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Carlos do Carmo: fadista revisita 50 anos de carreira

Interviews - Novembro 09, 2013
Lisboa Menina e Moça, Canoas do Tejo ou Nova Feira da Ladra são apenas alguns dos temas que marcaram indelevelmente o fado ao longo das últimas décadas.

O seu intérprete, Carlos do Carmo, dispensa apresentações. E, por ocasião dos 50 anos de carreira, e dos dois concertos comemorativos no Centro Cultural de Belém, a 30 de novembro e 1 de dezembro, recebeu-nos em sua casa para revisitar algumas memórias de um percurso ímpar no panorama musical português.

O fado tem muitas vezes associado a ideia de destino e, por isso, é inevitável perguntar quando é que sentiu que o seu destino era o fado?
Foi relativamente cedo. Comecei a cantar o fado aos 23 anos e um par de anos depois ficou claro na minha cabeça que havia de ser esse o meu destino. O início foi feito timidamente e de forma amadora, mas o público aceitou-me muito bem. Até hoje.

Recorde-nos a sua primeira gravação.
O meu primeiro disco era um single, inserido num disco do muito popular Grupo Mário Simões. À época editavam-se discos de 45 rotações com quatro faixas e eu gravei um fado de minha mãe [Lucília do Carmo] acompanhado, imagine, por piano, guitarra elétrica, bateria, baixo e um coro vocal. Uma autêntica loucura… mas que passava na rádio de manhã, à tarde e à noite…

Que fado era esse?
Chamava-se Loucura, um dos grandes fados de minha mãe, com autoria de José de Sousa, e o único que eu sabia cantar à época.

O seu segundo disco também não foi uma gravação propriamente convencional para aquilo que era o fado…
Nada mesmo. Foi gravado com uma orquestra sinfónica, dirigida por um grande músico, o maestro Joaquim Luís Gomes, referência, infelizmente esquecida, da nossa música ligeira. Foi também um grande sucesso junto do público e isso convenceu-me nitidamente que este seria o meu caminho. A partir dai, nunca mais parei…

Mas, ao que se sabe, o seu pai tinha outros projetos para si…
Infelizmente o meu pai faleceu antes de eu ter abraçado este percurso. Mas importa referir que mais do que ter projetos para mim, o meu pai delineou-os muito bem. Quando acabei o então 7.º ano do liceu, mandou-me estudar idiomas para um colégio na Suíça. Era um sítio para filhos de milionários, e sabe-se lá os sacrifícios que meu pai e minha mãe fizeram para eu poder estudar ali. Em relação ao fado, quando era miúdo e cantava, o meu pai emocionava-se muito, mas deixava bem claro: “mais artistas na família, não!”. Hoje, e penso não estar enganado, estou certo que estaria muito orgulhoso com a decisão que tomei. Até porque, para ele, um princípio fundamental era que qualquer coisa que fizéssemos na vida fosse bem feito.

E a sua mãe? Como é que depois dos sacrifícios feitos para que tivesse uma vida, digamos, mais convencional, encarou a decisão de ser fadista?
Com a morte do meu pai, fui chamado à gestão da casa de fados [O Faia] dos meus pais. A minha mãe, que achara alguma graça aos meus primeiros passos no fado, era a vedeta, o grande chamariz, mas incapaz de assumir sozinha a gestão da casa. Passado uns tempos, comecei também a cantar lá e, como os grandes fãs dela – que eram pessoas com um entendimento superlativo do fado – lhe diziam “o teu miúdo tem jeito”, isso foi acontecendo com maior regularidade. Poucos anos depois, juntávamos na casa públicos muito diferentes, uns que vinham pela minha mãe, outros por mim, o que era extremamente interessante. Objetivamente, em relação à aceitação dela da minha vontade de ser fadista, penso que só aconteceu devido às considerações de três mestres: o Alfredo Marceneiro, que gostava muito de me ouvir e chegou a ser meu conselheiro; o Frederico de Brito, que acabou por escrever-me fados fabulosos e dizia à minha mãe “Lucília, o teu rapaz tem futuro!” – e como ele contribuiu para esse futuro! –; e o Joaquim Campos, um contemporâneo do Marceneiro, que um dia vai à nossa casa de fados para ouvir a minha mãe e me descobre como fadista. Com o apoio destes três grandes, a minha mãe acabou por aceitar a decisão.

Como é que recorda essas noites n´O Faia, lado a lado com a sua mãe?
Com grande saudade. Era formidável ter dois públicos na mesma casa de fados, o meu e o dela. Os da minha geração eram surpreendidos com a qualidade de fadista da minha mãe e os da geração dela diziam-lhe “o teu filho canta cada vez melhor”. Foram 20 anos a cantar quase todas as noites. E foi uma grande oficina – sem microfones, sem luzes, sem artifícios, com o fumo dos cigarros e dos charutos. Uma verdadeira escola…

Como é que foi passar desse ambiente para os grandes palcos?
Lembro especialmente um concerto em 1980, no Olimpia de Paris. O Gilbert Bécaud ficou muito surpreendido com a forma como eu preparei em cerca de duas horas o cenário, as luzes e tudo o resto, e geria tudo isso durante a atuação, e pergunta-me: “de onde é que tu desembarcaste?”. Eu respondi-lhe: “tu estás num país de cultura, onde os músicos estão habituados aos grandes palcos; eu estou a pisar um grande palco depois de anos a fio a cantar nas condições mais improváveis”. E contei-lhe que cheguei a atuar em sítios onde, quando não havia sequer colunas de som, a voz era transmitida por cornetas. Penso que isto explica como foi importante para mim a aprendizagem em condições pouco convencionais e depois passar para os grandes palcos. Foi isso que fez de mim um “bicho de palco”. Tanto que, onde me sinto como peixe na água é sobre o palco, e ao longo dos anos tenho dispensado o psiquiatra porque é ai, precisamente, o sítio onde faço a minha catarse.

1977 é um ano incontornável na sua carreira pelo lançamento daquele que será, porventura, um dos álbuns mais citados da música portuguesa, Um Homem na Cidade…
Essa é uma apreciação vossa, não minha… Eu fiz tantos outros discos! É certo que há cantores que ficam famosos por um tema e eu tenho um disco inteiro… Mas é como se limitássemos os grande discos de Amália ao Busto e ao Com que voz, esquecendo que ela gravou outros álbuns maravilhosos.

Mas reconhece que, na sua carreira, é um momento incontornável, até pela ligação criativa ao José Carlos Ary dos Santos.
Claro que sim. Que bom na vida é olhar para trás e afirmar que tivemos alguns privilégios. Eu tive alguns, e um deles foi ter-me cruzado com o José Carlos. Foi crucial para mim e para o fado. Um Homem na Cidade nasceu da vontade dele de escrever sobre Lisboa e fazer um álbum conceptual sobre a cidade, mas, sobretudo, de disfrutar da liberdade conquistada no 25 de Abril. Eu percebi o espirito, embora tivesse sido forçado a travá-lo em momentos em que ele resvalava para o discurso panfletário. O José Carlos tratava-nos por “sobrinhas” – ele era a “tia velha” – e, em resposta às minhas objeções, dizia: “acho que a ‘sobrinha’ está muito exigente e um pouco reacionária”. Mas fi-lo ver que devíamos fazer um disco que perdurasse e que, ao longo dos anos, fosse capaz de ser sempre atual. E ele aceitou isso muito bem. Depois, com a sua genialidade, aconteceu o resto e, apesar de muita gente não acreditar, houve letras de fados naquele disco escritas em pouco mais de 45 minutos. Porque ele não era só um génio, era também um repentista. Pessoalmente, foi um grande amigo, um homem insubstituível, de quem sinto uma enorme falta.

O que é também muito interessante no disco são os autores das músicas serem compositores pouco ou nada ligados ao fado, como o Fernando Tordo, o Paulo de Carvalho ou o António Vitorino de Almeida…

Os grandes autores do fado clássico tinham desaparecido, portanto fomos à procura de novos músicos, pessoas oriundas dos mais variados géneros. Isso tornou ainda mais maravilhoso fazer esse trabalho. Foi, na verdade, uma experiência inesquecível… Mas, deixe-me dizer que das minhas ligações criativas ao José Carlos Ary dos Santos, lamento a pouca atenção dada a um disco chamado Um Homem no País [1983], que gravámos já com ele um pouco diminuído, mas ainda assim fabuloso. Era um disco muito à frente do tempo, louco mesmo…

Para além desses discos que fez com o Ary dos Santos, há algum outro de que guarde uma memória especial?
Poderia citar muitos outros. Mas gosto especialmente do Mais do que amor, é amar [1986], onde reuni alguns dos fados clássicos, aprendidos e ouvidos quando criança, e coloquei sobre esses mesmos fados versos de grandes autores portugueses que nunca haviam sido cantados, como Teixeira de Pascoaes, Antero de Quental ou José Saramago. Isso aconteceu numa altura em que o fado não estava a dar, o que fez com que esse disco esteja praticamente esquecido.

Ao longo destes 50 anos, nunca se cansou de pesquisar no fado, e até de enervar os puristas…
Às vezes, as pessoas pensam que tenho o objetivo de inventar a pólvora, de causar danos… Mas não é nada disso. Dentro da história do fado, cada pessoa tem a sua e a minha é esta que fui construindo ao longo destas décadas. Desde criança que ouvi cantar as grandes figuras do fado, que o faziam de uma forma absolutamente inesquecível, pelo que assumo ter pelo fado tradicional um enorme respeito. Contudo, se essa gente maravilhosa cantou o fado daquela forma, o que é que eu poderia acrescentar ao fado? Por isso, assumi, por exemplo, cantar o “fado vianinha” com uma orquestra, convidar um músico extraordinário como o Carlos Bica [contrabaixista de jazz] para tocar comigo, ou, como aconteceu na Alemanha, cantar fado acompanhado por uma orquestra de sopros. Vejo o fado tradicional como o meu alimento básico, mas tenho que me motivar e por isso sou, e serei sempre, um pesquisador.

Como estamos prestes a comemorar os dois anos da distinção do fado como património imaterial da humanidade, não posso deixar de perguntar como foi ter sido, ao lado de Mariza, o embaixador dessa candidatura vitoriosa?
Foi uma enormíssima honra e, quando se concretizou, foi uma alegria sem paralelo em toda a minha vida, exceção feita às de ordem pessoal, mas superior às da minha carreira. Foi uma conquista irrevogável e inapagável, e como sempre disse desde o início, Lisboa é uma cidade que tem, entre outras coisas, uma canção que é seu património, que é património dos portugueses e, desde há dois anos, de toda a humanidade.

A história de como se tornou embaixador da candidatura é bastante curiosa. Quer partilhá-la?
Em 2004, o Dr. Santana Lopes, presidente da Câmara Municipal de Lisboa à data, anunciou numa sessão de Câmara que seria lançada a candidatura junto da UNESCO e os embaixadores seriam Carlos do Carmo e Mariza. Nessa noite, uma jornalista telefona-me para casa e diz-me: “Como está, Sr. Embaixador?” E foi assim que soube, sem ter previamente conhecimento de nada. Como gosto muito pouco de brincadeiras com o fado, fui saber se a coisa era mesmo para ser levada a sério e, a partir dai, arregaçámos mangas e deitámos mãos à obra, agregando toda, mas mesmo toda a gente do fado, desde os artistas às associações e agremiações, passando por estudiosos e académicos. Até fiz algo que não está minimamente na minha maneira de ser que foi telefonar ao Dr. Balsemão a pedir-lhe o apoio da SIC. Contactei também o diretor da TSF e a Antena 1, e conseguimos, ao longo de 6 anos, o ruído de fundo essencial para levar a bom porto a candidatura. O trabalho de todos os envolvidos foi de tal modo bem feito e com tamanha qualidade que impressionou significativamente o comité de avaliação.

Antes da candidatura, houve a “construção” de um museu para o fado. E, o Carlos do Carmo teve um papel determinante nesse projeto…
A fundação do Museu do Fado e da Guitarra Portuguesa, há 14 ou 15 anos, gerou uma enorme hostilidade junto da família do fado, que desconfiava dos “doutores” que iam invadir o território. Foi preciso construir uma relação de confiança, e esse papel coube à Dra. Sara Pereira, diretora do museu, que com o seu caracter agregador o foi fazendo. A dada altura, eu próprio dei um impulso para fazer dali a “nossa casa”. Aquando da morte de minha mãe, e como ela não era uma pessoa religiosa, tentei saber se era possível que o corpo saísse do museu para o Talhão dos Artistas no Cemitério dos Prazeres. E isso aconteceu. Logo a seguir, doei todo o espólio dela ao museu, Esta atitude motivou uma enorme confiança junto dos artistas e dos seus familiares, tendo muitos deles efetuado doações que permitiram construir um espólio que é já bastante assinalável.

Voltando à sua carreira, e como antes de iniciarmos esta entrevista, nos disse já não ser um cantor da moda, lembro que um dos temas mais tocados nas rádios portuguesas ao longo deste ano é Os Velhos do Jardim, um dueto com o Rui Veloso…
Uma surpresa para mim, sobretudo quando me disseram que era das canções mais tocadas na Rádio Comercial que é, ao que consta, a rádio mais ouvida a nível nacional. Foi muito engraçado, porque o Rui telefonou-me um dia a dizer que me ia enviar uma canção e se eu gostasse poderíamos gravá-la juntos. Confesso que, apesar de ter integrado um álbum do Rui, eu não a conhecia, pelo que, quando senti aquelas belíssimas palavras do Carlos Tê foi inevitável aceitar gravá-la.

Antes de falarmos um pouco sobre os concertos do CCB, é importante assinalar que no próximo dia 4 de novembro é lançado o seu novo disco Fado é Amor. O que nos pode contar sobre este trabalho?
O disco vai ser lançado, por coincidência, no dia de anos da minha mãe. Mas não foi uma decisão minha, foi a editora que apontou essa data. E, apesar de não poder falar muito sobre o disco, o que é interessante é a minha mãe estar em dueto comigo numa das faixas. Graças a estas novas tecnologias, isso é possível. Mais sobre este trabalho: estou rodeado de 10 miúdos e miúdas que cantam fados comigo. Há ainda um dvd sobre os bastidores do disco que é divertidíssimo.

No dia 30 e no dia 1 de dezembro, há concertos comemorativos de 50 anos de carreira. Como vão ser estes dois espetáculos tão especiais?

Antes de mais, o público sensibilizou-me profundamente, porque continua a ser tão generoso comigo que já esgotou o concerto de 30 de novembro. Daí a data extra. Sobre os concertos, pretendo fazer uma síntese deste percurso. Para isso, terei comigo a Orquestra Sinfónica Portuguesa, dirigida pelo maestro Vasco Pierce de Azevedo, que me irão acompanhar nalguns dos fados mais populares e consagrados da carreira. Terei os meus “meninos”, o José Manuel Neto, o Carlos Manuel Proença e o José Marino Freitas, um trio de guitarristas maravilhoso que me acompanharão em fados que ainda estou a selecionar. Por fim, vou ter um grande músico do mundo chamado Antonio Serrano. Para quem não sabe é espanhol, habitual colaborador do Paco de Lucia e é um exímio tocador de harmónica. Conheci-o num festival de jazz na Andaluzia, e, confesso, deixou-me impressionadíssimo.

Percebi que recebeu com enorme satisfação a notícia de ter esgotado o concerto de 30 de novembro…

Foi com muito espanto. Afinal, como lhe disse, não sou um cantor da moda nem um miúdo que apareceu agora e está a dar… É verdade que pensámos nas dificuldades que as pessoas estão a passar, e os bilhetes têm preços acessíveis. Mas não deixa de ser surpreendente que, sem grande promoção e a quase dois meses de distância, tenhamos esgotado o Grande Auditório. Agora, espero que se justifique a decisão de termos avançado para um segundo concerto. Cabe ao público dar a resposta. Frederico Bernardino (Agenda Cultural de Lisboa )


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