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Carminho: "O fado levou-me ao mundo e o mundo devolveu-me ao fado"

Interviews - Dezembro 05, 2016
"Carminho canta Tom Jobim" é editado nesta sexta-feira. A fadista foi convidada pela família do músico para gravar as canções dele. Escolheu 14. 

E chamou velhos amigos de Jobim, que agora também são delaQuando entramos na sala, eles estão a tentar recordar-se da letra de uma canção. Ela, Carminho, canta um pouco, e chama-lhe Paulinho, a ele, Paulo Jobim, músico e filho de Tom Jobim. Ela tem 32 anos, ele 66. O que nos junta foi o que os juntou há cerca de um ano e meio: o disco Carminho canta Tom Jobim, editado nesta sexta-feira.

A menina que ouvia cantar fado e via as telenovelas da Globo que passavam a música de Jobim gravou agora catorze temas do pai de Paulinho, que cresceu com ele a compor naquela casa frequentada por Vinicius de Moraes ou Chico Buarque. Chico é um dos que se juntam à voz dela neste disco, como Maria Bethânia e Marisa Monte. Paulinho faz parte da Banda Nova, que tocou com Jobim nos seus últimos dez anos. São eles que acompanham Carminho enquanto ela canta reportório de um dos maiores nomes da música brasileira. Mas sem nunca dizer "você".

A Carminho tinha dez anos quando o Tom Jobim morreu. Que recordações tem da música dele e quando a começou a ouvir?

Eu comecei a ouvir Tom Jobim primeiro através das novelas da Globo, pequenina em casa com os meus pais. Traziam as suas bandas sonoras incríveis, eles chamam trilha sonora (eu gosto destas coisas, destas mudanças). Mais tarde havia lá em casa um disco do Tom Jobim. Eu fui ouvindo e fui-me apercebendo que a música que passava nas novelas lhes era externa. De uma forma descomprometida, eu gostava tanto das canções que começava a cantá-las em casa em frente ao espelho.

Cantar Tom Jobim era uma coisa familiar, uma coisa sua?

Sim, era uma coisa interna, pessoal. Todos temos os nossos gostos pessoais e, até imaginarmos que podemos vir a estar ao lado do filho dele, achamos que ele é nosso. Só agora é que percebemos que não. Ele é deles, não é meu. Mas agora também posso voltar a dizer, em ricochete, que volta a ser um bocadinho meu, com este disco.

Eram músicas que ciclicamente iam aparecendo ao longo da vida?

Sim, e que acabam por ser a banda sonora da vida. As canções que nos inspiram são nossas porque fazem parte de momentos da nossa vida importantes ou marcantes e que ficam para sempre.


Como chegaram ao jantar em que a família do Jobim disse que a queria a cantar as canções dele?

Isto foi um desafio que nasceu até de uma brincadeira. Com estas idas e vindas ao Brasil, já há quatro anos, criei muitas amizades lá, e estes artistas com quem eu tenho trabalhado passaram de uma relação artística a uma relação pessoal. Há muitos jantares, encontramo-nos, e num desses jantares cantou-se muito Tom Jobim, estávamos a lembrar canções dele, do Cancioneiro, que até foi feito pelo Paulinho, e eu comecei a cantar aquelas tais canções que faziam parte da minha vida: O que tinha de ser, O grande amor, Felicidade. E eles: "Carminho, você tem de fazer um disco do Tom Jobim." Foi a Ana Jobim, viúva do Tom. Logo a seguir a esse jantar eu conheci o Paulinho. E ele já vinha com um calhamaço de 220 canções do pai: "Agora tome a batata quente e escolha o que quer cantar."

Paulo Jobim: Mas depois mandámos umas listas para ela, acho que ainda muito grandes. Depois Chico Buarque deu palpites.

Carminho: Todos deram palpites.

PJ: Nós mandávamos isso e ela aqui em Portugal teve a tarefa terrível de juntar 14 dentro de talvez 50. E aí é uma escolha mesmo pessoal.

De Elizeth Cardoso a Gal Costa, Vinicius de Moraes ou Frank Sinatra: tantos que cantaram Jobim. Por que quis ouvir a Carminho?

PJ: Eu já tinha ouvido a Carminho numa homenagem ao meu pai. Quando ela foi cantar com o António Zambujo eu estava na coxia e fiquei assim bem perto olhando. Já fiquei impressionado com aquilo. Depois houve esse jantar com a Ana e o [empresário] Vinicius França veio-me perguntar se eu queria fazer o disco com a Carminho. E eu disse: "É claro." É uma cantora maravilhosa, é emocionante ouvi-la, ela tem uma coisa forte mesmo, e tem esse chamego com Portugal que eu tenho. [Olha para a vista sobre Lisboa] Eu gosto de Portugal e da língua. Quando eu vim em 1969, aqui não se ouvia falar do Brasil nem se ouviam os sons brasileiros, então tem um motorista de táxi que ia dirigindo e daqui a pouco ele vira para trás e diz assim: "Que diabo de língua é esta que vocês tão falando e eu estou a entender tudo?" É a mesma língua, mas tem outro som. No outro dia estávamos falando de um tio do meu pai. Os dois ficavam competindo com poemas de poetas brasileiros e também Fernando Pessoa. Esse meu tio ele recitava com sotaque em português, que pegou de um disco do [João] Villaret, e aí aquilo toma um ar mais importante. Não sei porquê.


Diz que um dos critérios para a seleção das canções foi não haver "vocês", para que não parecesse que a língua estava adaptada.

C: Um dos critérios foi escolher só os poemas que respeitassem o português de Portugal. Sem ter estes brasileirismos que me tornariam mais artificial, pouco natural, não me deixariam talvez interpretar as canções como eu sou. Este é um disco onde eu sinto que tentei não abdicar da minha própria linguagem, que me trouxe até aqui, que me formou, e que vem muito do fado naturalmente, porque o fado é que me ensina não só a escolher poemas como a interpretá-los ou a ouvir as palavras para perceber como é que as vou cantar. E isso necessita do meu português. Então seria muito estranho eu estar a dizer palavras que nunca disse antes, ou expressões que querem dizer o mesmo mas de uma outra forma, com um gerúndio. Há canções lindas, mas, por exemplo: Por Causa de Você. Entrou no disco mas em inglês [Don't Ever Go Away, como cantou Frank Sinatra], porque era uma das minhas preferidas e a verdade é que não a poderia cantar porque ficaria estranho. Ou eu cantava em brasileiro, que é uma mimetização à cultura brasileira, ou eu faria uma coisa super estranha. Ambas são más. Não sabemos o que é que vai acontecer com esse disco, mas ao menos que seja fiel à linguagem que cada um tem.

C: Três desses músicos fizeram parte da banda do Tom Jobim durante dez anos: a Banda Nova nasce no ano em que eu nasço. E são músicos que estão habituados àquela linguagem, a acompanhar o Tom Jobim. Para além de serem filho dele, o Paulinho, o Jaques Morelenbaum, que é um violoncelista, músico, maestro incrível, que nasceu com a música nas mãos, nos olhos, nos ouvidos, na boca, no coração, o Paulinho Braga que é um baterista formidável, que acompanhou a Elis Regina, o Tom Jobim, o Caetano, o Milton, todos... E depois o neto [Daniel], que apesar de não ter feito parte dessa banda faz parte da vida do avô.

PJ: É o herdeiro assim do piano, da maneira tocar. A banda ensaiava muito e o Daniel ficava ali atrás olhando, prestando atenção, desde pequenininho.

No filme A Casa do Tom, de Ana Jobim, ela conta que chegaram a alugar um estúdio para ele trabalhar, mas aquilo durou muito pouco tempo, porque ele gostava de compor no meio das pessoas, em casa.

PJ: É. Isso sempre foi assim. Tocava um pedaço e perguntava: "Você gosta assim ou assado?" E aí não importava que é que você respondia, ele sabia o que queria, mas queria te perguntar, e trabalhou a vida toda em casa.

Todos passavam por lá: o Vinicius, o Chico Buarque... Foi ouvindo muitas histórias do Jobim?

C: Muitas. Um dos convidados deste disco é o Chico Buarque, exatamente por ser a primeira pessoa com quem eu gravei nesta fase, e foi dele que eu ouvi muitas histórias do Tom Jobim. O Chico na altura também era muito jovem, talvez mais novo do que eu, mas já escrevia tão bem que eles: "Chega-te para o pé de nós, vamos contar histórias, beber uns copos..." Partilhavam muitas histórias. Há uma fotografia mítica deles os três num bar deitados em cima das mesas: o Vinicius, o Chico e o Tom Jobim. Essa fotografia está lá em casa do Chico. No outro dia fomos fazer uma sessão fotográfica e deitámos os dois em cima do piano dele, com a foto por trás. Oiço muitas histórias sobre o Tom Jobim... É uma pessoa que eu quero que se torne o mais familiar possível, por respeito à obra dele, não se pode entrar pelo reportório de um artista destes adentro sem trabalho.

Sem conhecer o homem?

Sem conhecer o artista por trás. Eu tenho uma fantasia dele. Criei um personagem, que provavelmente não é o pai do Paulinho Jobim. Deve ser uma outra pessoa, mas que tem histórias que vieram do Paulinho, do Chico, da Nana Caymmi. Mas também há aquilo que eu sinto dele: eu sei que ele gostava de pássaros, da natureza, que era uma pessoa espontânea, generosa. Os brasileiros ensinam-me muito isso: esta partilha, esta dádiva, troca e generosidade que todos têm uns com os outros, quando gostam. Dão tudo o que têm sem medo, porque nada é de ninguém. Quando uma pessoa tem talento não precisa de ter medo porque ele é uma fonte inesgotável. O Tom era uma fonte inesgotável, então dava tudo o que tinha. Esse é um ensinamento que eu trago.

É herdeira desta tradição: o Tom era muito mais novo do que o Vinicius, o Chico muito mais novo que o Tom, e agora a Carminho, muito mais nova do que aqueles que cantam e tocam consigo.

Fico super honrada de ter essa visão, é um bocadinho isso. Fico muito emocionada de também ser convidada para me chegar para o pé deles, e de eles me deixarem estar ali nem que seja só para ouvir e fazer parte, testemunhar a história viva deles em mim. Porque também é assim que o fado acontece, aprende-se assim. Também foi com a Beatriz da Conceição deixar-me estar ali em miúda com 11, 12 anos ao lado dela, a ouvir as histórias que ela contava, que eu aprendi a cantar, e foi assim que eu aprendi o fado. Eu tenho uma foto de pijama, sentada ao colo do meu pai - morava no Algarve e, como não havia casas de fado, a minha mãe fazia as noites de fado em casa -, então tem a minha mãe cantando, os músicos, e eu ficava ali a ouvir as coisas, sem saber o que aquilo estava a fazer em mim, mas a formar-me e mais tarde a aperceber-me que sabia cantar.

Foi por isso que neste disco se rodeou destes convidados?

C: Com o Chico, e a Maria Bethânia, é como se fosse o processo inverso: como é que eu me vou conectar com o Tom Jobim? É a partir destas pessoas todas que acabam por me dar um bocadinho dele, e eu construo-o para mim. A Maria Bethânia é uma pessoa que, para mim, é uma inspiração como intérprete. É uma interprete maravilhosa que interpretou como ninguém o Tom Jobim e muitos outros.

PJ: Ela tem essa coisa que você fala da palavra. Porque há cantoras que cantam a canção e não prestam a menor atenção ao que estão a cantar. Bethânia não. É uma pessoa densa, que canta aquelas coisas porque ela gosta. Ela escolhe tudo o que faz. E essa aqui, a miúda, também é chegada a tal coisa.

Este contacto próximo com a natureza alegre do Brasil, que até na melancolia é alegre, mudou-a ao longo deste processo?

C: Claro, eu acho que nós somos uma soma, sempre. O nosso coração é um órgão que nunca para de crescer, porque vai somando. Eu não preciso de largar o que sou, a melancolia que o fado tem, e a forma às vezes densa como se interpreta o fado. Por isso é que eu acho que a Bethânia também é fadista, mas é na essência, na poesia deste termo: é uma forma densa de olhar para as palavras e de interpretar. Mas a alegria do Brasil e a forma tranquila, suave às vezes, como eles tocam e cantam a tristeza, e às vezes até de uma forma alegre, desprendida da dor - também têm poemas e canções tristíssimas, mas têm outra leveza - também me ensina que há outros sentimentos espalhados por este mundo. Na volta ao mundo que eu fiz quando tinha 21 anos - desde a China, à Índia, ao Brasil, ao Camboja, Timor, Nova Zelândia - de mochila às costas, uma das coisas que eu senti é que vivem o amor de formas distintas. Tantas emoções, sentimentos e experiências que se podem incluir numa palavra tão pequena: amor. Quem inventou a palavra "amor" foi um louco.

O Paulo não sabia desta viagem...

C: Isto foi porque eu acabei o curso de Marketing e Publicidade e pensei: "Deus me livre [com sotaque brasileiro]." Estava muito infeliz e tinha muito medo de começar um percurso e uma carreira sem saber o que queria, sem ter uma coisa para dar. Era muito imatura ainda, não sabia que temas ia escolher, porque gravar um disco é fácil, mas depois defendê-lo ao vivo é um berbicacho, porque é [preciso] acreditar muito naquilo que se canta. Sabia que ao conhecer o mundo e viajar, ao descobrir outras formas de amar, me iria descobrir a mim própria. E foi assim que descobri que queria ser cantora, entregar a minha vida à música. O fado - com esses dinheiros que eu juntei a cantar nas casas de fado - levou-me ao mundo, e depois o mundo devolveu-me ao fado, e o fado levou-me hoje outra vez à música de todo o mundo.

PJ: Navegar é preciso, só que de mochila... [ri-se]

Quando defender este disco ao palco vai levar a Banda Nova?

C: Claro! [Começa a cantar com a toada de Os Argonautas, de Caetano Veloso:] Banda nova é preciso...

O seu pai ia ficar contente com este disco?

PJ: Ia. Acho que ele gostaria de o ter feito, e de vir aqui, ficar falando da língua, ele tinha a mania das palavras. Acho que ele só veio aqui três vezes. A terceira vez já foi ganhando o honoris causa lá de Coimbra. O meu pai gostava desta conversa de língua portuguesa, ele adorava poder sentar aqui e ficar falando dias sobre isso. E cada dia poder perguntar uma coisa nova para ela.

C: E eu ia adorar...


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