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Camané. “Ouvia Doors na rua e, em casa, fado às escondidas”

Entrevistas - Maio 04, 2015
Nunca esqueceu a cara das miúdas que gozavam na escola com o pequeno fadista e que, mais tarde, se renderam ao seu fado.

“Eu sabia que isso ia acontecer”, diz Carlos, Camané, que aprendeu a silenciar a timidez e a viver a vida num “Infinito Presente”, sétimo álbum de estúdio, editado esta segunda-feira, com supervisão artística dos cúmplices de sempre, José Mário Branco e Manuela de Freitas, e duas composições de José Júlio Paiva, revividas pelo seu bisneto.

Ainda conheceu o seu bisavô?
Já não. Nem me lembro do meu avô. Acho que foi a primeira pessoa que ouvi falar, na minha família, que cantava. Conheci um filho, que era o meu tio Vitorino, que cantava muito bem também. Os meus pais cantaram depois de mim. Trauteavam fados em casa. Sempre ouvi falar nele, e sabia-se que havia dois ou três discos perdidos.
 
Chegou a gravar?
Sim. Mais tarde li o nome dele em vários livros sobre fado, que tinha composto duas ou três músicas pelo menos, mas mais nada. Há dois anos, num programa da televisão, falei no nome do meu bisavô e um coleccionador tinha um disco, mas não sabia que ele era meu bisavô. Ligou-me. Consegui ouvir e gostei imenso das músicas. Uma delas tem uma influência muito forte do fado de Coimbra. Ele era da Murtosa e fez um fado espanhol. Nesse adaptei um poema do Fernando Pessoa. Na outra música, que é um fado tradicional, a Manuela de Freitas sugeriu-me um poema do frei António Chagas, do século XVII, que é superactual. É como se fosse um frade a pedir contas a Deus sobre como tinha gasto o tempo. Muitas vezes vivemos a vida toda a pensar tão depressa que acabamos por não dar importância a uma série de coisas. A meio da vida percebemos que temos de vivê-la de outra forma.

 

Acontece-lhe encontrar material antigo mas nada datado?
Sim, sim. Este é completamente actual, até a linguagem. A própria ideia da história é mais actual hoje, até. Naquela altura, para um frade, se calhar era mais complicado, tinha mais tempo para pensar. Hoje, qualquer pessoa pode ser ultrapassada pelo tempo, sentir-se perdida. Esses dois fados foram uma descoberta fantástica.
 
O fado ajuda-o mais a pensar o presente ou a esquecer o passado?
Ajuda a pensar, sim. Normalmente, quando vou para o palco interiorizo o que vou cantar e depois não penso em nada, entro no registo emocional de cada fado que estou a cantar. Mas quando penso nas coisas, no que vou cantar, tem de haver uma identificação muito forte que faça sentido com o que se passa hoje. É uma coincidência engraçada. Este disco fala muito das coisas do tempo. Viver o presente é uma forma boa de viver a vida, não ficar com medo do futuro e não ter a culpa do passado.
 
Já deu por si a pensar se estava a fazer bom uso do tempo?
Sim, já fiz isso várias vezes. Em certas alturas da vida paramos para reflectir sobre nós, até para nos conhecermos melhor, avaliar as prioridades. Estamos sempre a parar. Outras vezes não é necessário ser tão minucioso, mas muitas vezes não se pára. E também não se vive muito. Fazem-se umas coisas. É preciso parar para sentir.
 
Como vê o Camané de há 20 anos, quando lançava “Uma Noite de Fados”?
São 20 anos de discos pensados que começaram aqui, na EMI, onde consegui construir o que queria fazer. Muitas coisas mudaram. Tinha muita dificuldade em lidar com a minha timidez e insegurança e, aos poucos, fui mudando. Não quer dizer que tenha deixado de ser tímido, mas consegui que a timidez não me afectasse. O mal foi melhorando. Tive a humildade de perceber que, quando ia para o palco, tinha de sair de mim para poder entrar no que estava a fazer, libertar-me de medos, fantasmas, egos, para interpretar. Só assim podia crescer como artista. Também não fico agarrado a nada do que está feito. Acho sempre que o melhor está para vir e está tudo por fazer, mas sinto-me hoje muito mais preparado para arriscar. Sinto-me mais feliz.

 

A timidez podia ter condicionado a vida toda?
Sim, sim. Desde miúdo, mas principalmente a partir dos 18 anos. Quando ia cantar para as casas de fado… sentia um medo, as pessoas a olhar. Se estivesse lá um artista que admirasse, era impossível cantar.

 

Chegou a recusar cantar?
Nunca recusei. Hoje sou capaz de sentir coisas parecidas mas, quando começo a cantar, passa-me e tenho prazer. Naquela altura, cantar para mim era um exercício de sofrimento. Mas também sabia que tinha de ser aquilo. Nem sei como consegui ultrapassar. Foi aí que aprendi. Era todas as noites, as pessoas estavam muito perto. Havia muitos turistas e, uma vez, estava a cantar com quatro japoneses a dormirem de boca aberta à minha frente. Ouvia-se o ressonar nas paragens.
 
Acordaram para as palmas?
Nem por isso, estavam tão cansados... Vim a saber que faziam a viagem de 48 horas até Lisboa, punham-nos em autocarros e levavam-nos para as casas de fado. Depois é que iam descansar. Foi engraçado.

Confirma-se que é mais difícil cantar para três pessoas que para três mil?
Sim, completamente, sempre achei isso. Mas claro, também tem a ver com o ambiente. Há ambientes fantásticos nas casas de fado. Na segunda parte ficavam mais os portugueses, ficávamos até às três da manhã e depois íamos para outro lado. Naquela altura, ainda havia os fadistas mais antigos que nos acompanhavam. Ajudava a aprender.
 
O público português é mais exigente?
Sim, estava sempre a sempre avaliado, até pelos colegas. Lembro-me da Maria da Fé, quando cantava no Senhor Vinho, mas era no sentido de ensinarem. Logo quando fui cantar aos fins-de- -semana num restaurante – na altura, o meu pai era chefe da construção naval no Alfeite e tinha-me arranjado um trabalho; supostamente ia fazer um curso de desenho, mas consegui escapar daquilo para cantar –, logo aí percebi que tinha de aprender. Em miúdo construía os meus fados, com os poetas populares, mas tive de reaprender. Aprende-se a ouvir as conversas, as pessoas. No meu caso, as coisas demoraram mais tempo. Agora é diferente, o fado está na moda. Quando tinha 18 anos, ninguém da minha idade ouvia fado e as editoras estavam pouco interessadas.
 
Os seus amigos também não ouviam.
Não, e tive um reencontro com a minha geração através do fado, mas quando já tinha uns 26 anos. Começaram a ir pessoas do teatro e de outras áreas às casas de fado, e interessaram-se. Ia-se falando nos sítios de um miúdo mais novo, e tal. Ainda não tinha disco nem editora. Foi assim que a Amália ligou para o David Ferreira – isto contado por ele – numa passagem de ano, a dizer que havia um miúdo que estava no bom caminho.
 
Onde o ouviu a cantar?
Em alguns sítios, e no teatro, no “Maldita Cocaína”, do Felipe La Feria. Já me tinha ouvido quando eu tinha dez anos, em Cascais, numa festa dedicada ao Alfredo Marceneiro. Mas na altura não deve ter achado muita graça a uma criança a cantar. Embora eu tenha cantado umas quadras a falar da escola, do pai e da mãe. Fizemos uma foto ainda e foi fantástico. Na altura, não tinha vergonha nenhuma. A Amália foi ver a peça duas vezes.
 
Sabia que ela lá estava?
Sabia, e aliás foi uma segunda vez para me ouvir. Claro que fiquei nervoso, mas foi bom. Mais tarde participei num espectáculo de homenagem e ela quis que eu cantasse. Estive a jantar com a Amália e com a Maluda. Quando fiz o ensaio à tarde, havia um cadeirão no palco, isto na feira do artesanato, e depois tinha a Amália sentada no cadeirão enquanto eu cantava [risos]. Nem sabia o que havia de fazer para não ficar à frente dela. No fim da noite falámos um bocado e foi muito simpática. Depois o David contratou-me, mais o João Teixeira, para fazer o primeiro disco, que sai em 1995.

 

Nunca aconteceu uma figura de referência dizer o oposto: o teu caminho não é este?
Não. As pessoas de grande talento que conheço sempre me apoiaram. Fernando Maurício, Carlos do Carmo, Beatriz da Conceição, Maria da Fé, Amália, todos. Havia os intermédios, e esses, muitas vezes, não gostavam, mas os realmente bons foram sempre impecáveis. Com dez anos, a Maria Teresa de Noronha foi uma simpatia comigo, numa festa em Alcochete. Sempre me chamaram para os espectáculos. E pessoas de outras áreas, fora do fado.
 
Caso do José Mário Branco. Como se conheceram?
Tinha uns 21 anos. Vinha a sair do Faia e encontrei o Carlos do Carmo, que estava a fazer um espectáculo no São Luiz. Apresentou-me o José Mário. Passados uns anos foi ouvir-me e eu convidei-o para produzir um disco, e ele disse que sim. Começámos a trabalhar juntos.
 
E com a Manuela de Freitas?
A Manuela já tinha escrito alguns fados que eu tinha adorado para a Teresa Silva Carvalho. Há um disco de que gosto imenso, ouvi-o uns dez anos antes de conhecer a Manuela. Fiquei fascinado. Os poemas são muito actuais e tinham uma musicalidade muito forte. A Manuela sempre disse que não percebia nada de música, mas escrevia com musicalidade, mesmo sem saber. E cada vez tem mais isso. Neste disco é impressionante, tem uns sete poemas. No anterior também, apesar de não ter querido pôr sempre o nome dela.

 

Já gostavam de fado?
O José Mário apaixonou-se por fado por causa da Manuela, que sempre adorou fado. Tinha uma ideia errada do fado, que estava associado ao antigo regime. Percebeu que não. Quando veio ter comigo para gravar, já gostava imenso, não tive de o convencer, e já vinha com uma ideia definida.
 
Que era?
Uma coisa é o fado tradicional, que é preciso respeitar e tocar nele com pinças, mas sempre achei que podia haver arranjos no fado. Intrigava--me sobretudo, nos anos 70, aqueles fados tradicionais sempre cantados da mesma maneira, de um disco para o outro. Só se percebia quem ia cantar quando se começava a cantar. Sempre achei que podíamos criar uma sonoridade para a minha forma de estar, mas identificando como fado quando se ouve os discos. Foi isso que conseguiu fazer. É um músico excepcional que gosta realmente de fado. Os singles dos meus primeiros discos eram todos fados tradicionais. Não havia medo nem cantiguinhas. Ele não tinha medo disso. Foi um caminho que se fez.

 

Têm em comum uma certa reserva?
Sim, mas é diferente. O José Mário não é bem tímido, é reservado. Acho que a única pessoa com quem trabalhou em que não houve uma mistura de políticas e essas coisas foi comigo. Foi um bocado por paixão pela música que eu faço, que ele faz. Encontrei alguém que percebia o meu trabalho e que me ensinava o que tinha de aprender, sobretudo a não entrar em exibicionismos.

 

Quando começa já sabe realmente o que quer?
Não sabia ainda. Sabia que queria uma coisa que tivesse a ver comigo, e não queria nada ligeiro. Foi o que me fez escolher o Zé Mário: ele não é ligeiro. Também sabia que o fado não é uma coisa popular. É música popular portuguesa, mas é outra coisa, é urbana, de Lisboa, e tem um estilo próprio. Não é parecido com mais nada. Não íamos ficar presos ao que já estava feito mas, por mais que arriscássemos, não íamos entrar no facilitismo. Tem de haver fado, tem de haver fado. No primeiro disco não arriscámos logo tanto. No segundo percebe-se a diferença, nos arranjos, na abordagem aos fados tradicionais, para cantar no tempo certo, onde me sentia em casa. O fado é a minha casa. É uma coisa que tenho desde miúdo. Depois foi a evolução. Como intérprete, foi importante sair de mim e perceber que isto não é uma exibição. Às vezes estava no estúdio e dava umas voltinhas, e o Zé Mário dizia que aquilo não era nada. A melhor forma de chegar às pessoas é que me ouçam.

 

É quando mais se apaga.
É, é como um actor. Ao início ficava preso a fados introspectivos, de olhos fechados. Hoje consigo ter os dois lados, um repertório mais diversificado. De repente comecei a cantar histórias mais descritivas, com ironia. Comecei por cantar a “Amiga Maria”. Há um disco posterior, “Do Amor e dos Dias”, que me libertou muito. Quando fui para o palco tive mesmo de cantar o que tinha feito no estúdio. No lançamento estava superdescontraído, até tive alguma graça. Dez anos antes não teria feito metade. Ficava tenso.

 

Houve algum empurrão?
São vários cliques na minha vida. Não há uma mudança radical. Também há 18 anos deixei de cantar nas casas de fado.

 

Tem saudades?
Não. Há uns cinco, seis anos, saía mais à noite e até cantava, em brincadeira, em algumas casas. Estava a aparecer a Carminho e outros fadistas novos. Tenho fases em que não saio e, se calhar, é mais essa. O facto de não cantar em casas de fado obrigou-me a gerir melhor esta coisa de ir para o palco.

 

Como segue esses novos nomes?
Há ali um boom. Houve uma altura em que, realmente, era complicadíssimo. As minhas primeiras entrevistas não eram entrevistas, eram interrogatórios. As perguntas que me faziam… Porque não fui para a garagem tocar rock? Também ia muitas vezes. Morava em Oeiras e havia sempre cenas de música. Ouvia Doors, rock português, e depois ia para casa ouvir fados às escondidas. Se ouvisse alto, era completamente gozado. Morava no rés-do-chão direito e tinha de pôr a musica baixinho [risos]. Era mesmo uma vergonha. Ainda hoje, quando ouço fado no carro, se parar num semáforo, baixo o som. É incrível. Tem a ver com esse trauma. O fado é triste, diziam-me. É, mas é uma tristeza que me faz sorrir. Na ópera também morrem todos no fim, mas saímos de lá bem.

 

Que perguntavam nesses interrogatórios?
Sei lá, uma fazia-me perguntas e tinha outro, de um lado para o outro, a dizer “não gosto de fado”. Isto num jornal. Nem vou dizer nomes. Contestavam.

 

Hoje passa-se o inverso, a ideia de que é cool gostar de fado?
Também sinto isso. Houve uma altura em que as pessoas vinham ter comigo na rua só para dizer que não gostavam nada de fado.

 

E “não gosto de fado, mas gosto do Camané”?
Também acontecia. Ganhei o prémio , que não estava tão associado ao fado, o Globo de Ouro, e percebi que já tinha mais popularidade do que julgava que tinha. “Você fez-me gostar de fado.” Muita gente nova já se interessa, vão ouvir o Marceneiro. Havia um grupo de gente que não ouvia fado, de classe média baixa, que vivia na cidade e arredores, que ia ver os GNR e, à noite, ia para o Bairro Alto. Essa gente não ouvia mesmo fado. Havia os grupos do Alentejo, das famílias, dos touros, que sempre ouviram. Mas aquele grupo urbano começou a ouvir fado comigo.

 

Hoje já cantam Camané?
Sim, imensos miúdos. Às vezes passo no Bairro Alto e ouço-os a cantar nas tascas. Até pessoas mais velhas. Principalmente os tradicionais, o que é bom.

 

Ainda sente que tem algo a provar?
Não, acabou-se isso do provar, sinto-me muito mais confortável. O que tenho de provar é a mim mesmo, metas simples do trabalho, sem aquelas coisas do planear. Acho sempre que posso continuar a criar, a cantar novos fados, isso é que me dá gozo. Agora, provar, há quem goste de nós e não goste, o que é óptimo.

 

Alguém o chama Carlos?
Tenho alguns amigos que me chamam Carlos, é bom, mas são poucos. É engraçado que fiz algumas amizades que não tinham nada a ver com o cantar. Chamam-me Carlos, Camané, fadista. Dantes é que me chateava quando me gritavam “fadista” na rua, a gozar. Hoje é de outra maneira. Havia umas miúdas na escola que me gozavam; passados uns tempos, apareciam nos concertos. Nunca me esqueci da cara delas. Não consigo ser muito simpático [risos]. Umas até ficaram minhas fãs, é impressionante. Eu sabia que isso ia acontecer. iOnline



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