Júlio Resende. "A Amália vai ouvir-se eternamente"
Porque escolheu revisitar o repertório da Amália para o seu primeiro álbum a solo?
Porque percebi que a palavra "solo" tinha a ver com a palavra terra. O solo onde me movo, onde nasci, onde existo, onde me construo, interajo. Tendo em conta que estava a trabalhar no fado já há alguns anos e a descobrir e investigar mais este mundo e o que queria dizer, decidi juntar essas duas valência.
Um trabalho de solo, a solo, mas que nada tem nada de solitário.
O acto da performance é bastante solitário. Mas o que está em causa na reunião de todos esses factores não deixa o processo ser solitário. Sinto-me acompanhado pelas minhas raízes.
A figura de Amália é central neste disco. O que quis resgatar para o piano?
Uma alma imensa, uma luz que consegue iluminar. A Amália é uma espécie de Sol que ilumina toda esta viagem sobre trajecto português, a musicalidade portuguesa. Queria inspirar-me ou tê-la enquanto luz.
E como se põe um piano a soar a fado?
É das partes mais difíceis, na verdade. Eu apenas tentei, não sei se consegui. Havia muitos temas que não eram fáceis de pensar ao piano, como o "Mariquinhas". Tentei não perder a canção. Sobretudo tentei cantar as canções como elas mereciam, em emoção e intensidade, mas ao mesmo tempo viajar. A ideia era fazer o disco a solo o mais pessoal e mais forte possível, de mim para mim, claro.
Pensando no seu percurso musical, que começou na música clássica e
depois se ligou muito ao jazz, revê a sua identidade neste álbum?
É um disco pessoal por ser português, ou seja, é um disco que é feito por um pianista português e que provavelmente só poderia ser feito por um pianista português. Não é que um pianista japonês ou americano não pudesse fazer um disco de fado, mas seria muito mais difícil isso acontecer, e se calhar muito menos orgânico, natural. E depois o fado, pessoalmente, é uma coisa muito intensa, que sempre me fez comichão na alma e que há algum tempo andava a descobrir melhor e a tentar transpor para o piano.
O fado "Medo" vai buscar a voz da própria Amália. Como é que isto aconteceu?
Estava em casa a inspirar-me, a pôr ao piano esse canto que a voz da Amália oferece como inspiração. E nisto tive um momento de pena a pensar que não poderíamos tocar os dois juntos. Pensei: "Se tivesse a voz dela se calhar poderia fazer uma nova abordagem a um tema que ela já tivesse cantado e ia parecer que estamos vivos."
E depois foi atrás disso?
Sim. A primeira coisa que a editora disse foi que não. Mas eu pedi para tentar e quando eles ouviram disseram que sim.
E a composição da música foi feita com a voz da Amália como guia?
Este tema é uma composição instantânea, como é a improvisação. Não escrevi a composição, não tenho partituras de nada, na verdade. Vai ser sempre uma coisa nova. Este disco tem essa tarefa, de voltar a olhar para as coisas. Ao mesmo tempo senti uma enorme responsabilidade, que já sentia antes, e tive de ter alguma coragem para enfrentar essa responsabilidade que eu próprio criei. E depois uma bênção. A Amália vai ouvir--se eternamente. É um coração que vai ouvir-se de um modo sempre estrondoso dentro de cada um.jornal i