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Tozé Brito: “Queria ter escrito uma canção para a Amália”

Entrevistas - Agosto 21, 2017
Não há quem não lhe tenha trauteado pelo menos uma das quatrocentas canções que escreveu. "Vou continuar a escrever até morrer, é o que mais gosto de fazer."

Cedo o pai o influenciaria a gostar de cantar e tocar viola, mas queria-o economista ou advogado — e nem pensar em ser músico. Igualmente cedo, António José Correia de Brito fez-se Tozé Brito e voltou-se, à revelia deste, às canções. Escreveu mais de quatrocentas, algumas que o próprio interpretaria, a maioria interpretada por outros. Garante que é sobretudo isso, um escritor de canções: “Não tenho grande voz, nunca tive; ‘defendo-me’ é bem. Mas também não é preciso ter-se uma grande voz para cantar, o que é preciso é transmitir emoção no que fazes. Num estúdio tens quinhentos botões numa mesa — com eco, com reverberação — mas nenhum diz ‘emoção'”.

As canções, acredita Tozé — o mesmo Tozé que ainda adolescente dizia “tocar no melhor grupo deste país” [o Quarteto 1111] para levar turistas das discotecas de Cascais para o seu apartamento –, vão perdurar. Mesmo depois de partir. “As canções vão continuar, sim, independentemente de quem as ouve saber que fui eu que escrevi ou não. Tenho a noção de que fiz algumas coisas bem feitas e outras menos. Fiz canções que se hoje pudesse apagar, apagaria.”

 

Algumas das que escreveu estão tão no ouvido (e boca) de todos, até hoje, que se tornaram uma “peste”, graceja, e quase não as consegue ouvir mais. Pelo menos mal cantadas nos karaokes. “A música que escrevi para a Adelaide Ferreira — o ‘Papel Principal’ — está em todos os karaokes. É uma ‘peste’… As canções das Doce também. A do [Vítor] Espadinha também. O que me custa horrores é ouvir pessoas que não têm absolutamente jeito nenhum a cantar essas canções. Quando as ouço assassinarem as canções é uma coisa horrorosa e às vezes dá-me vontade de rir. Mas também me dói…”

 

Afastou-se dos palcos definitivamente em 1987 porque “precisava ganhar dinheiro para sustentar a família”, tornado-se depois executivo das editoras BMG e Universal Music. “Há trinta anos que não canto profissionalmente, a solo. Às vezes os amigos convidam-me e faço-o na boa, tenho o maior dos prazeres.” Hoje, cinquenta anos depois de ter escrito [então com somente quinze e no grupo Pop Five Music Incorporated] a primeira canção, lamentos não tem. Ou melhor, apenas um. “Tive vontade, digo-te sinceramente, de escrever uma canção para a Amália. Mas também na altura não sabia o que era escrever para o fado e nem me atrevi. Não a procurei, deixei-me estar sossegado.”

 

Perdeu-se um economista? Pergunto-lhe isto porque o seu avô, que trabalhava na banca, e o seu pai, que trabalhava numa seguradora, queriam encaminhá-lo para essa profissão.
Não sei se se terá perdido um economista ou não. Mas é verdade que me queriam encaminhar para Economia, sim. Para isso e para Direito. Eram as opções deles. E sei o porquê: na altura o mercado de trabalho era completamente diferente do que é hoje, estamos a falar dos anos sessenta, e quem tivesse um curso de Direito ou de Economia tinha emprego quase garantido. Não vivíamos a precariedade que se vive hoje em dia e as dificuldades que a miudagem tem hoje em dia — hoje, mesmo com um curso nada te garante que vais conseguir ter trabalho.

À época, a possiblidade se singrar na música era baixíssima. Em certa medida concordava com eles, não?
Era baixíssima, era. Sabes: o meu pai tocava muito bem viola, nunca foi profissional, aquilo era um hobbie, mas era um excelente músico. E cantava muito bem também. Ele nunca foi propriamente contra o facto de eu gostar de música. Mas dizia-me: ‘Tu és maluco se vais apostar na música, porque só um em cem é que se safam. Se tiveres um curso superior tens muito mais hipóteses de viver bem…” Até que finalmente chegou uma altura em que tive que tomar uma decisão e tive que dizer abertamente ao meu pai: “Quero ser músico, acabou!” Ainda cheguei a fazer o sétimo ano. Mas nessa altura já estava com o Quarteto 1111 e decidi que era o que queria ser. E estava preparado para tocar onde fosse preciso tocar: numa casa de fado a acompanhar um fadista, a tocar baixo num pub, no casino, em qualquer lado onde houvesse música e fosse preciso. Ele [pai] não achou graça nenhuma, claro.

Mas a verdade é que anos mais tarde, quando o Tozé teve o sucesso que teve, o seu pai tornou-se num dos seus maiores fãs. Mesmo que não o assumisse — o Tozé dizia que ele, sendo muito afetuoso, nem sempre o assumia.
Exatamente. Tudo isso tem a ver com a educação que ele teve, com as origens do meu avô, que era uma pessoa muito conservadora, um homem do século XIX, e o meu pai tinha sido educado de uma forma muito rígida. Ele fez-me o quer era habitual fazer-se quando o filho de dezoitos anos diz que quer ser músico. Mas eu ganhava bem no Quarteto 1111, ganhava o suficiente para alugar o meu apartamento, em Cascais, e para me sustentar, comia, pagava as contas todas. E quando o meu pai começou a perceber que as coisas me estavam a correr bem, que tinha a possibilidade de fazer uma vida desafogada sem depender dele, passou a ser o meu maior fã. Mas como dizes e bem, não era de ir aos concertos e sentar-se na primeira fila; ficava lá atrás e no final do espetáculo vinha ter comigo para me dar um abraço. Mas poucas vezes o vi num espetáculo. Sei que comprava os discos, que me seguia pela televisão e pelos jornais da época.

 

Sendo o seu pai músico, ainda que amador, certamente incutiu-lhe desde cedo uma cultural musical. Ainda por cima o Tozé vivia numa casa durante a infância com muita gente: pais, avós, irmãos, os primos e tios ao fim-de-semana. Sei que quando se juntavam todos, cantavam e tocavam. A música sempre esteve presente, é assim?
O meu pai tocava viola, como disseste, o meu tio tocava e cantava muito bem também, a minha avó cantava, nós, filhos, conforme fomos crescendo fomo-nos juntando a eles a cantar e a tocar. E havia muita música lá em casa. Sempre houve. Havia música de todas as maneiras: ouvia-se na rádio, na grafonola, depois passou a ser o gira-discos, na televisão, o meu avô, especialmente ele, ouvia música clássica a toda a hora. Portanto, ouvi música desde que nasci. Lembro-me de ser criança, ter talvez um ano ou dois, e ouvir o meu pai tocar e cantar, era uma coisa normal em casa. E aprendi música: primeiro o piano, porque havia um piano lá em casa, e cheguei a ter aulas durante dois anos, dos oito aos dez Viola? Viola aprendi completamente sozinho. Tinha cinco, seis anos quando comecei a tocar viola. Sabes: tenho muita pena de não ter continuado a aprender piano. Porque o piano é o instrumento mais completo que há. É um fascínio. Ainda toco um bocadinho, o suficiente para me entreter e para às vezes compor alguma coisa. O tipo de escrita no piano é diferente da escrita na viola. Acho que é mais fácil fazer umas inversões e encontrar umas harmonias ao piano. Na viola tens mais dificuldade a fazer isso. Mas aos dez anos percebi logo que o piano não era para mim. Porquê? O piano era um chatice porque só podia tocar sozinho. A viola não.

 

Sobre a viola há uma história curiosa: o Tozé gostava de tocar… mas sempre que na escola as notas desciam, o seu pai tirava-lhe a guitarra e escondi-a à chave.
[Risos] É verdade. Mas a viola nem era minha, era dele. A viola de que falas está naquele canto [aponta para um estojo no escritório em que trabalha na Sociedade Portuguesa de Autores]. A viola era do meu bisavô, pai da minha avó, que era professor de música. O irmão dele era maestro, o maestro Alves Rente. E esta guitarra foi onde aprendi a tocar. Obviamente que já foi restaurada, caso contrário já estaria em cacos ao fim de mais de um século. Esta guitarra tornou-se um instrumento muito mais agradável do que o piano porque eu pegava nela e podia levá-la para todo o lado, para o liceu, sempre às costas. E o meu pai deixava-me levá-la desde que tirasse boas notas no liceu. Quando as notas desciam, dá-me cá a viola e escondia-a.

 

A viola ficava trancada à chave enquanto ele ia trabalhar. Mas a sua avó tinha a chave…
[Risos] A minha avó era “especialista” em ir lá buscá-la, passava-ma pela janela — porque eu ficava fechado no quarto de castigo. As janelas eram pegadas uma à outra, ela estendia o braço, eu estendia o braço e pegava-lhe.

 

 

As boas memórias que tem da infâcia no Porto são sobretudo essas, as da família.
Mas dos amigos também tenho. Mas só tenho mais tarde, no liceu. Antes disso não tenho grandes memórias nem tive grandes amizades porque, de facto, a vida era passada muito em família.

 

Mas não se brincava na rua? Não acredito.
Brincava, brincava muito na rua. Naquela altura quase não havia automóveis na rua e nós jogávamos à bola em frente da minha casa, em Paranhos. Naquela altura passavam automóveis de dez em dez minutos. Aquilo não era propriamente o centro do Porto. E estamos a falar dos anos cinquenta, pouca gente tinha automóvel. Depois mudei-me para a zona da Boavista e, a partir daí, vivia numa zona muito mais movimentada da cidade. Mas em Paranhos era uma paz desgraçada para brincar.

 

E a partir daí é que faz as amizades que perduram.
Sim. Na escola primária ia para as aulas, voltava a casa e tinha os meus irmãos e as minhas primas. Amigos não tinha muitos. Houve uma altura em que lá em casa chegámos a viver os meus avós, o meu pai e a minha mãe, o meu tio e a minha tia, três irmãos de um lado, três primas do outro. A casa tinha rés-do-chão, primeiro andar, segundo andar e cave. E ainda havia as empregadas. Isto ainda em Paranhos. Na Boavista vivia só com os irmãos e os pais. Tinha eu dez anos. Aí comecei a ter mais amigos.

 

Ainda que não tenha grandes memórias do tempo anterior ao liceu, a verdade é que foi no jardim-escola que pisou um palco pela primeira vez. Verdade?
Sim, foi no jardim-escola João de Deus. Tinha cinco anos.

 

E essa estreia foi logo no Teatro Sá da Bandeira.
Havia sempre uma récita anual no jardim-escola — e essa récita era apresentada no Sá da Bandeira.

 

E começou aí o interesse pelo espetáculo?
Achei graça a estar em palco, não digo que não. Vestiram-me de pescador nessa récita. Aquilo era uma peça. E tinha inclusivamente deixas para dizer ao longo da peça. A peça era pequenina, como é óbvio, mas tive que decorar as frases. Achei graça ao ollhar para a plateia e ver aquilo tudo cheio de gente. Achei graça. Quando não tens o menor sentido de responsabilidade, que é uma coisa que hoje tenho, achas graça. Hoje não tremo mas tive alturas em que… uish! Não me lembro de estar tão nervoso na minha vida como quando cantei na Eurovisão. Tinha vinte e sete anos. E tinha na altura mais de dez a pisar palcos e a andar na estrada. Naquela altura já tinha atuado em Vilar de Mouros com vinte e tal mil pessoas à minha frente. Mas senti-me nervoso, achava que tinha a bandeira do país estampada na testa e senti-me nervoso. Chegas lá [Eurovisão] e não estás a representar a RTP nem és os Gemini; sentes-te a representar o país e o peso da responsabilidade é muito. E lembro-me que aí tremi. Literalmente: senti os joelhos a tremer todos… [Risos]


Lá iremos. É portanto no liceu que surgem as primeiras bandas e os primeiros concertos…
Havia muitos rapazes como eu que queriam tocar. E no Porto havia pouca oferta. A cidade do Porto era muito pacata. Os cinemas eram poucos e eram longe. Éramos miúdos e não era fácil ir aos cinemas da Baixa. Era muito mais fácil a gente juntar-se na garagem lá de casa com as violas na mão e tocar. E começámos a ouvir coisas na rádio — Beatles, por exemplo — e era precisamente aquilo que queríamos fazer. Ninguém escrevia canções nessa altura. A primeira canção que escrevi [“You’ll See”] foi com o grupo Pop Five em 1967, que também quando gravei o meu primeiro álbum. Tinha dezasseis anos.

 

Escreveu-a em inglês. Porquê?
Nessa altura ainda não queria escrever em português como escreveria mais tarde. Gostava de escrever em português mas assustava-me a ideia, sentia que não tinha capacidade para me expressar.

 

Escrever em inglês dava-lhe segurança, portanto.
Claro. Um gajo começava a escrever umas linhas em português e achava que não tinha jeito nenhum para aquilo. Porque aos dezasseis anos pouca gente consegue escrever boas letras em português, é o que é. E cantar em inglês era também uma defesa. Nós sabíamos um bocadinho de inglês e aquilo não tinha erros gramaticais, mas era uma coisa muito insípida e às vezes sem sentido. Quando chego ao Quarteto 1111, com dezoito anos, em 1969, aí comecei a sentir-me capaz de escrever em português e comecei logo a gravar. E a fazer a aprendizagem com o José Cid e com os outros membros da banda.

 

Mesmo para um miúdo de dezoito anos, a ida para o Quarteto 1111 foi uma coisa realmente séria. As bandas anteriores, sendo sérias…
O grupo Pop Five foi sério.

 

Sim, mas sendo sério, tocavam em sítios bem menores do que o Quarteto 1111. Certo?
Menores, sim. Mas o Pop Five já foi um grupo sério. O primeiro grupo em que toquei foi uma coisa que começou por se chamar Duques. Eram amigos meus de liceu, e tocávamos nos bailes de bombeiros, em Matosinhos e Leça da Palmeira, ao domingo à tarde. A coisa era muito amadora. E só tocávamos covers. No Pop Five já era uma coisa muito mais séria, os músicos já eram todos eles muito bons, tinham outro nível e não era normal uma banda do Porto, naquela época, vir tocar a Lisboa tantas vezes como viemos. Não era normal. Em Lisboa havia bandas fantásticas: os Sheiks, sei lá, Quinteto Académico, Chinchilas, muitas bandas e todas elas muito boas. Havia um certo interesse pelo que nós estávamos a fazer — e é tudo resultado de um álbum que gravámos muito precocemente em 1967. Era um coisa inédita no país: um grupo com miúdos do liceu, dezasseis ou dezassete anos, estar a gravar um álbum, isso era algo que estava só reservado aos artistas mais consagrados do país. A editora Orfeu, do Arnaldo Trindade, era uma editora com grandes responsabilidades na boa música portuguesa que se gravou naquela altura, uma editora onde esteve o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o Fausto, o Sérgio Godinho, o José Cid, era uma editora muito importante e a malta do norte — ou do Mondego para cima, vá — era lá que gravava. E nós gravámos também.

 

Mas foram lá bater à porta do Arnaldo Trindade?
Não, tínhamos um manager.

 

Mesmo sendo adolescentes já tinham uma manager? Muito à frente…
Já tínhamos, já. O nosso manager era o Fernando Matos. Ele já era advogado mas era muito novo: tinha vinte e cinco anos. E era o Fernando Matos que negociava os cachets. E foi ele que foi bater à porta do Arnaldo Trindade, levou as maquetas com ele e lá fechou negócio. O Arnaldo Trindade era um homem com a cabeça muito à frente. E tinha uma visão rara para a época.

E o Tozé ainda vê esse disco como um bom disco hoje em dia?
Tens que o ver no contexto da época. Para miúdos de dezasseis, dezassete anos, era. Era um disco à frente do seu tempo. Até porque tinha uma extrutura que não vias em nenhum lado, chamava-se “A Peça”, tinha I Acto, II Acto, não sei se tinha III Acto, e tinha o introito e o epílogo, aquilo tudo tinha uma estrutura que não era normal nos álbuns da época, muito menos para miúdos da nossa idade. Mas nisso o Fernando Matos tinha muita influência, porque nós tínhamos ali não só um manager como tínhamos um amigo, e uma pessoa que tinha boas ideias e nos sugeria fazer isto ou aquilo. E nós fazíamos quase sempre. E esse álbum teve um impacto grande e por aí é que começamos a sério. E é também por causa desse álbum que eu venho mais tarde a receber o convite do José Cid para integrar o Quarteto 1111.

 

É esse convite que o traz para Lisboa e, nomeadamente, para Cascais?
É, é. Isso e a decisão, definitiva e final, de que quero ser músico, de que a minha vida ia ser essa, ponto final. Enquanto estava no Porto, apesar de querer ser músico, eu próprio tinha dúvidas. Percebia perfeitamente, não era preciso ninguém dizer-me, que o Pop Five não iria durar eternamente, até porque os outros também membros da banda estudavam, tinham outras ocupações, e aquilo estava à vista que ao fim de uns anos cada um iria fazer a sua vida e acabaria.

 

Antes de falar da vinda para Cascais e do convite do José Cid: a verdade é que também há uma quebra da sua ligação ao Porto por causa do acidente que a sua prima Paula teve. Ela ficou em coma profundo.
A Paula era como uma irmã, das minhas três primas era a mais nova.

 

Essa prima Paula era a prima que lhe trazia e levava os bilhetinhos que trocava com as namoradas de liceu.
Era, era. [Risos] Com as namoradas todas que tinha ela era o “intermediário”. Ela fazia o papel de vaivém, levar os recados e trazer os recados. A minha prima era dois anos mais nova do que eu. Eu tinha uns quinze anitos nessa altura. Aí é que comecei a ter namoradas — até lá não eram namoros; eram aquelas palermices que têm graça mas não são nada. Tinha catorze anos a primeira vez que tive uma paixão realmente forte.

 

E a Paula teve influência nessa “paixao realmente forte”, presumo.
Teve, claro. Porque era uma amiga dela e teve um papel muito importante, claro. E de repente ela teve um acidente, tinha dezoitos anos quando teve. Nessa altura eu já estava a viver em Cascais. Antes, ela vinha muitas vezes aqui visitar-me, acompanhava o Quarteto 1111 para todo o lado, eu tinha realmente uma relação muito próxima com ela.

 

Mas nunca a conseguiu visitar após o acidente. Porquê?
Não consegui. Ela ficou em coma profundo vinte e dois anos, sempre em casa dos meus tios. Nem sempre esteve ligada à máquina para respirar — mas esteve sempre em coma profundo. Pelo que me contaram — porque nunca a vi, nunca quis ver –, ela era uma miúda perfeitamente normal quando isto aconteceu e passou de ter cinquenta e cinco quilos para ter somente trinta. Estava irreconhecível.

 

E isso afastou-o definitivamente, diria mesmo emocionalmente, da cidade do Porto.
Afastou. Porque sempre que ia ao Porto tinha que ir a casa dos meus tios — que também eram meus padrinhos, diga-se. Eles viviam no primeiro andar de um prédio na Rua Bessa Leite e no segundo andar viviam os meus avós. Tinha que lá ir, promtp. E confrontava-me sempre com o pedido da minha tia para ver a Paula que estava no quarto. Respondia-lhe que não, porque queria guardar a imagem que tinha dela antes do acidente. Sabia que ia ter um choque, porque lembrava-me dela como uma pessoa cheia de vida, que saía comigo e que estava com o Quarteto 1111 até às cinco da manhã. Era como uma irmã para mim. Nunca consegui ultrapassar aquela porta do quarto.

 

 

Voltemos então ao convite do José Cid para integrar o Quarteto 1111. Como e quando é que surgiu?
Estava a tocar em Penafiel, numa festa num lago — eles esvaziavam um lago gigante que havia em Penafiel, limpavam aquilo tudo e havia um palco num canto e outro palco no outro, tocava uma hora uma banda e outra hora outra banda. E nesse ano de 1969, no verão, estava o Quarteto 1111 de um lado e o Pop Five do outro. E quando eu estava a tocar, lembro-me perfeitamente como se fosse hoje, a malta estava toda a dançar, milhares de pessoas, e de repente olhei para a frente e na primeira fila, para além das fãs, estava o Quarteto 1111 a olhar para mim. Achei estranho. “Mas o que é que estes gajos estão aqui a fazer a olhar para mim?!” Nós ouvíamo-nos, mas nunca íamos para a primeira fila uns dos outros. O baixista deles, o Mário Rui, tinha sido mobilizado [para a Guerra Colonial] e ia sair da banda em breve. E eles precisavam de outro baixista. Não estavam ali para ouvir o Pop Five coisa nenhuma; estavam ali para me ouvir tocar e ver o que é que eu fazia. Se tinha nível para o grupo deles. E naquele concerto até puxei do brio e toquei melhor: “Se estes gajos estão a olhar, deixa-me fazer aqui umas habilidades para eles!” E a coisa até correu bem. No fim, o José Cid veio ter comigo e perguntou-me se aceitava ir viver para Lisboa e tocar com eles. “Epá, deixa-me pensar nisso…”, respondi-lhe. Tinha dezoito anos. Tinha que falar com os meus pais, porque só eras maior de idade aos vinte e um. E disse também ao Cid que se aceitasse tinha que ter garantias. E ele disse-me que garantias teria. Primeiro falei com os meus pais, eles disseram que a decisão era minha mas que a consideravam “uma asneira”. Acho que o meu pai me deixou vir porque pensou que ao fim de três meses aquilo correria mal e e voltava para casa. Não correu.

 

Mas ainda faltava negociar quanto é que ia ganhar.
Sim. E fui falar com o José Cid. Ele perguntou-me o que é que precisava. “Epá, preciso de alugar uma casa, de comer, de pagar os transportes para ir para um lado e para o outro, se tiver que ir ao médico preciso de dinheiro para ir ao médico, não preciso de muita coisa, preciso de comprar umas roupitas de palco…” E ele disse-me, depois de fazer as contas: “Epá, nós no verão ganhamos muito dinheiro…” “Então e quando não é verão, como é que é? Desculpa lá mas não sei se consigo… Ainda estouro o dinheiro todo e no Inverno não tenho. Assim não…”, respondi. E perguntei: “Quando é que me podes dar por mês? Fixo…”

 

E quanto é que acordaram?
Sete contos e quinhentos. Em 1969 era muito dinheiro.

 

Chegava para a renda do apartamento e ainda sobrava.
Chegava, chegava. Pagava um conto e quinhentos de renda. A maior parte da malta hoje deixa na renda metade do que ganha. Aquilo dava para viver calmamente — e nem tinha que cozinhar em casa. Comia todos os dias fora. [Risos]

 

Mas a mudança para o Quarteto 1111 também aumentou a exigência. Tornou-se profissional.
Muitíssimo. Trabalhava todos os dias.

 

No começo falava-me de Vilar de Mouros — e de como foi tocar para milhares de pessoas.
Vinte mil pessoas! Epá, foi a primeira vez que levei um banho de multidão em Portugal. Era um mar de gente que nunca mais acabava. Num recinto pequeno, malta apertada, sentada no chão. Foi uma sensação única. Isso foi em 1971. Mas voltando atrás e às minhas continhas: respondo ao José Cid que aguentava perfeitamente com aquele dinheiro. E mudei-me para Cascais. Quando cheguei ainda vivi uns tempos em casa do Cid, na Lapa, e depois mudei-me para Cascais — ainda hoje vivo em Cascais. Os ensaios do Quarteto 1111 também era perto, em Paço de Arcos. Eu chego aqui em outubro de 1969. Até ao Natal estive em casa do Cid e em janeiro mudei-me definitivamente para Cascais.

 

Cascais tinha uma “peculiaridade” à época que ainda mantém: viviam lá famílias da alta sociedade. E a verdade é que uma das primeiras namoradas que teve em Cascais pertencia a uma dessas famílias. O Tozé tinha dezoito anos. E o facto de ser músico não foi nada bem aceite pela família dela. É assim?
Ela tinha quinze e eu dezoito, sim. Nunca seria bem aceite. Estamos a falar de um Portugal que felizmente já não existe. Estamos a falar de um Portugal pré-revolução, estamos a falar de um Portugal em que meia dúzia de famílias controlavam completamente a economia do país e, portanto, controlavam o país, tanto a nível económico como a nível político.

 

Estamos a falar dos Mello, Champalimaud…
E mais: dos Espírito Santo, dos Vinhas. Todas estas famílias estavam ali concentradas em Cascais. Para a família dessa namorada de que falas, a Ana Rita, eu era como um “intruso” que tinha que ser expulso. Mas ao mesmo tempo os meus grandes amigos em Cascais nessa altura eram dessas famílias da alta sociedade. Porquê? Porque tinha ficado com duas cadeiras do sétimo ano penduras no Porto: Alemão e Latim. Pensei: “Algumas vez vou precisar de alemão na minha vida?! E latim, por amor de Deus, uma língua morta, completamente morta? Latim só se quisesse ir para o seminário e estudar para padre. Não vou nunca precisar disto…” [Risos] E acabei por ir terminar essas duas cadeiras para o Liceu de São João do Estoril — que era o liceu onde estavam os filhos destas famílias todas a estudar. O que acontece é que aquela gente era um bocadinho mais nova do que eu e olhavam para mim como olhariam para um “extraterreste”. Porque ser músico do Quarteto 1111 já te dava um certo estatuto e as pessoas olhavam para ti com respeito, este gajo é músico, vive sozinho e tal, aquilo na cabeça deles fazia-lhes muita confusão. Curiosamnete, eu acabava por viver muito melhor do que eles. As famílias deles tinham dinheiro; eles não. Então, eu pagava jantares a toda a gente. Não tinham sete contos e quinhentos para se divertirem como eu tinha. E aí começou-se a criar uma relação estranha entre nós: a malta aproximava-se de mim, não pelo dinheiro, mas pela popularidade de ser uma estrelinha, uma vedetinha. Mas também se aproximavam porque as raparigas se aproximavam muito de mim. Havia uma atração pelos músicos, sabes?… [Risos]

 

Presumo que uma dessas raparigas fosse a tal namorada Ana Rita.
Sim. Mas acho que não foi ela que se aproximou de mim; fui eu me aproximei dela primeira. Ela era lindíssima — ainda hoje é uma mulher muito bonita. E, pronto, quando olhei para a miúda disse cá p’ra mim: “Esta é a namorada que gostaria de ter!” Lá me fui aproximando através de amigas dela. E a “aproximação” ainda demorou uns meses.

 

O problema é que quando finalmente começaram a namorar… a família dela não aceitou.
A verdade é que ser música era algo mal visto. O avô da Ana Rita foi presidente da Câmara Municipal de Cascais, era um homem ligado ao regime. E certamente que terá pensado: Que segurança [financeira] é que um músico dá? Que vida vai ser a da minha neta? Eles tinham sonhos altíssimos — e à época os casamentos eram feitos dentro da alta sociedade, as famílias casavam umas com as outras e juntavam-se duas fortunas em vez de se dividirem. Claro que a Ana Rita se estava completamente a marimbar e o que queria era estar comigo. E realmente foi um namoro em que fomos muito perseguidos, sobretudo pela mãe dela, de quem anos depois vim a ser muito amigo — a mãe dela foi diretora de Relações Públicas da Rádio Renascença depois do 25 de Abril. Tínhamos longas conversas quando eu ia à Renascença, aí como presidente da BMG. E era quase embaraçoso para ela — e para mim também. A mãe dela tinha-me feito uma guerra e uma frente muito fortes. Chegou a aparecer-me à porta de casa à procura da Ana Rita, e às vezes à porta dos meus pais quando eles também vieram para Cascais. O namoro acabou um ano e meio depois, com muita pena minha, porque comecei a perceber que não queria fazer o serviço militar e comecei a pensar em sair do país. E cheguei a falar à Ana Rita disso. E ela até disse que se me fosse embora que vinha comigo. Mas se ela viesse comigo no dia seguinte o avô dela punha a Interpol atrás de nós e acabava preso. [Risos] E a coisa acabou assim, foi doloroso mas tinha a consciência que não havia possibilidade nenhuma de continuar. Era completamente contra a Guerra Colonial, nós no Quarteto 1111 tínhamos canções proibidas pela censura, umas atrás das outras, algumas sobre o problema do colonialismo.

 

Começou aí a ter uma sensibilidade política maior?
Sim, sim. No Porto não tinha absolutamente nada…

 

Mais ou menos. O Tozé tinha um primo do PCP que sempre que era libertado ou se evadia da prisão ia dormir a casa dos seus pais.
É verdade. Às vezes ele fugia e o meu pai abria-lhe a porta, ele entrava tarde e a más horas e saía muito cedo de manhã, dormia, tomava um banho, comia qualquer coisa, e saía. E aí começava a perceber o que se passava. Mas não vou dizer que tinha opções — porque não tinha. Queria ser músico com quinze anos e tanto me fazia se o país era mais de esquerda ou mais de direita. Com quinze anos pensava assim.

 

No Quarteto 1111 tudo mudou.
Aí percebi tudo: tinha que lutar contra o regime, o país era uma mentira. Ainda por cima viajava muito, e quando ia a Londres, por exemplo, ou a Paris, via aquilo e pensava: “Onde é que eu vivo? Isto é um atraso de vida…” O analfabetismo, a pobreza. A gente tocava pelo país todo, pelas aldeias de Trás-os-Montes, e sentia-se isso.

 

Esses concertos em aldeias, à época, eram certamente difíceis, não? Precisamente pelo que acabou de dizer.
Toquei em cima de carros de bois! [Risos] E tratores carregados com fardos de palha. Quantas e quantas vezes a eletricidade ia ao ar a meio do espetáculo. Mas não ia só no palco; ia na aldeia inteira. Ai começas a perceber que o país era retrógrado e anacrónico. Estávamos vinte ou trinta anos atrasados em relação ao resto da Europa. Aí comecei a ter uma consciência perfeitamente clara do que me rodeava. E de que havia muita gente muito rica neste país, gente que controlava o que queria, estavam entregue a essa gente os bancos, as companhias de seguros, os cimentos, os petróleos, e havia gente muito pobre que não tinha absolutamente nada.

 

Na Guerra Colinial, sendo músico como era, podiam acontecer-lhe duas coisas: ou ia dar concertos para as tropas — como outros músicos o fizeram na altura, no “Alerta Estar” –, ou ia combater.
Não podia ir dar concertos, desde logo porque tínhamos discos proibidos.

 

Então calhou-lhe em sorte — ou azar — a especialidade de armamento pesado…
Armas pesadas, sim. Que é uma especialidade “linda”. [Risos] Mas onde eu nem era particulamente mau: fui terceiro classificado depois de voltar de Inglaterra, após o 25 de Abril, e de ter feito o serviço militar nas Caldas da Rainha. O que me preocupava não era fazer ou deixar de fazer o serviço militar; o que me preocupava era a Guerra Colonial. Fi-lo na boa quando voltei. Apanhei o 11 de Março e o 25 de Novembro, essas datas históricas, enquanto estava a cumprir o serviço militar. Andavam as tropas todas na rua, no meio desse confusão, e eu também andava. Ainda por cima fui parar ao COPCON do Otelo Saraiva de Carvalho. E a seguir ao 25 de Novembro fui saneado como muitos outros. Sem ter nada a ver com nada. São tempos divertidos de recordar.

 

Bom, divertidos não seriam… Até porque não se sabia para onde cairia o poder.
Pois, entre aspas. Podíamos cair numa ditadura militar, podíamos cair numa ditadura de esquerda — tudo o que fossem ditaduras eu seria contra, não quero saber se é de direita ou de esquerda. Eu queria era liberdade, foi pela liberdade de expressão e de pensamento que me bati, pela igualdade e pela democracia em si.

 

Há aqui uma coisa que não queria saltar, Tozé. Antes de ir para Londres para fugir à Guerra Colonial, antes de voltar e viver tudo isto, a verdade é que ainda em Cascais, quando termina o namoro com a Ana Rita, era solteiro, famoso, tinha dinheiro a rodos, tinha um apartamento vago… e tinha também um acordo com os porteiros das discotecas da zona. É assim?
Tinha um acordo com vários. [Risos] Todas as noites, das nove à meia-noite, o Quarteto 1111 fechava-se na garagem em Paço de Arcos e ensaiava. Éramos profissionais a sério. Mas eu era o único solteiro do grupo naquela época, os restantes eram casados. Quando saía dos ensaios, eles, os porteiros, ligavam-me para casa quando entravam umas suecas, umas americanas ou umas inglesas nas discotecas. Sobretudo quando elas entravam sozinhas. Do meu apartamento eram dois ou três minutos a pé até às discotecas. E metia conversa com as turistas, pronto.

 

Mas muitas vezes quando dizia às tais turistas que era músico “no melhor grupo deste país”, nem sempre elas acreditavam. Como é que “contornava” isso?
Ninguém acreditava, não. Então, convidava-as para os concertos e pronto — aí ganhava-se a “batalha”. [Risos] A gente começava sempre a conversa com um boa noite, posso-me sentar? — conversa de quem tem dezoito anos como eu tinha. Quando elas me perguntavam o que é que eu fazia, respondia que era músico e que tocava no melhor grupo deste país — também não fazia a coisa por menos. [Risos] Elas pensavam que era tanga para as engatar. Antes mesmo de as levar a um concerto, porque os concertos eram quase sempre aos fins-de-semana, trazia-lhes uns discos e dizia: “Vês? Estou aqui na capa, ouve lá isso…” Isso à partida já era uma coisa interessante para elas. Falava-se muito de música nas conversas com elas e, muitas vezes, acabávamos no meu apartamento.

 

Mas muitas vezes o seu apartamento também era usado pelos seus amigos.
Opá, isso é a fase logo a seguir. Numa primeira fase ainda tive algum cuidado em resguardar-me, não queria grandes confusões lá no meu apartamento. Mas quando os meus pais também vêm viver para Cascais, passava muito tempo em casa deles — as empregadas passavam-me a roupinha a ferro, não tinha que comer fora todos os dias; era outra comodidade — e só quando vinha de espetáculos muito tarde é que ficava no meu apartamento. Houve uma determinada altura em que comecei a emprestar a chave a quem ma pedia. E chegámos a um ponto em que já nem precisava de emprestar a chave; deixei simplesmente de trancar a porta. [Risos] O problema é que às vezes, estava eu a chegar dos concertos exausto, entrava e tinha a casa cheia. Então, tinha que correr com eles. Mas isto para te dizer que se vivia de uma forma muito livre naqueles verões de 1971 e 1972.

 

É também nessa altura que conhece a sua mulher, a Tessa. E tudo começa — ainda que indiretamente — na garagem de Paço de Arcos onde onde ensaiava.
[Risos] Certa noite pareceu-nos lá um senhor a pedir para gravarmos duas canções dele. Ele queria oferecer as canções à namorada da altura. Ora, esse senhor era amigo do meu futuro sogro, o pai da Tessa, a minha mulher, e ela quando vinha passar férias a Portugal ficava em casa desse senhor, um sul-africano que tinha uma namorada brasileira. Ele era músico amador, tocava piano, escreveu duas canções e pediu-nos, Quarteto 1111, que as gravássemos. Epá, desde que ele nos pagasse e não editasse nunca, nós gravaríamos. E gravámos.

 

Com isto, ele começou a ganhar confiança em si…
Ganhou, ganhou, e criou-se uma certa amizade e tudo. Um dia disse-nos em conversa que tinha as filhas — a Tessa e a Jane — de uns amigos dele em casa, a passar férias em Portugal, mas não gostava que elas saíssem com gente que ele não conhecia e pediu-nos — a mim e ao António [Moniz Pereira], que éramos os solteiros do Quarteto 1111 — para sair com elas. Queria que as levássemos a uma discoteca e tal. E foi assim que conheci a minha mulher, sem que durante meses se passasse absolutamente nada, ficámos só à conversa, bebíamos um copo, dançávamos, mas por elas tínhamos um respeito — por causa dele — que não tínhamos pelas outras turistas que cá vinham. Aos poucos fomo-nos aproximando e, quando demos por nós, namorávamos.

 

O começo do namoro coincide com a sua ida para a Guerra Golonial. Era tempo de fugir para Londres. O seu pai teve que pagar dez contos a um guarda da fronteira para que o Tozé chegasse a Espanha, não foi?
Era um tipo da PIDE. A Tessa já estava em Londres nessa altura. Foi à frente. Então passei a fronteira dentro do carro desse guarda, a ouvir um relato do Benfica, num domingo à tarde, o carro dele nem parou na fronteira, ele simplesmente fez sinal aos outros guardas, disse-lhes que ia ao lado de lá fazer umas compras e passou. Mas enquanto passou e não passou, só pensava: “Se este gajo me denuncia agora vou parar ao Tarrafal!” [Risos] Ele deixou-me em Tui, na Galiza, recebeu os dez contos, e depois segui de carro com os meus pais até Madrid. Foi um dia de viagem para chegar a Madrid. A minha sorte para voar de Madrid para Londres foi esta: ter o passaporte todo carimbado por ter dado a volta ao mundo a tocar com o Quarteto 1111. Essa foi a minha sorte, porque em Madrid sempre que apanhavam um português da minha idade, recambiavam a malta para trás. Mas como já tinha estado no Japão, na Tailândia, em Macau, na China, na Grécia, na Suíça, em Inglaterra não sei quantas vezes, em França não sei quantas vezes, eles olharam para o passaporte e deixaram-me ir. Cheguei a Londres, casei, esperei que o 25 de Abril acontecesse, e foi assim.

 

Mas esses primeiros tempos em Londres até se dar o 25 de Abril e regressar foram tempos duros, em que trabalhava, estudava, às vezes também tocava aos fins-de-semana. Era de sol a sol.
Tinha que ser, pá, tinha que ganhar a vida. E deixei de ser a pequena estrelinha que era em Portugal para ser um tipo como outro qualquer. Arranjei um emprego como tradutor, numa companhia de seguros, em que trabalhava das nove às cinco. Levantava-me às seis e meia da manhã — porque estava muito longe de Londres, vivia em Surrey, no sul, e a viagem de comboio demorava à volta de cinquenta minutos. Às cinco saía a correr para o Birbeck College, onde estava das seis às dez a estudar Psicologia, e depois apanhava o comboio de volta a casa, que só chegava às onze e meia da noite, e deitava-me à meia-noite.

 

Ao fim-de-semana tocava.
À noite pegava na viola e tocava um bocadinho com a Daphne, que era uma amiga que vivia lá — e que em Portugal tinha tocado no Música Novarum. E pronto, íamos cantar nos pubs e nos sítios onde havia música ao vivo.

 

Quando é que recebe a notícia do 25 de Abril?
Por telefone, às seis da manhã. Fui acordado pelos meus amigos de cá.

 

E nesse dia ainda vai trabalhar?
Fui, fui. Mas fui trabalhar com o coração aos saltos.

 

Até porque àquela hora não se sabia bem que revolução tinha sido e no que é que resultaria…
Não se sabia bem, só se sabia que era um golpe de Estado. E fiquei numa expectativa grande. A minha preocupação foi ligar ao fim do dia para Portugal e lá me contaram que o [Marcello] Caetano tinha caído.

 

Não voltou logo.
Não. A minha mulher estava grávida nessa altura e não me podia meter a caminho de Portugal logo. Mas como imaginas a minha vontade era embarcar logo. Apeteceu-me apanhar um avião no mesmo dia. Mas era uma estupidez viajar com a Tessa grávida. Esperei que nascesse a Ana, a minha primeira filha, esperámos dois meses, viemos cá passar o Natal e voltámos definitivamente em janeiro. Depois, fui cumprir o serviço militar como te disse.

 

Estava no serviço militar mas continuava a tocar com o Quarteto 1111 aos fins-de-semana. Como é que conseguia?
Faço o ano todo de 1975 no serviço militar. Mas aos fins-de-semana tocava porque comprava, negociava. Quando estava como oficial de dia aos fins-de-semana trocava isso com outros e pagava-lhes a troca. Mas nessa altura também já existiam os Green Windows — e, esses sim, no verão tocavam durante a semana e muitas vezes faltava ao concerto; mas como éramos seis em cima do palco a cantar não fazia diferença se estava lá mais um ou menos um.

 

Essa fase do pós-25 de Abril foi de muitíssimo trabalho para o Tozé.
Foi, foi. É quando começamos a escrever canções que vendem muito e rendem muito dinheiro. E nós começamos a encarar cada vez mais, e definitivamente, a música como a nossa vida. Eu e o José Cid, sobretudo nós. No Quarteto 1111, o Michel Silveira voltou para a TAP e o António Moniz Pereira passou a produzir programas de televisão e grava as primeiras telenovelas em Portugal. Mas eu e o Cid continuamos na música. Ele ainda continua hoje e eu comecei, mais tarde, a desempenhar outras funções e fui presidente de companhias discográficas, fui produtor musical em estúdios.

 

Há uma fase em que continua a estar inserido em grupos e há outra, posterior, em que se volta mais para a composição para outros — algo que, aliás, continua a fazer. O que é que gostava mais?
Compor para outros aconteceu logo em 1976. São processos completamente distintos. Mas compor para outros é ainda hoje o que mais faço e gosto. Em 1976, quando escrevi o “Pensando em Ti” para os Gemini, o sucesso foi tal que recebemos o primeiro disco de outro entregue cá pela Associação Fonográfica, foi o primeiro disco a chegar aos cinquenta mil exemplares vendidos. Hoje em dia, com a era digital, dificilmente alguém chega a estes números. Mas com a escrita do “Pensando em Ti” houve muita gente que começa a olhar para mim de outra forma. Há uma data de cantores da altura que me começam a pedir canções. E logo em seguida escrevo o “Recordar é Viver” do Vítor Espadinha. E com o “Recordar é Viver” voltei a vender mais de meio milhão de cópias. E logo a seguir ao Espadinha começo a escrever, a convite deles — nunca bati à porta de ninguém nem telefonei a ninguém –, para pessoas tão distintas como o Tony de Matos ou o Francisco José.

 

Mas alguma vez lhe apeteceu bater à porta de alguém ou telefonar a alguém? O que pergunto é se houve alguém para quem gostasse de ter escrito um canção e não escreveu.
Não… [Pausa] Quer dizer, houve uma pessoa com quem não tive contactos pessoais e para quem queria ter escrito uma canção, que foi a Amália. Mas quando entrei nesta fase, dos Gemini, do “Recordar é Viver” e de outras coisas que escrevi para outros — Tony de Matos, Francisco José, Simone de Oliveira, António Calvário… –, é uma fase em que a Amália grava muito menos e tinha uma idade mais avançada, embora ainda cantasse. Tive vontade, digo-te sinceramente, de escrever uma canção para ela. Mas também na altura não sabia o que era escrever para o fado e nem me atrevi. Não a procurei, deixei-me estar sossegado. É curioso que quem me desafia para o fado é o Carlos do Carmo, em 1983, para o disco “Um Homem no País”. Convida-me para escrever uma canção. Não sabia se era capaz. Mas saiu-me uma coisa lindíssima.

 

O poema do “Fado da Leziria”, que é o fado que escreve, é do José Carlos Ary dos Santos. Como foi trabalhar com o Ary?
O Carlos só me disse: “Faz o que quiseres, escreve o que quiseres, que depois o Zé Carlos encaixa a letra nisso…” E assim foi. A letra do José Carlos Ary dos Santos é lindíssima. Mas eu escrevi a música primeiro. Fomos a casa do Ary dos Santos, ele bebeu meia garrafa de gin, aqueceu, tomou nota das sílabas, tónica na segunda, tónica na quinta, sete sílabas, foi para o quarto, voltou passada meia-hora e disse: “Está feito!” Um gajo olhava e não queria acreditar que era verdade — o Ary dos Santos era um génio. Foi a pessoa, o letrista, com mais talento que conheci na vida.

 

Ainda não falámos do Festival da Canção.
Diz lá…

O Tozé participou algumas vezes, como compositor ou como intérprete, e venceria o festival, em 1978, com os Gemini. Qual era a importância do festival na altura?
Era um loucura, pá. Estás a falar de uma altura em que a RTP era o único canal. As pessoas quando queriam ver televisão, viam a RTP. E o Festival da Canção era o grande programa da RTP. À noite, no dia do festival, não vias ninguém nas ruas, tudo parava, faziam-se apostas sobre quem venceria aquilo, as famílias juntavam-se em casa religiosamente à hora das canções e, depois, das votações — que demoravam uma eterniadade a saber-se. Nós ganhámos, sim, e fomos a Paris cantar na Eurovisão o “Da Li Dou”.

 

No começo disse-me que em Paris lhe tremeram as pernas como nunca antes.
Tremeram, tremeram. Epá, nem era por causa da sala, a sala era grande mas era uma sala como as outras, tu tremias porque sabias que estavas a ser transmitido para duzentos ou trezentos milhões de pessoas. E isso foi um susto, mas um susto. A sério! Digo-te sinceramente: entrei em palco, senti as pernas a tremer, pensei que passaria — porque já tinha uma década disto –, mas não passou. Lá cantámos a canção direitinha e tal. Mas só senti alívio quando a canção terminou.

 

Esse ano, o de 1978, foi muitíssimo politizado na Eurovisão.
Completamente! Porque Israel concorre pela primeira vez e ganha. E com uma canção que era igual ao “Da Li Dou”. Costumo dizer que se eles tivessem cantado o “Da Li Dou” e nós o “A Ba Ni Bi”, eles venciam na mesma. Depois daquele festival só queria sopas e descanso. Foi realmente a vez em que senti mais o peso de subir a um palco.

 

É por causa das “sopas e descanso” que aceita afastar-se dos palcos — pelo menos como intérprete — e assumir cargos de administração nas editoras?
Foi uma opção. Sou muito pragmático, tudo tem um tempo. E pensei: “O sucesso pode acabar um dia. É preciso ganhar dinheiro para sustentar a minha família”. Mas atenção, pensei isto mas sabia que estaria na música até ao fim porque tinha descoberto que sabia escrever canções. Tinha consciência que teria muito mais sucesso como escritor de canções do que propriamente como cantor. Até porque não tenho grande voz, nunca tive; “defendo-me” é bem. Mas também não é preciso ter-se uma grande voz para cantar, o que é preciso é transmitir emoção no que fazes. Num estúdio tens quinhentos botões numa mesa — com eco, com reverberação, tudo o que tu quiseres está lá — mas nenhum diz “emoção”. Ou cantas com emoção ou não cantas. Até podes ter uma voz brutal, de tenor, e não chega nada a quem ouve. É como diz a velha expressão: cantas bem mas não me alegras. O Chico Buarque, o Joan Manuel Serrat, o Jacques Brel, o Bob Dylan, nenhum deles tem uma grande voz mas são únicos e transmitem emoção. A singularidade é muito mais importante do que uma grande voz. Para mim, enquando estive à frente de editoras, quando assinava com artistas, quando os selecionava, o que mais queria era encontrar um artista singular. Não queria um artista que tivesse uma voz lindíssima mas que copiasse outro ou que não tivesse emoção e expressão nenhuma a cantar.

 

E saudades do palco, tinha?
Nunca me agradou muito estar sozinho em cima do palco, confesso. Enquanto estive em grupos, desde o Pop Five ao Quarteto 1111, Green Windows, Gemini, divertia-me à brava porque tinha malta em cima do palco comigo. Quando estava sozinho, com músicos lá atrás, era frio e não me agradava nada. Em 1987 gravo o último álbum, “As Noites Íntimas de um Hotel com Estrelas”, e a partir assumi definitivamente que a minha carreira tinha acabado. Há trinta anos que não canto profissionalmente, a solo. Às vezes os amigos convidam-me e faço-o na boa, tenho o maior dos prazeres.

 

Ouvi dizer que os seus netos têm “queda” para a música. Se eles quiserem ser músicos, não lhes dirá certamente o que o seu pai lhe disse?
Não, não. Até porque o pai deles, o Pedro Vaz, também é músico e produtor musical. Os tempos hoje são tão ou mais difíceis do que aqueles em que resolvi ser músico, mas hoje em dia os miúdos, curiosamente, têm outra visão do mundo. Eles gostam muito de música: o João, o mais velho, toca viola; o Diogo canta; o Francisco tem seis anos e toca bateria. Mas a visão já é a de que querem ser músicos, sim, mas se calhar só como hobbie. O avô não os empurra para serem músicos nem os trava. Mas digo-lhes que os estudos são muito importante — e a verdade é que eles são todos alunos de cinco.

 

Em tempos escreveu o seguinte: “Se continuarei na música até morrer? Não, continuarei muito para além disso”. Ainda pensa assim?
Penso, penso. Vou com certeza continuar a fazer música, a escrever canções até morrer, porque é o que mais gosto de fazer. Mas também sei que vou continuar muito além disso porque as canções vão continuar — independentemente de quem as ouve saber que fui eu que escrevi ou não. Tenho a noção de que fiz algumas coisas bem feitas e outras menos. Também errei em muitas coisas e fiz canções que se hoje pudesse apagar, apagaria. O que sei é que vão continuar a cantar as minhas canções mesmo quando eu já cá não estiver.

 

Só não gosta muito é que as cantem em karaokes…
[Risos] Como é que sabes isso?… Não é que não goste. Por um lado até fico contente, porque é uma prova de popularidade da canção. A música que escrevi para a Adelaide Ferreira, o “Papel Principal”, está em todos os karaokes. É uma “peste”… [Risos] As canções das Doce também. A do [Vítor] Espadinha também. São muito cantadas nos karaokes, é o que é. O que me custa horrores é ouvir pessoas que não têm absolutamente jeito nenhum a cantar essas canções. Quando as ouço assassinarem as canções — gente que é desafinada, semitonada, às vazes até é completamente atonada –, é uma coisa horrorosa e dá-me vontade de rir. Mas também me dói… [Pausa] A verdade é que não gosto é de ir a bares de karaoke porque, inevitavelmente, as pessoas veem que estou lá e ainda me pedem para cantar. Só gosto de cantar para os amigos e com amigos.



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