Anita Guerreiro: "Digam de mim que fui sempre boa rapariga"
Bebiana Guerreiro Rocha nasceu numa cave defronte ao Hospital do Desterro, freguesia da Pena, em Lisboa, cresceu feliz, «miúda do Intendente», filha mais velha de um marceneiro e de uma alentejana de voz doce. Fascinava-a o fado, as marchas populares, as festas na praça, os teatros de bairro. Aos 7 anos distinguia-a a voz segura e uma alegria que ainda hoje não sabe explicar. Aos 17, estreava-se, profissional, com dois fados de Amália que nunca mais cantaria, porque só gosta de cantar o que é seu. Entrava em palco Anita Guerreiro, nome que a levou de sucesso em sucesso, quase sempre com Lisboa na voz. Sucesso, amor e desamor, perda definitiva e sonho adiado, desalento e engano. E a alegria de infância, reencontrada mais tarde, sob o sol de África e na vida do circo, ao lado da paixão que nem a Alzheimer conseguiria apagar. Anita Guerreiro Cardinali, vivida uma vida, mantém a firmeza e até a alegria na voz. Resiste. Mas a solidão já pesa .
Vamos começar por uma tarde de dezembro de 1952, a tarde em
que Bebiana Guerreiro Rocha, de 17 anos, se apresenta como candidata ao
passatempo «Tribunal da Canção» e sai de lá já Anita Guerreiro.
_Esse passatempo fazia parte de um programa radiopublicitário muito popular, O Comboio das Seis e Meia,
e quem me levou, às escondidas do meu pai, claro, foi uma vizinha
minha, que me incentivava muito. O produtor do programa era o José
Marques Vidal, que, juntamente com Miguel de Oliveira e o José Castelo,
fazia as avaliações. Logo no ensaio, o Marques Vidal interrompeu-me e
levou-me aos outros dois, que estavam numa sala ao lado. Depois de me
ouvirem cantar, logo decidiram que eu já nem concorria. Estrear-me-ia,
isso sim, na quinta-feira seguinte no Café Luso. E também logo me
escolheram o nome. Já saí dali Anita Guerreiro.
Que cantigas levou para esse concurso?
_Dois fados da Amália de que gostava muito – o Fado da Saudade e Foi Deus. Repeti-os na estreia.
Os fados da sua sorte?
_Se eram, nunca mais os cantei. Aliás, nunca mais cantei Amália.
Por alguma razão especial?
_Porque sempre preferi cantar as minhas coisas e porque tive a sorte de
chegar a esta profissão numa altura em que grandes maestros e poetas
compunham para o teatro de revista. Amadeu do Vale, Fernando Carvalho,
mestre Tavares Belo e tantos outros, assinavam êxitos atrás de êxitos.
Estreou-se então, numa quinta-feira, ainda de dezembro, no Café Luso. Qual foi a reação do pai, que não sabia de nada?
_Quando cheguei do concurso, feliz que eu estava, fui esconder–me no
quarto. Não que tivesse medo do meu pai – ele nunca me tocou – mas
tinha-lhe respeitinho. «Ó ti Rocha», disse-lhe a minha vizinha, «olhe
que a Biana [chamavam-me assim] foi ao Comboio das Seis e Meia e
nem cantou. Querem que ela se estreie já na quinta-feira. Vai como
artista.» A primeira reação não foi boa mas quando me ouviu dizer que
gostava muito de ir, consentiu. «Mas que seja uma vez sem exemplo.» E
olhe que ia sendo.
Então, correu mal?
_A minha parte correu até muito bem,mas logo por azar saiu uma lei que
proibiu os programas radiopublicitários, quer dizer, eu a chegar e
aquilo a acabar. Fiquei muito triste até saber que os produtores do
programa iam promover uma tournée pelo Algarve e queriam levar-me no
grupo. O problema era convencer o meu pai a deixar ir uma filha de 17
anos para uma tournée, ele que não confiava nada naquela gente. Fui
salva pelo Tony de Matos e a Maria Sidónio, a sua mulher na altura, que
se comprometeram a tomar conta de mim durante aqueles dias. E tomaram.
Nessa altura, com apenas 17 anos, já tinha decidido que seria aquela a sua vida?
_Nessa altura sim, era o que eu gostava de fazer, mesmo tendo percebido
que seria uma vida cheia de surpresas, nem sempre boas. E percebi isso
logo nessa tournée, quando a coisa deu para o torto e faltou o dinheiro
para pagar um hotel. Estávamos em Évora e enquanto alguns regressaram a
Lisboa para a resolver a situação, eu e outros ficámos retidos, a
servir de penhora perante o hotel.
Muitas surpresas, sim. De repente, havia uma miúda nova na cidade. Foi bem recebida?
_Fui muito bem recebida, era muito nova, era gira, não cantava mal, e
com tantos programas de rádio de discos pedidos cheguei depressa ao
público. Depois, em Lisboa, quer os ceguinhos quer as cauteleiras eram
grandes divulgadores da música popular e dos fados e, em 1954, o convite
para madrinha das marchas popularizou definitivamente o meu nome.
O pai estava finalmente convencido?
_Para o meu pai começava a ser uma alegria enorme, enfeitiçou-se com
aquilo. Desconfiava tanto do teatro e, vejam lá, nunca sentiu
necessidade de entrar no meu camarim. Nunca me bateu palmas mas chorava
ao ouvir-me cantar. Em miúda, cantava a costureirinha de lingerie, agora era a sério.
Vamos ao tempo da costureirinha de lingerie, mais atrás, até. Quem era a Biana, a criança tão popular no Intendente, o bairro onde cresceu?
_Era a «miúda do Intendente» – chamavam-me assim – nascida numa cave,
defronte ao Hospital do Desterro, filha mais velha de um marceneiro
minhoto e de uma dona de casa alentejana, pobre mas muito alegre,
sempre a cantar e a rir. Posso dizer que era uma criança feliz, eu e as
minhas duas irmãs – mais novas dois e cinco anos. Punha entusiasmo em
tudo o que fazia, inclusivamente a trabalhar.
Começou a trabalhar com que idade?
_Com 10 anos, mal terminei a escola primária e logo na costura.
Primeiro, com uma vizinha e depois, por iniciativa própria, numa casa de
cintas e espartilhos. Lembro-me de ver a minha mãe chorar quando
anunciei que arranjara emprego. Fui ganhar três escudos. Mas o que isto
diz é que cedo percebi que era importante ajudar os meus pais. Ainda
mais nova, nas férias da escola, levantava-me às cinco da manhã para ir
com uma vizinha para o Mercado da Ribeira. Essa senhora apreciava o meu
esforço e quis até adotar-me. Os meus pais não deixaram.
E a voz, quando é que o Intendente repara na voz da miúda?
_Uma vizinha da altura, mulher de um toureiro, nascida na Mouraria,
puxava muito por mim, como se eu precisasse. A verdade é que andava
sempre a cantar. Lembro-me de uma senhora muito rica dizer que gostava
muito de mim por causa dessa minha alegria. Que eu cantava não era,
portanto, segredo para o bairro, mas a primeira vez que cantei a sério
foi na escola e foi o hino nacional, a solo. A coisa correu tão bem que
passei a cantar o hino todos os sábados. Nessa mesma altura, fiquei
feliz quando um grupo de protestantes lá do bairro me pediu para fazer o Filho Pródigo e a Rosa do Adro. Adorei.
Ainda antes dos 12 anos começou a fazer teatro amador no Sport
Clube do Intendente. Já na altura o seu grande fascínio era pela
representação?
_Sim, sempre foi e sempre o disse. E a minha mãe sempre incentivou a
representação. Ela cantava as suas modinhas alentejanas com uma voz
muito doce. Lamento tanto que ela não tenha assistido ao que veio
depois. Ainda hoje penso nisso. Teria sido a mulher mais feliz do
mundo.
Em 1948, perdeu a mãe. O pai, uma irmã de 10 anos e outra de 5
ficaram ao cuidado de uma menina de 12. O que melhor recorda desses
dias?
_Fui mulher muito cedo. A febre tifoide matou a minha mãe. Os
medicamentos eram caros mas, custassem o que custassem, o meu pai
roubaria se fosse preciso para os comprar. O problema foi estarem
esgotados e a minha mãe não tomou os necessários.
Morreu em pouco tempo, aos 34 anos. Era bonita e tinha a voz doce. Houve
um tempo de choque, terrível, depois fui aprendendo a tomar conta da
casa.
Fisicamente é parecida com a mãe?
_Eu era gira. Faltam-me fotografias dessa época, e gostava muito de as
recuperar. Entreguei-as a dois jornalistas que queriam, diziam eles,
escrever a minha vida. Nunca mais os vi, nem a eles nem às fotografias. E
as poucas que deixei em casa do meu pai, depois da zanga com a minha
madrasta, ficaram perdidas.
Madrasta é uma palavra terrível.
_Eu até pensava que a conhecia bem mas enganei-me. Não tanto por mim,
porque era eu quem entrava com o dinheiro para a casa – para o teatro ou
ia com ela ou com o meu pai, sempre controlada, e o cheque do meu
ordenado nem o via, davam-me oito tostões para ir para a Emissora
Nacional e para baixo que viesse a pé. Mas as minhas irmãs foram muito
maltratadas. Sobretudo a mais nova. A minha madrasta foi mesmo madrasta.
Depois da zanga familiar vai viver para onde?
_Para casa da minha irmã, para Almada. E há um episódio dessa altura,
uma altura difícil, que não posso esquecer. Estava então a fazer uma
revista com o António Silva. E um dia ele bate-me à porta do camarim:
«Menina, a D. Josefina [senhora com quem era casado] manda dizer que
não tem necessidade de ir dormir a Almada. Tem a nossa casa à sua
disposição.» Abracei-o a chorar. Isto é autêntico, fiquei-lhes
eternamente grata.
Às dificuldades da vida pessoal contrapuseram-se sempre as facilidades da vida profissional. Chegava, via e vencia?
_Sempre consegui as coisas sem grande esforço. E onde ia, ficava.
Naquela tournée em que acabámos retidos num hotel, conheci um mocinho,
pianista, que sabia do meu gosto pela representação. De tal forma que um
dia apresentou-me à tia, uma senhora que dirigia o Teatro Variedades,
que por sua vez me levou ao Maria Vitória e apresentou ao Eugénio
Salvador. Fiquei logo ali e o elenco era este: António Silva, Irene
Isidro, Teresa Gomes, Barroso Lopes, Humberto Madeira. Como disse, onde
ia ficava.Quando se nasce para uma coisa não há nada a fazer.
De repente, vê-se no meio dos seus ídolos.
_Mas sempre a ajudar as costureirinhas para as estreias ou sempre que era preciso arranjar a minha roupa.
E as amigas de escola, pediam-lhe autógrafos?
_Claro, mas eu era a mesma de sempre.
Lembra-se da Maureen O’Hara, que conheceu no filme Lisbon, de 1956?
_Muito simpática, falou comigo em espanhol. Nesse filme há uma gaffe
enorme. Dizem a certa altura que o fado é a canção que os brasileiros
mais apreciam. Vejam lá. Antes de cantar estava muito nervosa, mas eram
tempos bons, esses.
Eram tempos também de ditadura. Teve alguma canção censurada?
_Há uma que me vem logo à memória porque no ensaio da censura a letra
foi cortada de alto a baixo. Era do José Viana, chamava–se Povo que
Cantas o Fado e tinha este estribilho: «Fado é esta raiva amordaçada,
esta vileza algemada a que chamamos saudade/o fado é este grito
angustiado de um povo escravizado, que ainda crê na liberdade.» A cena
era linda.
Desde sempre ligada às marchas, escapou à tristeza do fado.
_Também cantei coisas tristes mas é verdade que o meu nome é associado a
melodias mais alegres. Por natureza não sou de tristezas ou fatalismos
e isso reflete-se no que canto. E os meus maiores êxitos são alegres.
Casou aos 21 com um homem trinta anos mais velho. Foi paixão?
_Gostava dele mas não foi como com o meu segundo marido. Era um senhor,
muito meu amigo e da minha família, mas foi uma coisa arranjada pela
minha madrasta. Eu andava sempre ou com ela ou com o meu pai, o que
afastava pretendentes e eu também não era muito namoradeira. Tinha uma
ambição: ser mãe.
Foi feliz?
_Não fui mãe. Ainda durou uns dez anos mas depois acabou.
Pepe Cardinalli, cantor de orquestra e ilusionista. Também muito mais velho. Como se conheceram?
_Em Angola, quando fui trabalhar para as tropas. Estive em África duas
vezes. A primeira, em finais dos anos sessenta, por um período de dois
anos, ainda na companhia do meu primeiro marido. De resto, foi aí que
nos separámos e eu conheci o Pepe. E mais tarde, volto a Luanda, onde
fico durante oito anos. E aí nasceu a minha filha.
Depois de tanto tempo à espera.
_Foi maravilhoso. O Pepe, que já tinha três filhas de um anterior
casamento, preferia um rapaz mas ficou feliz. A filha era a cara dele.
Dez anos depois, no Canadá, nasceria o Bruno. Durante mais de trinta
anos fomos muito felizes. Fui muito feliz. Pela família que tinha e
pela vida que levava. Fui muito feliz no circo. Eu sabia o que era
aquela vida porque anteriormente já tinha sido atração no Circo
Mariano. Eu fechava o espetáculo.
Só cantava?
_Só cantava.
O circo é um mundo fechado ou não? Foi bem recebida?
_No início desconfiaram um pouco mas julgo que os conquistei com a minha
franqueza e frontalidade. E não só me adaptei àquela vida itinerante
como gostava. Tinha uma rulote muito bonita, com um avançado, uma casa
com cortinas e tudo. Foram dos melhores tempos da minha vida. Aquela
gente ainda hoje me adora.
Quem é que não adora? Tem inimigos?
_Por acaso não. Dos colegas sempre tive manifestações de carinho. E eu também nunca fiz mal a ninguém.
Tem sido uma madrasta boa?
_Fui e tenho sido. Tenho a certeza disso. As minhas enteadas são minhas filhas e os filhos delas meus netos.
Depois de África, emigra para a América. Primeiro Canadá, onde é
mãe pela segunda vez, agora de um rapaz. Depois, os Estados Unidos.
Como foram esses anos?
_Anos em que para além de cantar foi preciso fazer outras coisas. Por
razões várias um trabalho prometido falhou, e eu e o meu marido tivemos
de resolver as coisas. O Pepe foi trabalhar para uma fábrica de
molduras, eu cantava e fazia limpezas. E olhe que os senhores iam ver-me
cantar. Fiquei com amigos para a vida.
O que a levou a regressar a Portugal?
_Um certo dia o meu marido sentiu-se mal e disse-me que queria regressar
porque queria vir morrer à terra dele. Achei que era birra e um bocado
irritada disse-lhe que sim, eu viria com ele mas os filhos ficavam.
Ambos tinham já a vida organizada, o Bruno, gerindo os bares de alguns
hotéis e a Maria José cantando para bailes. Voltámos então os dois e um
mês depois foi-lhe diagnosticada Alzheimer. Chegaram anos de martírio.
Um dia deixou de me conhecer. Morreu há cerca de onze anos.
Anos de martírio. Foram sete.
_Nunca se está preparado para o que nos espera. O meu marido era um
homem cheio de vida e alegria e força. E agora estava assim. Pedi muitas
vezes a Deus que o levasse.
Não teme a morte?
_Nunca pensei nisso. Peço a Deus que quando me levar não me faça
sofrer. E que quem ficar diga, pelo menos, que sou ou fui boa rapariga.
Porque boa rapariga fui sempre. E quero ser cremada. Não sou católica
praticante mas tenho a minha fé. Em criança nunca me deixaram andar
muito na igreja por causa de uma tia, a quem fui buscar o nome, que teve
um problema com um padre. Mas quando me apetece, entro numa. Várias
vezes, durante a doença do Pepe, pedi a Deus que o levasse. E quando ele
morreu não estive em pranto. Só chorei a morte do meu marido quando,
regressada de uns 15 dias que fui passar com os meus filhos aos Estados
Unidos, entrei no Faia, o restaurante onde canto há 25 anos, e gente a
quem estou eternamente grata, e vi vazia a cadeira onde ele se
sentava. Aí chorei tudo o que não chorei no funeral e que teria deixado
as pessoas tão contentes.
Desde então vive sozinha?
_Completamente.
Com os filhos nos Estados Unidos o que a retém aqui?
_Eu gosto muito do Faia e gosto muito de cantar. É certo que lá também
posso cantar e todos os dias os meus filhos, com quem passo sempre o
Natal, me dizem para ir. Talvez mais depressa do que eu penso tenha de
fazê-lo. Não pelas razões que há uns tempos andaram por aí a divulgar.
Não, eu não estou na miséria. Não estou rica, é claro, tenho
dificuldades porque ninguém ganha o que ganhava, mas trabalho no Faia
há 25 anos e ao fim de cada semana recebo o meu dinheiro. E se precisar
de um prato de sopa também lá o tenho. O problema não é esse. O problema
é que começo a acusar a solidão. Vivo num prédio em que a mais nova sou
eu. Quando alguém tem qualquer coisa toca com as bengalas e lá vou eu
acudir. Mas quem me acode se eu precisar? Estou a começar a sentir a
solidão. E é isso que vai levar-me para fora e deve ser para breve.
Sinto-me em baixo, meto a chave na porta e já não apetece. Só começo a
viver às nove e meia da noite, quando entro no Faia, porque ali é que
eu tenho tudo – os meus colegas, os meus patrões, o meu público. É mesmo
assim. Isto é verdade. Vou fazer 78 anos e os meus filhos estão sempre
em sobressalto. Mas também não quero estragar-lhes a vida. E se eu fico
com Alzheimer, como o pai? Penso nisso tudo.
Como é o seu dia?
_Acordo ao meio-dia. Almoço perto de casa, regresso e depois começo a preparar-me para a noite.
Já não cozinha?
_Nem pensar, não tenho paciência. Até cozinhava bem mas agora não vale a
pena, estragava mais do que comia porque é à mesa que mais sinto a
falta da minha gente. Prefiro ir ao cafezinho, estou com a vizinhança e
depois vou para casa. E também não janto. Quando muito como uma sopa
depois de cantar.
E os amigos?
_Nunca fui de grandes convívios. Vou visitar algumas amigas à Casa do Artista, tenho lá várias, mas já evito. Comovo-mo muito.
E a família em Lisboa?
_As minhas irmãs estão fora. Também passam mal. A família do meu marido
anda nos circos. E também não sou de andar pelas casas dos outros.
O Faia é a sua casa?
_É a minha casa e a minha gente. São 25 anos.
Quem tanto cantou Lisboa só podia morar no Bairro Alto?
_Eu gosto do Bairro Alto mas com esta criançada já lá tenho passado
situações desagradáveis. Miúdas e miúdos deitados no chão, em muito mau
estado, a alguns deles até já dei Alka-Seltzer, para ver se se
recompõem. Também fui jovem mas hoje exagera-se muito. Nunca fumei, fiz
sempre uma vida regrada e penso que isso é o que me tem preservado a
voz.
Quando olha para trás há algum arrependimento?
_Sinceramente não.
E olhando para a frente, o que lhe apetece ainda fazer?
_Não tenho aspirações a nada. Não gostava de fazer mais telenovelas
porque tenho noção de que agora já não estou preparada para isso.
Bastava pensar que não seria capaz de fixar um texto para ficar muito
stressada. Desde que levei uma anestesia geral e que, por causa de uma
infeção, recorri a vários antibióticos, a minha cabeça já não é a mesma.
Perdi muita memória. Seria incapaz de decorar várias páginas para a
manhã seguinte.
Em 1969, cantou a sua cantiga mais emblemática. Cheira a Lisboa nasce como?
_Os emigrantes chamam-lhe o segundo hino. E ainda agora a canto todos
os dias, a pedido dos turistas. A canção tem realmente uma história. O
maestro Carlos Dias mostrou a música ao César de Oliveira para que este
fizesse a letra. E o César estava sem imaginação, tinha acabado de
fazer a Ai Ai Lisboa e não sabia como pegar novamente no tema. E era
isto que ele vinha a pensar certo dia, nas Portas de Santo Antão, onde,
por causa de uma fábrica de bolos, cheirava sempre muito bem.
Cruzaram-se com ele dois soldados que vinham à conversa. Disse um: «Olha
que cheira tão bem»; responde o outro: «Ora, cheira a Lisboa». E foi
assim que o César escreveu o Cheira a Lisboa. Mas a história não acaba
aqui. Há dois ou três anos, estava nos Açores num programa de rádio e
contei esta história. Pouco depois ligou um ouvinte. Quem era? Um dos
dois rapazes que comentaram o cheiro a bolos. Bem, toda a gente chorou.
À época, teve noção de que estava a cantar um sucesso?
_Logo na estreia cantei-a oito vezes. Estava a ver que nunca mais saía de cena.Alexandra Tavares Teles