidade do público.

A verdade é que, por vezes, também me chegam, a seu respeito, noticias tolas, das que logo se vê serem inventadas por pessoas que, por pouco terem que fazer, se entretêm, com frequência, a inventar noticias e acontecimentos, principalmente quando pensam que eles podem constituir uma «bronca».

Ainda há dias, por exemplo, ao ler a revista «Alcance», me surgiu uma entrevista consigo, assinada por Correia de Morais e, por sinal, muito bem feita. E mais uma vez tive o gosto de apreciar a forma desassombrada como V. diz as coisas, num ar de sinceridade, que chega a parecer-nos quase infantil e que eu, ao contrário do que pensa muita gente, acredito não ser estudado.

Conheço-a há muitos anos e por isso me é familiar a sua maneira simples de dizer as coisas, mesmo as mais complicadas. E, por isso mesmo, nada me admirou verificar que V., a certa altura da citada entrevista, afirmou:
— Você sabe que eu gostava muito do Salazar? Pois gostava mesmo. Isto é, gostava do Salazar como homem, como figura e como presença, porque politicamente não me interessava nada. A politica é um mistério e uma complicação que não quero entender. Sou uma artista e todo o tempo é pouco para dedicar à minha carreira. O que não evita que, no actual Governo, também haja uma figura de que gosto imenso: gosto do Álvaro Cunhal. Gosto de o ver na TV, gosto de o escutar e gosto da sua presença...

Pois, Amália, isso que V. afirmou e que acima transcrevo, tão simples como é, deve ter causado o espanto de muita gente. E, acredite, não faltará quem se tenha interrogado, com pasmo:
«Mas que mulher é esta que gostava do Salazar e agora gosta do Álvaro Cunhal?»

A mim, que a conheço e a todos os seus amigos, a afirmação não ocasionou, creia, um mínimo de pasmo. A Amália pensa assim, pensou alto e disse o que pensava...
Mas, creia, o que mais me impressionou, na citada entrevista, foi a seguinte passagem, em que fala de outros artistas do Fado:
— Você sabe quanto é delicado citar nomes e as situações aborrecidas que se podem criar, por exaltar uns e esquecer outros. Mas não poderei deixar de referir três nomes, «casos muito sérios» da canção nacional: Hermínia Silva, Alfredo Marceneiro e Carlos Paredes. Porque, tal como sou — e nisso tenho muito orgulho — não são fabricados ou postiços: são autênticos. Gosto imenso deles, ouço-os sempre que posso e só lamento não os conhecer inteiramente, para melhor os poder apreciar e sentir... Sabe, se em vez de rapariguinha pobre, tivesse nascido menina rica, passaria a vida entusiasticamente dedicada ao estudo da psicanálise.

Por aqui se vê que a Amália não se esqueceu que nasceu rapariguinha pobre e que continua a gostar dos três artistas do nosso Fado que, nem por serem grandes, são «postiços». Hermínia, Marceneiro e Paredes — três artistas simples, como alguns que se julgam «vedetas» deviam aprender a ser!

Mas a simplicidade e a humildade, V. sabe, não se aprendem. Nasce-se simples, como se nasce artista. E se você, de facto, nasceu as
duas coisas, isso só faz com que suba, ainda mais, na minha consideração e amizade.
Aníbal Nazaré
Carta a Amália de Aníbal Nazaré, publicada em Dezembro de 1974 na revista Plateia.

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