O fado e mais além, na guitarra sábia de José Manuel Neto
Tudo isto se sente ao ouvi-lo em palco. Há em José Manuel Neto, ao mesmo tempo, uma atitude de humildade reservada perante a altivez intrínseca da guitarra, a par de um orgulhoso talento feito de milhares de horas de dedicação àquele instrumento, talento que ele exibe sem efeitos circenses e com total entrega. O espectáculo da noite de 7 de Julho no Teatro da Trindade (terceiro, depois de Tatanka e Yamandu Costa, no ciclo Há Música no Trindade, que ali decorrerá até Dezembro), sendo instrumental na sua quase totalidade, teve no entanto uma voz convidada: a de Carlos do Carmo. Que, apesar do seu lugar de primeira linha no fado, no momento dos agradecimentos deixou a ribalta aos músicos: era deles a noite. E ficou a aplaudi-los, no canto esquerdo do palco.
E, numa noite assim, nada melhor do que começar com composições de Armando Freire (o genial Armandinho). Assim ganharam vida nas cordas de José Manuel Neto (que ali teve consigo Nélson Aleixo na viola e Frederico Gato no baixo) Meditando, Variações em lá, e os fados Alexandrino e Ciganita daquele compositor com arranjos de Neto e agrupados num tema que foi baptizado de Armandinhos. Depois vieram composições de outros guitarristas históricos, como Despertar, de Jaime Santos; Vira de Frielas, de José Nunes; as Variações em Ré, de Fontes Rocha. Depois, a fechar a série, Valsa Eduardina, de Eduardo César. A entrada de Carlos do Carmo, ao som de aplausos, fez-se com O cacilheiro, letra de Ary dos Santos e música de Paulo de Carvalho, que Carlos do Carmo gravou no histórico Um Homem na Cidade (1977). Mas não foi um cacilheiro qualquer: o fadista deu-lhe outras voltas, mexeu-lhe na ênfase e nos tempos, fê-lo ir por outras águas, e José Manuel Neto e os restantes músicos seguiram-no com inteligência. Carlos do Carmo falou, então, da importância da guitarra portuguesa e do relevo de grandes nomes que a engrandeceram e engrandecem fora do fado (Carlos Paredes, Pedro Caldeira Cabral, Ricardo Rocha) mas, no território construído a partir do fado, apontou José Manuel Neto como “um criativo” (mais do que só um acompanhante) e, ainda nesse território, declarou: “Para mim, ele é o maior guitarrista português vivo.” Não deixaria o palco sem cantar outro fado, desta vez com música de António Victorino de Almeida e letra da grande poeta brasileira Cecília Meireles: Eu canto. Gravara-o no disco Nove Fados e Uma Canção de Amor (2002) e ali cantou-o brilhantemente.
Faltava um segundo convidado: Ricardo Neto, no contrabaixo. Ricardo, 23 anos, é filho de José Manuel Neto e a sua área musical não é propriamente o fado, mas sim a música clássica (estuda no Conservatório de Amesterdão). No entanto, gravou com o pai em Tons de Lisboa e, quer no disco quer em palco, assinam juntos um momento tocante, acompanhando a voz de Deolinda Maria (1939-2008), mãe de José e avó de Ricardo. Antes, porém, desse momento (muito aplaudido), ouviram-se ainda Chorinho do Norte, Finta e Será, todos do novo disco. As Variações sobre o Fado Lopes fecharam, com ânimo e entusiasmo (dos músicos e do público), o espectáculo. Que não acabaria ali. Vieram depois mais um instrumental, a valsa venezuelana La partida, e mais um fado com Carlos do Carmo, desta vez com palavras de Almeida Garrett no Fado Cravo de Alfredo Marceneiro, Não és tu (um dos temas de um disco memorável, Mais do Que Amor é Amar, de 1996). Mas foi ele, ou melhor, foram eles, que proporcionaram ao público do Trindade uma noite plena de música, calor e sentimento, onde a guitarra portuguesa foi, justamente, senhora do tapete vermelho que lhe estenderam.
Na noite seguinte, a de 8 de Julho, José Manuel Neto estaria naquele mesmo palco com Carlos Manuel Proença (viola) e Daniel Pinto (baixo). Convidado especial: Rodrigo. E, para quem queira seguir o ciclo do Trindade, saiba que os próximos espectáculos serão nos dias 27 de 28 de Julho, quinta e sexta-feira, às 21h30, com os Dead Combo. Tó Trips e Pedro Gonçalves prometem dar-nos a ouvir Música Com Lisboa Lá Dentro.