António Zambujo: O sexto sentido
Interviews - Janeiro 21, 2015
O percurso de António Zambujo contrasta com os tempos modernos. Começou nas casas de fado, gravou quatro álbuns, conheceu auditórios e só ao quinto episódio a sua voz ganhou alcance nacional.
A «Rua da Emenda» vem confirmá-lo como uma das certezas da produção
nacional. Em vésperas dos concertos nos coliseus (19 e 20 de Fevereiro
em Lisboa, 21 no Porto), uma conversa retrospectiva e um olhar sobre
temas actuais como a vitalidade da música portuguesa, a Lisboa turística
e o reconhecimento do cante alentejano como Património Imaterial da
Unesco.
Há um antes e um depois do «Quinto»?
Há um antes e um depois do «Quinto»?
Do ponto de vista comercial, sim. O «Quinto» deu-me uma
visibilidade que não tinha. Permitiu-me que eu tocasse nas grandes
salas, festas ao ar livre e festivais. Antes, isso não acontecia. Do
ponto de vista musical, não. Para mim, há um antes e um depois do «Por
Meu Canto» que é o disco que marca a viragem. O primeiro era um álbum
experimental de fados tradicionais. A minha experiência em estúdio e
discográfica. Não tinha as influências que mudaram a minha forma de
mudar a música. A partir do «Por Meu Canto» começa a pesquisa por um som
que se foi transformando até à «Rua da Emenda».
De álbum para álbum, acrescentas camadas a essa construção.
Os discos são sempre o momento. Cada ano que passa, vais adquirindo
novas experiências. Assimilando novas ideias. Coisas novas que vais
ouvindo e transformam a forma de pensar a música mas o que está para
trás também não se perde. Há sempre qualquer coisa para acrescentar. O
«Rua da Emenda» é uma síntese de tudo o que está para trás e tudo o que
foi adquirido desde o «Quinto».
Por ter havido mais palcos, viagens e encontros, o saldo entre o «Quinto» e o «Rua da Emenda» é maior que em momentos anteriores?
Houve, de facto, muita coisa. Foram dois anos em que fazendo as
contas entre o número de concertos e viagens, passei mais tempo fora do
que em casa. Foi bom.
Costumas referir os encontros nos bastidores dos festivais. Em que medida é que isso te inspirou?
É fundamental. Cá não há muito esse hábito mas em todos os sítios
por onde passámos, houve sempre uma partilha. Há um poema do José Fialho
Gouveia que eu canto em que ele escreve «o que sei foi aprendido/ pelas artes de escutar». Não é só a música, são também as conversas.
A relação com músicos de culturas diferentes transformou a forma de pensar a música?
Muito. Quer na vida, quer na música, és um reflexo daquilo que
ouves. Não só a cantar mas também a conversar. Quando segues alguém como
exemplo - quando descobres que o caminho é por ali -, isso torna-se
mais evidente.
Haver muitos caminhos não pode funcionar como um factor de dispersão?
Pode mas esses muitos caminhos são excluídos à partida. Há algumas opções mas dentro do mesmo género.
Entre estrada e promoção, o ciclo de dois anos e meio do «Quinto» alguma vez causou cansaço? E como foi possível compor durante esse período tão preenchido?
Uma coisa não interfere com a outra. Também me pode surgir uma
música enquanto estamos a conversar como no aeroporto. Não preciso de me
abstrair de tudo para compor. Já a estrada pode ser um pouco
desgastante. Não tem a ver com viagens, é mais com espaços. Neste ano
que passou, tocámos em espaços a que não estávamos habituados como
festivais ao ar livre, feiras, romarias e palcos grandes em cidade ou
romarias com muito público, poluição sonora e luz à volta. Foi uma
experiência nova. Tivemos que passar por um período de adaptação. Alguns
concertos não correram tão bem como gostaríamos; outros correram
surpreendentemente bem. O verão foi muito desgastante. Não saía do palco
muito convencido do que tínhamos feito.
Pode criar rejeição das canções mais batidas?
Pode criar alguma tensão. Nada que não se controle.
Trabalhaste com os cúmplices habituais (os escritores Maria
do Rosário Pedreira e João Monge e os músico Ricardo Cruz, Miguel
Araújo e Pedro da Silva Martins) e trouxeste pessoas novas como o Samuel
Úria e José Fialho Gouveia. Agrada-te a máxima do «equipa que ganha cresce»?
Gosto muito da estabilidade. Ainda por cima, estes com quem
trabalho são pessoas que admiro tanto que não sinto necessidade de
acrescentar. A acrescentar, só fazendo sentido. Há os tais do costume e
juntei o José Fialho Gouveia e o Samuel Úria. O Zé enviou-me umas letras
para ver o que achava, devolvi-as já musicadas e ficou esta do «Viver
de Ouvido». O Samuel Úria porque é alguém de quem gosto. É um excelente
compositor e a música do «Valsa do Vai Não Vás» foi daquelas que me
ficou logo no ouvido.
Não seres um purista do fado, permite-te ser mais flexível a
trabalhar com o Samuel Úria e em paralelo com uma fadista como a Ana
Moura?
Felizmente, não sei como é ser purista. Não seria feliz se fosse um
ortodoxo. Não sei. Não te sei responder...Vejo a música como um todo.
Posso trabalhar com o Samuel Úria, a Ana Moura, o Miguel Araújo, o Pedro
da Silva Martins...é música.
Antes de começarmos a entrevista, dizias que sentiste um
fluxo crescente de público nos concertos e relacionaste esse interesse
com uma reacção ao momento de crise por que estamos a passar.
Sim, para te abstraíres da realidade e procurar algo que te faça
feliz. Hoje em dia, já não será tanto assim. Será porque os músicos
conseguiram convencer o público que a música é válida. Há cada vez mais
público mas hoje pela qualidade da música.
O teu percurso contrasta com o que hoje é comum em que as pessoas ou chegam, vêem e vencem...
(...) um one night stand...(...)
Ou se não vingam a curto prazo são esquecidas. Este já o
teu sexto disco e só ao quinto é que a tua voz se amplificou ao país.
Sentes a música portuguesa mais pujante do que quando começaste?
Sim. Em primeiro lugar, pela qualidade dos intérpretes. Não gosto e
aborrece-me o duelo entre gerações de algumas pessoas mais velhas. «O
antigamente é que era». No outro dia, estava a ver um programa da RTP Memória em
que uma cantora dizia isso. «O cantores antigamente ficavam na memória
das pessoas. Hoje em dia, aparecem e desaparecem». Não concordo nada com
isso. Hoje há muito mais qualidade. Sempre houve música boa e má mas
hoje há muita gente talentosa a fazer coisas super-arrojadas e
originais. Há muita oferta e público para todos. O público do Miguel
Araújo também vai aos meus concertos e aos do Úria e o público da Úria
aos da Márcia.
Um festival como o Sol da Caparica em que participaste é uma síntese desses públicos?
É. O Sol da Caparica não foi uma experiência muito agradável porque
o alinhamento não estava bem feito mas normalmente em festivais é isso
que acontece. É sentires que o público está lá por todos.
Entre músicos essa divisão também parece estar a esbater-se.
Não sei como é a vida de outras pessoas mas no meu caso, sim.
A «Rua da Emenda» tem alguma leitura autobiográfica? A palavra «Emenda» remete para redenção.
Se for, espero nunca entrar nessa rua (ri-se). Espero nunca ter
emenda. Não, a «Rua da Emenda» é mesmo só o lugar. Quando digo isto, às
vezes as pessoas não acreditam mas há uma enorme falta de criatividade
nos títulos e este fez todo o sentido. É a rua onde preparamos os discos
e nos encontramos quando vamos para fora de Lisboa. Quando o Tiago
Cação (tour manager) sugeriu, fez todo o sentido. Não tem mais nenhuma conotação.
O vídeo do «Pica do 7» tem um ar muito turístico. Tens sentido que a imagem de Portugal e de Lisboa no exterior mudou?
Não noto muito isso mas também não procuro saber. Não me preocupo
muito com a opinião dos outros [sobre Portugal] mas noto que é um país
muito apreciado e há determinadas regiões que tenho pena de não serem
mais conhecidas. Fala-se muito de Lisboa, Porto, Algarve e pouco mais. O
que eu noto em conversas informais é a curiosidade sobre Lisboa e
Porto. Falta explorar o resto do país. De Norte a Sul e ilhas, é um país
fantástico.
Essa curiosidade também se estende à música portuguesa?
Tem. Pensámos os dois no mesmo. Curiosamente, nos meus concertos
canto sempre músicas tradicionais do Alentejo e explico às pessoas que é
onde nasci e, muita gente, quer conhecer os lugares através da música.
Viajamos muito e também gosto de apreciar as cidades. A geografia e a
arquitectura ajudam muito mas o que dá vida são as pessoas e a
gastronomia. Nesse aspecto, Portugal é imbatível.
E os vinhos.
Melhor ainda.
Vives em Lisboa há 15 anos. Como é que vês a cidade neste momento?
Continua fantástica e encantadora. (pausa) Ia dizer que está no bom
caminho mas qual é o bom caminho? Há sempre questões por resolver que a
seu tempo serão melhoradas. Está num sítio estupendo. Tens nove meses
de sol. Por mim, só expulsava os homens daqui (ri-se).
Não te preocupa a escalada de preços no imobiliário e
restauração, aliada ao facto de nesta zona (Chiado/Bairro Alto) já se
ouvir falar tanto ou menos português que outras línguas?
É o preço da fama e do sucesso. Tens isto em todas as cidades do
mundo. Em Paris, andas no Champs Elisée e pagas muito mais. Lisboa
continua a ser a capital mais barata da Europa. É normal acontecer.
Tens sentido o fluxo de artistas internacionais a mudar-se para Lisboa?
Sim, tens por exemplo o Marcelo Camelo. Lisboa é uma cidade muito
inspiradora. Deve ser espantosa para os pintores. Não concordo com a
ideia de pagar um balúrdio ao Woody Allen para filmar cá mas sim, o Wim
Wender realizou o «Lisbon Story» que lançou os Madredeus para o
exterior, o Jeremy Irons é um apaixonado pela cidade, o [John] Malkovich
também e é perfeitamente natural. Lisboa é a par de Nova Iorque e Rio
de Janeiro a minha cidade favorita.
Como é que recebeste a notícia da eleição do cante alentejano para Património Imaterial da UNESCO?
Muito feliz. É a minha primeira memória musical e é um tipo de
reconhecimento que me dá uma emoção mas só isso. Não fico deslumbrado.
No Natal, estive lá e era toda a gente a cantar e a falar do património.
Tenho medo que as pessoas congelem e se deslumbrem.
Há três anos dizias-me que o cante estava estagnado. Manténs?
Completamente. Não há uma renovação. Agora, está a aparecer malta
nova a cantar mas ainda falta renovar o repertório. Continua a cantar-se
as mesmas canções de há 200 anos. Não há músicas novas mas há malta com
capacidade e vontade. A renovação não será é feita por mim.
Porquê?
Porque não me apetece (risos).
Não te apetece participar?
Eu participo. Gravei uma música original do Miguel Araújo que o
Rancho de Cantadores da Aldeia Nova de São Bento vai gravar. Desafiei a
Luísa Sobral a escrever uma música que eles também vão gravar. Há coisas
que se vão fazendo mas há muito mais por fazer.
Estar em primeiro lugar no top de música do mundo do iTunes francês já é natural ou ainda merece uma taça de champagne?
Não. Nem merecia antes nem merece agora. A taça de champagne é
quando damos o disco por terminado. Também entrou em Portugal. É sinal
que há público e isso é o mais importante. Vender discos significa que
há pessoas interessadas em ouvir-te mas não mais. Além disso, não sou
grande apreciador de champagne.
O primeiro single foi o «Pica do 7», uma canção escrita por ti e pelo Miguel Araújo para Os da Cidade. Qual é o futuro da banda?
Os da Cidade vão ser só um grupo para tocar ao vivo. Quando nos
apetecer. Já nos encontrámos muitas vezes e escrevemos muitas músicas.
Aí é que fizemos verdadeiros retiros em residências artísticas. Passámos
uma semana em Vila Real e escrevemos umas quinze canções. A maior parte
são minhas e do Miguel mas também há músicas do Ricardo Cruz. Decidimos
não gravar discos como banda. Vamos distribuindo as músicas para mim ou
para ele [Miguel Araújo]. Também podemos dar músicas a alguém se fizer
sentido.
E o encontro com Ana Moura pode repetir-se?
Felizmente, eu e a Ana não temos tempo para pensar num projecto. Será um concerto que haveremos de repetir.
E editar aqueles que deram nos coliseus?
Não há muito essa ideia mas é possível.
Em Fevereiro estás nos coliseus e em Lisboa gravaste o
álbum ao vivo «Lisboa 22:38» num registo mais íntimo. Serviu-te de
preparação?
Curiosamente, aquele formato com o palco na meio leva mais gente.
Mais 300 ou 400 pessoas - não foi por isso que recorremos àquele
formato. 2012 foi um ano bom. Começámos a esgotar duas noites na
Gulbenkian na apresentação do álbum. Depois, foi o meu primeiro disco de
ouro. E o coliseu foi o final do ano. O público gostou muito. Espero
que se repita.
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