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Vitorino e Aldina na despedida do Bons Sons

Concerts - Agosto 20, 2012
A despedida foi neste domingo e fez-se assim: um homem de punho erguido, e o punho era activista e era indicação musical, a cantar “viva a santa liberdade”. 

O homem era Vitorino, cabeça de cartaz do último dia de Bons Sons e “patrono” da edição 2012 do festival que nos abre as portas da aldeia de Cem Soldos, a poucos quilómetros de Tomar.Naquela sua transparência desarmante, manifestada nos apartes entre canções, no diálogo com os restantes músicos e na interpretação das canções, sempre atenta à força dos versos, o cantor do Redondo colocou, como se esperava, um óptimo ponto final na quarta edição do festival. Que, naquele último dia, teve um momento altíssimo com o fado a céu aberto que, durante a tarde, nos ofereceu Aldina Duarte.

Nos 25 anos passados sobre a morte de José Afonso, Vitorino cantou-o muito. E cantou também fados sobre republicanos anarco-sindicalistas, depois de lamentar que o Governo tenha a desfaçatez de desvalorizar a história do país que dirige – “não há feriado, mas está-se a planear cá uma festa” para o próximo 5 de Outubro, atirou. Cantou essa admirável “Sul” como recordação da força do romantismo, do sol e da vida plena perante o pragmatismo totalitário – e se chamam PIGS aos países do sul e à Irlanda, “que é um país do sul lá no norte”, então Vitorino é, citamo-lo, um “orgulhoso porco preto alentejano”. Com o duo de metais formado por Vasco Pimentel e Daniel Salomé dominando os arranjos, ouvimos modas e boleros cantados naquela voz aveludada que serve de contraponto ao sarcasmo e à zanga das palavras entre canções. Vitorino a despedir-se com uma homenagem ao local que o acolheu: “Obrigado por me terem convidado a participar neste maravilhoso, maravilhoso festival.” O público, em menor número pelas baixas que se foram vendo ao longo do dia – mochilas encostadas a paredes, tendas carregadas às costas para carros e autocarros – aplaudiu o elogio. Não poderia ser de outra forma. Durante quatro dias, fomos todos cem-soldenses. Uma condição bonita. Tão bonita quanto intenso foi ver Aldina Duarte a oferecer-nos um dos momentos maiores, altíssimo, do festival.

No palco Giacometti, uma mulher com uma voz sabedora da vida que as palavras têm, totalmente concentrada nelas enquanto o olhar se perdia no horizonte, que era céu, casario e gente sentada e aglomerada naquele pequeno largo de Cem Soldos, cantou tudo o que o fado tem para cantar. Aldina Duarte foi mais do que tocante, foi música viva, tradição no sentido mais nobre do termo: como aquilo que temos de definidor, de mais importante. E, por isso, foi também festa: houve palmas e gente a dançar e o homem da guitarra, esse grande guitarrista chamado Paulo Parreira, sorriu com condescendente bonomia ao sacrilégio – a dança e as palmas eram, na verdade, uma manifestação de apreço, o mesmo do que o que o público lhe dedicou quando, superiormente acompanhado da viola e do baixo, se lançou numa guitarrada em crescendo que deixou o público de queixo caído e Aldina de sorriso aberto enquanto observava os três músicos.

Em “Contos de Fados”, álbum de 2011, a fadista cantou obras da literatura de todos os tempos adaptadas à métrica e à personalidade do fado, forma maior de lhe provar a universalidade. Foi aquilo a que assistimos em Cem Soldos. O divertido “Gato escaldado” em encore, desilusão de amor vencida por mulher de força; aquele “se cantar bastasse, ai meu amor se bastasse” e saber que não basta certamente, mas que liberta e exorciza; e, claro, o próprio “Contos de fados” que resume muito melhor e em poucos versos tudo o que escrevemos acima: “E se os contos são cantados / Se a rima for bem escolhida / Já não são contos, são fados / Já não são fados, são vida.”

Com Aldina Duarte, tivemos o momento superlativo da despedida do Bons Sons. Com Vitorino, tivemos a caução histórica de um dos grandes. Houve José Afonso – “A morte saiu à rua”, “Traz um amigo também” ou “Senhor Arcanjo” –, houve uma banda que ofereceu todo o espaço melódico necessário para que voz de Vitorino, e a postura de Vitorino, sobressaísse – mesmo que o “piano avariado” de Sérgio Costa tenha originado um par de contratempos. Boina, casaco e colete preto, Vitorino foi exactamente aquilo que esperávamos dele: o cantor de amor sob tantas formas (do coronel que se comove por tudo e por nada que lhe ofereceu António Lobo Antunes à ternura de “Menina estás à janela”, chegada em encore); o homem da memória revolucionária (dos republicanos aos de Abril); o sonhador com desejo de aventura, inspirado em Corto Maltese; e o cantor do sul, seja ele o representado pelo Mediterrâneo, seja o da amplitude da paisagem alentejana que é presença tão forte da sua música. Ouvimos “Sul” ou “Queda do império” e encontramos canções que tocam como standards inscritos na nossa genética comum. Património que se ergue, actuante, e que Vitorino mostrou de forma generosa, actuante, empenhada.Tal como com Fausto, há dois anos, fechou-se o ciclo. Viajámos pela diversidade do presente português e, no final, reencontrámos alguém que ajudou a construir uma identidade, alguém que reconciliou um país com a sua tradição popular.

Quatro dias depois, o Bons Sons, festival diferente (podemos dizê-lo sem medo de incorrer em crime de cliché), chegou ao fim. Tivemos, no último dia, os Passos em Volta a gritar a sua liberdade rock’n’roll no Palco Eira, tivemos a habitual avalanche de amadores a dar os primeiros toques em público no Palco Acústico, vimos as canções delicadas dos Birds Are Indie – e são mesmo – na Igreja de São Sebastião, e a visita ao tradicional de fusão dos Xícara, no palco Lopes Graça, e dos Pé na Terra, no Eira. Uma belíssima viagem, este festival montado em (e por) Cem Soldos.Público


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