Raquel Tavares - Raquel
Discos - Junho 07, 2016
Raquel Tavares fez o que já vários outros fadistas das gerações mais recentes fizeram: descobrir-se cantora para lá do fado, mas sem o abandonar.
O disco abre com um fado: Deste-me um beijo e vivi, criação histórica de Beatriz da Conceição (1939-2015), a quem Raquel, aliás, dedica o disco. "Não deixei de ser fadista. Fiz questão de o gravar, porque é um fado que eu canto há muitos anos, com a devida autorização da dona Beatriz da Conceição, e eu senti — ainda antes de ela ter, infelizmente, partido — que estava na altura de lhe fazer uma homenagem. Já o tinha feito, no Bairro [seu segundo disco, de 2008], quando gravei o Lisboa garrida, que era dela, mas este é um fado que caracteriza a Bia. E é um dos fados de que eu mais gosto, o fado Cravo [de Marceneiro]." A fadista ainda autorizou a gravação, mas já não a ouviu.
O alinhamento do disco, daí em diante, alterna inéditos com clássicos em versões novas. "Em concerto, gosto de criar dinâmicas, emoções nas pessoas. Não sou daquele género ‘agora vou fazer uma parte muito triste, agora uma muito alegre’, não, eu quero mesmo baralhar as pessoas. E este disco é feito de picos: ora muito feliz, ora muito triste. Mas é uma tristeza serena, menos densa, mais contida, porque também estou assim, sem aquele fatalismo. É uma tristeza bonita de se cantar."
Saindo do fado, mas continuando no repertório mais clássico, neste caso forjado na tradição folclórica, ela recupera Limão, de Arlindo de Carvalho. "É uma criação de Celeste Rodrigues, a quem eu também pedi autorização para gravar. E é exactamente da peça Sombras. Eu cantava-o deitada no palco, com um foco a apontar para mim como se fosse o luar, e apregoava: ‘Ó luar da meia-noite... Alumia... cá p’ra baixo’. Como um pregão da Beira. Depois comecei a fazê-lo em concerto, resultou lindamente, e pensei: porque não gravá-lo? Não há nada mais tradicional do que isto, é um baião!" E gravou também um tema que é "uma história de amor tristíssima", o Rapaz da camisola verde, de Pedro Homem de Mello, a partir da interpretação de Frei Hermano da Câmara.
Nos restantes temas, há várias assinaturas de relevo: Rui Veloso, António Zambujo, Miguel Araújo, Tiago Bettencourt. "O Rui é o meu cantor-fétiche. Acho que o primeiro disco que me lembro de ouvir e cantar foi Mingos & Os Samurais, que sei de cor. Mas ao invés de o convidar para cantar, o que seria óbvio, preferi que ele me acompanhasse à guitarra numa das coisas mais lindas que o Carlos Tê escreveu, Regras de sensatez."
Coração vagabundo, de Caetano Veloso, surge aqui por iniciativa da própria Raquel e tem uma história curiosa. "Eu ouvi no disco Lágrimas Negras, de Diego Cigala e Bebo Valdés, que é um dos discos da minha vida, o Diego a cantar Eu sei que vou te amar, com Caetano Veloso, no meio, a declamar Coração vagabundo. Achei aquilo a coisa mais genial do mundo e pensei: porque não fazer, aqui o contrário?". E assim fez. Ela canta Coração vagabundo, acompanhada ao piano por Rui Massena, e Carlão, a convite dela, recita Eu sei que vou te amar.