O dia em que Amália Rodrigues ia sendo presa


Finais dos anos 60, na "Adega Machado" (casa de fado de renome mundial que infelizmente fechou portas em 2009). Todas as noites, ao fim de fado e folclore, o espectáculo fechava sempre com a "Marcha do Machado", uma brincadeira que levava à escolha de pessoas do público para interagirem numa mini marcha popular com os artistas da casa.
Numa noite em que Amália Rodrigues jantava na "Adega Machado", um dos bailarinos escolheu-a e a diva do fado encabeçou a marcha, sorridente, com arco e balão na mão. Espontânea, como sempre, sem avisar resolveu sair do restaurante, levando a trás bailarinos, clientes, fadistas, guitarristas e empregados de mesa que decidiram alinhar na brincadeira. O inédito aconteceu: a "Marcha do Machado", acabou por seguir Bairro Alto fora, com Amália à frente e uma legião de muitos desconhecidos a acompanhar.
"Estão todos presos!"
Num cruzamento da Rua da Atalaia com a Travessa da Queimada, dois "polícias de giro" (na altura, nome que se dava aos agentes de bairro) interceptaram a marcha. Sob a velha máxima pré-25 de Abril, declararam: "Mais do que duas pessoas é um ajuntamento... ou uma manifestação comunista. Está tudo preso!". A marcha parou, o silêncio deu lugar à euforia anterior.
Entre olhares temerosos, todos se preparavam para passar uma noite na esquadra quando surgiu, por acaso, o chefe da esquadra da Mercês, celebrizado com a alcunha de "o bailarino" (segundo consta que tinha boa esquiva e usava passos de bailarino nas suas intervenções). Ao ver o grupo, ouviu a explicação dos seus agentes e concordou com a detenção... até que viu quem encabeçava a brincadeira.
Chefe: Mas é a dona Amália Rodrigues numa manifestação?
Amália: Sou, sim senhor. Mas isto não é uma manifestação, é só a "Marcha da Adega Machado".
Chefe: Bem, se é a dona Amália que vai à frente, então siga a marcha! Quebrou-se o silêncio, voltou-se a cantar e a marcha seguiu até à "Adega Machado" com três novos marchantes (embevecidos pela rainha das fadistas): os três temidos polícias.
Sem sequer cantar o fado, com o seu dom de arrastar multidões, Amália acabou por ser, como sempre, a estrela da noite.
Vital d'Assunção