Ana Moura: “Queria seguir um caminho e havia pessoas que não acreditavam”
Ana Moura trouxe para o seu novo trabalho parceiros habituais e muitos que se estreiam na sua voz, como Samuel Úria, Jorge Cruz, Edu Mundo ou Carlos Tê. Canta um poema de José Eduardo Agualusa, precisamente o tema “Moura”, que dá título ao disco. Quis ir além do que tinha feito em “Desfado”, que assume como um risco, mas um marco de liberdade e segurança. Em “Moura” trabalhou novamente o produtor Larry Klein, mas traçou mais pontes para juntar sonoridades de um mundo maior. Há fado tradicional, claro, porque como lhe disse um dia Beatriz da Conceição, “Ana, tu és fadista”.
Muitas vezes, os títulos dos discos não têm grande história, mas este em parte tem o seu nome...
Tenho dois temas que têm o nome “Moura”: um deles é o “Moura Encantada”,
da Manuela de Freitas, e outro é o “Moura”, do José Eduardo Agualusa.
Ambos foram escritos como uma descrição daquilo que sou. A Manuela de
Freitas tentou relacionar as lendas da moura encantada com a minha vida,
a moura que vive do canto e faz as pessoas felizes com isso, mas que
depois chega ao quarto do hotel e fica sozinha, ou chega a casa e esta
ainda não tem vida própria. O José Eduardo Agualusa já tem outro ponto
de vista. Para ele, “moura” significa mistura, que é aquilo que sou e
este disco é. Este disco tem uma mistura que me representa totalmente
neste momento. Tem fado, mas depois também tem outros universos musicais
que cruzo com o fado.
É o trabalho que melhor a representa?
Sim, por eu já ser mais conhecedora daquilo que melhor me representa e
me define. Nos primeiros discos não tinha experiência, delegava muito,
confiava muito nas pessoas com quem trabalhava. E hoje as minhas
opiniões estão muito mais presentes.
Foi isso que aconteceu na escolha dos poemas e das músicas?
Toda a selecção passou por mim. Alguns são repetentes, outros não. Os
que não são, convidei-os, à excepção do Carlos Tê. É capaz de ter sido o
primeiro letrista que cantei porque era pequenina e cantava as músicas
do Rui Veloso. Aqui foi uma coincidência porque foram os Clã que
gravaram esta música, mas não foi editada, e mostraram-me e acharam que
eu ia gostar. Foi paixão à primeira escuta. O resto partiu de convites
meus.
Houve intervenção sua nas composições? Debateram ideias?
Não, por acaso é engraçado: eles fizeram as músicas e enviaram-me um
pequeno texto explicativo e foi muito bonito porque assim percebi o que
os levou a escrever daquela forma para mim. O Miguel Araújo, por
exemplo, foi assistir a um concerto meu, reparou que danço muito e
lembrou-se que no século xix o fado era dançado. E decidiu escrever a
sua música com base nisso, pegando também numa frase do “Fado Falado” – a
frase “o fado canta e chora” – e a partir dela desenvolver que também
se pode dançar.
Como é descobrir-se nas palavras e nas composições dos outros?
Identifico-me perfeitamente com a letra da Manuela de Freitas, estando
numa altura em que estou a aprender a lidar melhor com a minha condição,
digamos. A Manuela é minha amiga e achava que eu devia ter mais tempo
para a minha vida pessoal. Mas a determinada altura, as pessoas têm de
aceitar a sua própria vida, não têm de ter uma vida igual a toda a
gente. Esta é a minha vida, aceitei-a e estou feliz com ela. Há sempre
escolhas a fazer, é inevitável. Não podemos ter tudo, não podemos fazer
tudo. E neste momento é esta a escolha que faço.
Porque é o fado uma ponte tão boa para juntar outras sonoridades?
Realmente é verdade, e há muitos exemplos bem-sucedidos. Acho que, musicalmente, casa bem com outros géneros.
Seja com os Rolling Stones, Prince ou em festivais de jazz.
É verdade. E já cantei inclusivamente em hebraico, situações com vários
cantores dos países que visito e em que canto nas línguas locais. São
experiências que adoro fazer.
Voltando ao novo disco e ao facto de ter tido uma maior
intervenção no processo, o que sente que aprendeu enquanto artista com
este trabalho?
Estou muito mais feliz por poder fazer as coisas como as sinto. Por
exemplo, a dada a altura, o produtor do disco, o Larry Klein, sentia uma
das músicas com outro andamento bastante mais relaxado. E eu sentia-a
muito mais ritmada. Ele acelerou, acelerou, mas ainda não era aquele
tempo que eu queria, e entretanto mostrei-lhe aquele que achava que era o
beat certo, que não tinha nada a ver, e a música teve de viajar para um
universo distante. Faz--me sentir que as músicas são mais minhas, têm
mais a ver com o que tiro das letras e das melodias.
Quando descobriu essa segurança e essa confiança maiores para avançar?
Foi no “Desfado”. Até aí trabalhava sempre com os mesmos músicos na
estrada, tinha gravado sempre com o mesmo produtor e decidi fazer um
disco completamente diferente, que era bastante arriscado. Pensei: “Vou
mudar tudo. Preciso de fazer esta alteração, sou capaz e não me sinto
dependente de nada.” E quis cortar tudo. Foi tal a liberdade que me deu
uma segurança incrível. E trabalhei com um produtor que quer saber mesmo
qual é a minha opinião, que a valoriza. Senti uma segurança enorme.
Aos encontros criativos que já teve junta agora outros, como o
que protagoniza com Omara Portuondo. Tem outros que desejava que
acontecessem?
Prefiro deixar as coisas fluírem, nesse sentido. Se me perguntarem com
quem gostava de gravar, tenho sempre nomes para dizer. Por exemplo,
gostava muito de gravar com o Stevie Wonder. Desde sempre que o adoro.
Há imensos. Até gostava de fazer qualquer coisa com a FKA Twigs… Com o
Tom Waits adorava, e sei que ele gosta de fado.
O facto de ir explorando novos caminhos nos seus trabalhos também a faz estar atenta a outro género de artistas?
Sim, sem dúvida. Por exemplo, neste disco experimentamos uma coisa
diferente com a guitarra portuguesa. Amplificamo--la com um amplificador
de guitarra eléctrica e acaba por ficar como que em loop em algumas
músicas. E ficamos a pensar como é que depois o iríamos fazer em palco. E
porque não usar uma loop station? Ao irmos a outros concertos, de
outros géneros, também tiramos estas ideias que acabam por ser loucas
para quem está não está habituado a ver uma guitarra portuguesa e uma
loop station... Não sei se vai ser muito bem aceite, mas porque não?
Adoro essas experiências.
Na quinta-feira morreu uma das grandes referências do fado,
Beatriz da Conceição, que era também uma grande influência para si. Ela
dava-lhe muitos conselhos?
A Bia era uma pessoa muito particular. Não era uma pessoa fácil mas,
quando gostava de alguém, era incrível. Senti muito a perda dela. Andei
um bocadinho afastada porque andava nas minhas tournées e não sabia que
ela estava internada. Foi um choque, até porque tínhamos uma ligação
muito grande e soube que, no hospital, ela disse que gostava de me ver.
Mas só soube agora. Dava-me muitos conselhos, ensinava-me muitas coisas.
O simples facto de ela dizer que não gostava daquilo já era motivo para
eu dizer “OK, também não gosto”. Ela tinha uma personalidade tão forte e
extraordinária que encantava as pessoas. Quando ela estava, não havia
mais nada. E a cantar... Tenho muitas histórias com ela de rir, de
chorar.
Como via ela estas pontes entre o fado e outras sonoridades? Era crítica ou aceitava bem?
Era mais crítica, mas eu não estou aqui a tentar fazer nada com o fado,
estou a fazer um caminho que é o meu e ela percebia isso, e dizia: “Ana,
tu és fadista”.
Se hoje uma jovem fadista lhe pedisse conselhos, o que diria?
Primeiro, que fizessem a escola das casas de fado, por aquilo que a Bia
me ensinou, tal como a Maria da Fé – até mesmo pelas histórias que nos
contam nas casas de fado e passam de geração para geração. Toda essa
aprendizagem é fundamental. Aconselharia vivamente a começar por aí, a
treinar os fados, a perceber o que é o fado tradicional, e depois, a
partir daí, a procurarem um cunho próprio, um caminho e uma identidade.
Como descreveria esta fase da sua vida?
Estou extremamente feliz. O meu álbum anterior foi muito arriscado e não
contava que fosse tão bem recebido, ainda continua nos tops, o que é
incrível. E este saiu ontem e já é disco de ouro. Estou feliz porque
queria seguir um caminho e havia pessoas que não acreditavam, mas fui
persistente e consegui. E isso traz-me muita felicidade e uma realização
enorme.iOnline