Tozé Brito: “Queria ter escrito uma canção para a Amália”
Cedo o pai o influenciaria a gostar de cantar e tocar viola, mas queria-o economista ou advogado — e nem pensar em ser músico. Igualmente cedo, António José Correia de Brito fez-se Tozé Brito e voltou-se, à revelia deste, às canções. Escreveu mais de quatrocentas, algumas que o próprio interpretaria, a maioria interpretada por outros. Garante que é sobretudo isso, um escritor de canções: “Não tenho grande voz, nunca tive; ‘defendo-me’ é bem. Mas também não é preciso ter-se uma grande voz para cantar, o que é preciso é transmitir emoção no que fazes. Num estúdio tens quinhentos botões numa mesa — com eco, com reverberação — mas nenhum diz ‘emoção'”.
As canções, acredita Tozé — o mesmo Tozé que ainda adolescente dizia “tocar no melhor grupo deste país” [o Quarteto 1111] para levar turistas das discotecas de Cascais para o seu apartamento –, vão perdurar. Mesmo depois de partir. “As canções vão continuar, sim, independentemente de quem as ouve saber que fui eu que escrevi ou não. Tenho a noção de que fiz algumas coisas bem feitas e outras menos. Fiz canções que se hoje pudesse apagar, apagaria.”
Algumas das que escreveu estão tão no ouvido (e boca) de todos, até hoje, que se tornaram uma “peste”, graceja, e quase não as consegue ouvir mais. Pelo menos mal cantadas nos karaokes. “A música que escrevi para a Adelaide Ferreira — o ‘Papel Principal’ — está em todos os karaokes. É uma ‘peste’… As canções das Doce também. A do [Vítor] Espadinha também. O que me custa horrores é ouvir pessoas que não têm absolutamente jeito nenhum a cantar essas canções. Quando as ouço assassinarem as canções é uma coisa horrorosa e às vezes dá-me vontade de rir. Mas também me dói…”
Afastou-se dos palcos definitivamente em 1987 porque “precisava ganhar dinheiro para sustentar a família”, tornado-se depois executivo das editoras BMG e Universal Music. “Há trinta anos que não canto profissionalmente, a solo. Às vezes os amigos convidam-me e faço-o na boa, tenho o maior dos prazeres.” Hoje, cinquenta anos depois de ter escrito [então com somente quinze e no grupo Pop Five Music Incorporated] a primeira canção, lamentos não tem. Ou melhor, apenas um. “Tive vontade, digo-te sinceramente, de escrever uma canção para a Amália. Mas também na altura não sabia o que era escrever para o fado e nem me atrevi. Não a procurei, deixei-me estar sossegado.”
Perdeu-se um economista? Pergunto-lhe isto porque o seu avô,
que trabalhava na banca, e o seu pai, que trabalhava numa seguradora,
queriam encaminhá-lo para essa profissão.
Não sei se se terá perdido um economista ou não. Mas é verdade que me
queriam encaminhar para Economia, sim. Para isso e para Direito. Eram as
opções deles. E sei o porquê: na altura o mercado de trabalho era
completamente diferente do que é hoje, estamos a falar dos anos
sessenta, e quem tivesse um curso de Direito ou de Economia tinha
emprego quase garantido. Não vivíamos a precariedade que se vive hoje em
dia e as dificuldades que a miudagem tem hoje em dia — hoje, mesmo com
um curso nada te garante que vais conseguir ter trabalho.
À época, a possiblidade se singrar na música era baixíssima. Em certa medida concordava com eles, não?
Era baixíssima, era. Sabes: o meu pai tocava muito bem viola, nunca foi
profissional, aquilo era um hobbie, mas era um excelente músico. E
cantava muito bem também. Ele nunca foi propriamente contra o facto de
eu gostar de música. Mas dizia-me: ‘Tu és maluco se vais apostar na
música, porque só um em cem é que se safam. Se tiveres um curso superior
tens muito mais hipóteses de viver bem…” Até que finalmente chegou uma
altura em que tive que tomar uma decisão e tive que dizer abertamente ao
meu pai: “Quero ser músico, acabou!” Ainda cheguei a fazer o sétimo
ano. Mas nessa altura já estava com o Quarteto 1111 e decidi que era o
que queria ser. E estava preparado para tocar onde fosse preciso tocar:
numa casa de fado a acompanhar um fadista, a tocar baixo num pub, no
casino, em qualquer lado onde houvesse música e fosse preciso. Ele [pai]
não achou graça nenhuma, claro.
Mas a verdade é que anos
mais tarde, quando o Tozé teve o sucesso que teve, o seu pai tornou-se
num dos seus maiores fãs. Mesmo que não o assumisse — o Tozé dizia que
ele, sendo muito afetuoso, nem sempre o assumia.
Exatamente. Tudo isso tem a ver com a educação que ele teve, com as
origens do meu avô, que era uma pessoa muito conservadora, um homem do
século XIX, e o meu pai tinha sido educado de uma forma muito rígida.
Ele fez-me o quer era habitual fazer-se quando o filho de dezoitos anos
diz que quer ser músico. Mas eu ganhava bem no Quarteto 1111, ganhava o
suficiente para alugar o meu apartamento, em Cascais, e para me
sustentar, comia, pagava as contas todas. E quando o meu pai começou a
perceber que as coisas me estavam a correr bem, que tinha a
possibilidade de fazer uma vida desafogada sem depender dele, passou a
ser o meu maior fã. Mas como dizes e bem, não era de ir aos concertos e
sentar-se na primeira fila; ficava lá atrás e no final do espetáculo
vinha ter comigo para me dar um abraço. Mas poucas vezes o vi num
espetáculo. Sei que comprava os discos, que me seguia pela televisão e
pelos jornais da época.
Sendo o seu pai músico, ainda que amador, certamente
incutiu-lhe desde cedo uma cultural musical. Ainda por cima o Tozé vivia
numa casa durante a infância com muita gente: pais, avós, irmãos, os
primos e tios ao fim-de-semana. Sei que quando se juntavam todos,
cantavam e tocavam. A música sempre esteve presente, é assim?
O meu pai tocava viola, como disseste, o meu tio tocava e cantava muito
bem também, a minha avó cantava, nós, filhos, conforme fomos crescendo
fomo-nos juntando a eles a cantar e a tocar. E havia muita música lá em
casa. Sempre houve. Havia música de todas as maneiras: ouvia-se na
rádio, na grafonola, depois passou a ser o gira-discos, na televisão, o
meu avô, especialmente ele, ouvia música clássica a toda a hora.
Portanto, ouvi música desde que nasci. Lembro-me de ser criança, ter
talvez um ano ou dois, e ouvir o meu pai tocar e cantar, era uma coisa
normal em casa. E aprendi música: primeiro o piano, porque havia um
piano lá em casa, e cheguei a ter aulas durante dois anos, dos oito aos
dez Viola? Viola aprendi completamente sozinho. Tinha cinco, seis anos
quando comecei a tocar viola. Sabes: tenho muita pena de não ter
continuado a aprender piano. Porque o piano é o instrumento mais
completo que há. É um fascínio. Ainda toco um bocadinho, o suficiente
para me entreter e para às vezes compor alguma coisa. O tipo de escrita
no piano é diferente da escrita na viola. Acho que é mais fácil fazer
umas inversões e encontrar umas harmonias ao piano. Na viola tens mais
dificuldade a fazer isso. Mas aos dez anos percebi logo que o piano não
era para mim. Porquê? O piano era um chatice porque só podia tocar
sozinho. A viola não.
Sobre a viola há uma história curiosa: o Tozé gostava
de tocar… mas sempre que na escola as notas desciam, o seu pai
tirava-lhe a guitarra e escondi-a à chave.
[Risos] É verdade. Mas a viola nem era minha, era dele. A viola de que
falas está naquele canto [aponta para um estojo no escritório em que
trabalha na Sociedade Portuguesa de Autores]. A viola era do meu bisavô,
pai da minha avó, que era professor de música. O irmão dele era
maestro, o maestro Alves Rente. E esta guitarra foi onde aprendi a
tocar. Obviamente que já foi restaurada, caso contrário já estaria em
cacos ao fim de mais de um século. Esta guitarra tornou-se um
instrumento muito mais agradável do que o piano porque eu pegava nela e
podia levá-la para todo o lado, para o liceu, sempre às costas. E o meu
pai deixava-me levá-la desde que tirasse boas notas no liceu. Quando as
notas desciam, dá-me cá a viola e escondia-a.
A viola ficava trancada à chave enquanto ele ia trabalhar. Mas a sua avó tinha a chave…
[Risos] A minha avó era “especialista” em ir lá buscá-la, passava-ma
pela janela — porque eu ficava fechado no quarto de castigo. As janelas
eram pegadas uma à outra, ela estendia o braço, eu estendia o braço e
pegava-lhe.
As boas memórias que tem da infâcia no Porto são sobretudo essas, as da família.
Mas dos amigos também tenho. Mas só tenho mais tarde, no liceu. Antes
disso não tenho grandes memórias nem tive grandes amizades porque, de
facto, a vida era passada muito em família.
Mas não se brincava na rua? Não acredito.
Brincava, brincava muito na rua. Naquela altura quase não havia
automóveis na rua e nós jogávamos à bola em frente da minha casa, em
Paranhos. Naquela altura passavam automóveis de dez em dez minutos.
Aquilo não era propriamente o centro do Porto. E estamos a falar dos
anos cinquenta, pouca gente tinha automóvel. Depois mudei-me para a zona
da Boavista e, a partir daí, vivia numa zona muito mais movimentada da
cidade. Mas em Paranhos era uma paz desgraçada para brincar.
E a partir daí é que faz as amizades que perduram.
Sim. Na escola primária ia para as aulas, voltava a casa e tinha os meus
irmãos e as minhas primas. Amigos não tinha muitos. Houve uma altura em
que lá em casa chegámos a viver os meus avós, o meu pai e a minha mãe, o
meu tio e a minha tia, três irmãos de um lado, três primas do outro. A
casa tinha rés-do-chão, primeiro andar, segundo andar e cave. E ainda
havia as empregadas. Isto ainda em Paranhos. Na Boavista vivia só com os
irmãos e os pais. Tinha eu dez anos. Aí comecei a ter mais amigos.
Ainda que não tenha grandes memórias do tempo anterior ao
liceu, a verdade é que foi no jardim-escola que pisou um palco pela
primeira vez. Verdade?
Sim, foi no jardim-escola João de Deus. Tinha cinco anos.
E essa estreia foi logo no Teatro Sá da Bandeira.
Havia sempre uma récita anual no jardim-escola — e essa récita era apresentada no Sá da Bandeira.
E começou aí o interesse pelo espetáculo?
Achei graça a estar em palco, não digo que não. Vestiram-me de pescador
nessa récita. Aquilo era uma peça. E tinha inclusivamente deixas para
dizer ao longo da peça. A peça era pequenina, como é óbvio, mas tive que
decorar as frases. Achei graça ao ollhar para a plateia e ver aquilo
tudo cheio de gente. Achei graça. Quando não tens o menor sentido de
responsabilidade, que é uma coisa que hoje tenho, achas graça. Hoje não
tremo mas tive alturas em que… uish! Não me lembro de estar tão nervoso
na minha vida como quando cantei na Eurovisão. Tinha vinte e sete anos. E
tinha na altura mais de dez a pisar palcos e a andar na estrada.
Naquela altura já tinha atuado em Vilar de Mouros com vinte e tal mil
pessoas à minha frente. Mas senti-me nervoso, achava que tinha a
bandeira do país estampada na testa e senti-me nervoso. Chegas lá
[Eurovisão] e não estás a representar a RTP nem és os Gemini; sentes-te a
representar o país e o peso da responsabilidade é muito. E lembro-me
que aí tremi. Literalmente: senti os joelhos a tremer todos… [Risos]
Lá iremos. É portanto no liceu que surgem as primeiras bandas e os primeiros concertos…
Havia muitos rapazes como eu que queriam tocar. E no Porto havia pouca
oferta. A cidade do Porto era muito pacata. Os cinemas eram poucos e
eram longe. Éramos miúdos e não era fácil ir aos cinemas da Baixa. Era
muito mais fácil a gente juntar-se na garagem lá de casa com as violas
na mão e tocar. E começámos a ouvir coisas na rádio — Beatles, por
exemplo — e era precisamente aquilo que queríamos fazer. Ninguém
escrevia canções nessa altura. A primeira canção que escrevi [“You’ll
See”] foi com o grupo Pop Five em 1967, que também quando gravei o meu
primeiro álbum. Tinha dezasseis anos.
Escreveu-a em inglês. Porquê?
Nessa altura ainda não queria escrever em português como escreveria mais
tarde. Gostava de escrever em português mas assustava-me a ideia,
sentia que não tinha capacidade para me expressar.
Escrever em inglês dava-lhe segurança, portanto.
Claro. Um gajo começava a escrever umas linhas em português e achava que
não tinha jeito nenhum para aquilo. Porque aos dezasseis anos pouca
gente consegue escrever boas letras em português, é o que é. E cantar em
inglês era também uma defesa. Nós sabíamos um bocadinho de inglês e
aquilo não tinha erros gramaticais, mas era uma coisa muito insípida e
às vezes sem sentido. Quando chego ao Quarteto 1111, com dezoito anos,
em 1969, aí comecei a sentir-me capaz de escrever em português e comecei
logo a gravar. E a fazer a aprendizagem com o José Cid e com os outros
membros da banda.
Mesmo para um miúdo de dezoito anos, a ida para o Quarteto
1111 foi uma coisa realmente séria. As bandas anteriores, sendo sérias…
O grupo Pop Five foi sério.
Sim, mas sendo sério, tocavam em sítios bem menores do que o Quarteto 1111. Certo?
Menores, sim. Mas o Pop Five já foi um grupo sério. O primeiro grupo em
que toquei foi uma coisa que começou por se chamar Duques. Eram amigos
meus de liceu, e tocávamos nos bailes de bombeiros, em Matosinhos e Leça
da Palmeira, ao domingo à tarde. A coisa era muito amadora. E só
tocávamos covers. No Pop Five já era uma coisa muito mais séria, os
músicos já eram todos eles muito bons, tinham outro nível e não era
normal uma banda do Porto, naquela época, vir tocar a Lisboa tantas
vezes como viemos. Não era normal. Em Lisboa havia bandas fantásticas:
os Sheiks, sei lá, Quinteto Académico, Chinchilas, muitas bandas e todas
elas muito boas. Havia um certo interesse pelo que nós estávamos a
fazer — e é tudo resultado de um álbum que gravámos muito precocemente
em 1967. Era um coisa inédita no país: um grupo com miúdos do liceu,
dezasseis ou dezassete anos, estar a gravar um álbum, isso era algo que
estava só reservado aos artistas mais consagrados do país. A editora
Orfeu, do Arnaldo Trindade, era uma editora com grandes
responsabilidades na boa música portuguesa que se gravou naquela altura,
uma editora onde esteve o Zeca Afonso, o Adriano Correia de Oliveira, o
Fausto, o Sérgio Godinho, o José Cid, era uma editora muito importante e
a malta do norte — ou do Mondego para cima, vá — era lá que gravava. E
nós gravámos também.
Mas foram lá bater à porta do Arnaldo Trindade?
Não, tínhamos um manager.
Mesmo sendo adolescentes já tinham uma manager? Muito à frente…
Já tínhamos, já. O nosso manager era o Fernando Matos. Ele já era
advogado mas era muito novo: tinha vinte e cinco anos. E era o Fernando
Matos que negociava os cachets. E foi ele que foi bater à porta do
Arnaldo Trindade, levou as maquetas com ele e lá fechou negócio. O
Arnaldo Trindade era um homem com a cabeça muito à frente. E tinha uma
visão rara para a época.
E o Tozé ainda vê esse disco como um bom disco hoje em dia?
Tens que o ver no contexto da época. Para miúdos de dezasseis, dezassete
anos, era. Era um disco à frente do seu tempo. Até porque tinha uma
extrutura que não vias em nenhum lado, chamava-se “A Peça”, tinha I
Acto, II Acto, não sei se tinha III Acto, e tinha o introito e o
epílogo, aquilo tudo tinha uma estrutura que não era normal nos álbuns
da época, muito menos para miúdos da nossa idade. Mas nisso o Fernando
Matos tinha muita influência, porque nós tínhamos ali não só um manager
como tínhamos um amigo, e uma pessoa que tinha boas ideias e nos sugeria
fazer isto ou aquilo. E nós fazíamos quase sempre. E esse álbum teve um
impacto grande e por aí é que começamos a sério. E é também por causa
desse álbum que eu venho mais tarde a receber o convite do José Cid para
integrar o Quarteto 1111.
É esse convite que o traz para Lisboa e, nomeadamente, para Cascais?
É, é. Isso e a decisão, definitiva e final, de que quero ser músico, de
que a minha vida ia ser essa, ponto final. Enquanto estava no Porto,
apesar de querer ser músico, eu próprio tinha dúvidas. Percebia
perfeitamente, não era preciso ninguém dizer-me, que o Pop Five não iria
durar eternamente, até porque os outros também membros da banda
estudavam, tinham outras ocupações, e aquilo estava à vista que ao fim
de uns anos cada um iria fazer a sua vida e acabaria.
Antes
de falar da vinda para Cascais e do convite do José Cid: a verdade é
que também há uma quebra da sua ligação ao Porto por causa do acidente
que a sua prima Paula teve. Ela ficou em coma profundo.
A Paula era como uma irmã, das minhas três primas era a mais nova.
Essa prima Paula era a prima que lhe trazia e levava os bilhetinhos que trocava com as namoradas de liceu.
Era, era. [Risos] Com as namoradas todas que tinha ela era o
“intermediário”. Ela fazia o papel de vaivém, levar os recados e trazer
os recados. A minha prima era dois anos mais nova do que eu. Eu tinha
uns quinze anitos nessa altura. Aí é que comecei a ter namoradas — até
lá não eram namoros; eram aquelas palermices que têm graça mas não são
nada. Tinha catorze anos a primeira vez que tive uma paixão realmente
forte.
E a Paula teve influência nessa “paixao realmente forte”, presumo.
Teve, claro. Porque era uma amiga dela e teve um papel muito importante,
claro. E de repente ela teve um acidente, tinha dezoitos anos quando
teve. Nessa altura eu já estava a viver em Cascais. Antes, ela vinha
muitas vezes aqui visitar-me, acompanhava o Quarteto 1111 para todo o
lado, eu tinha realmente uma relação muito próxima com ela.
Mas nunca a conseguiu visitar após o acidente. Porquê?
Não consegui. Ela ficou em coma profundo vinte e dois anos, sempre em
casa dos meus tios. Nem sempre esteve ligada à máquina para respirar —
mas esteve sempre em coma profundo. Pelo que me contaram — porque nunca a
vi, nunca quis ver –, ela era uma miúda perfeitamente normal quando
isto aconteceu e passou de ter cinquenta e cinco quilos para ter somente
trinta. Estava irreconhecível.
E isso afastou-o definitivamente, diria mesmo emocionalmente, da cidade do Porto.
Afastou. Porque sempre que ia ao Porto tinha que ir a casa dos meus tios
— que também eram meus padrinhos, diga-se. Eles viviam no primeiro
andar de um prédio na Rua Bessa Leite e no segundo andar viviam os meus
avós. Tinha que lá ir, promtp. E confrontava-me sempre com o pedido da
minha tia para ver a Paula que estava no quarto. Respondia-lhe que não,
porque queria guardar a imagem que tinha dela antes do acidente. Sabia
que ia ter um choque, porque lembrava-me dela como uma pessoa cheia de
vida, que saía comigo e que estava com o Quarteto 1111 até às cinco da
manhã. Era como uma irmã para mim. Nunca consegui ultrapassar aquela
porta do quarto.
Voltemos então ao convite do José Cid para integrar o Quarteto 1111. Como e quando é que surgiu?
Estava a tocar em Penafiel, numa festa num lago — eles esvaziavam um
lago gigante que havia em Penafiel, limpavam aquilo tudo e havia um
palco num canto e outro palco no outro, tocava uma hora uma banda e
outra hora outra banda. E nesse ano de 1969, no verão, estava o Quarteto
1111 de um lado e o Pop Five do outro. E quando eu estava a tocar,
lembro-me perfeitamente como se fosse hoje, a malta estava toda a
dançar, milhares de pessoas, e de repente olhei para a frente e na
primeira fila, para além das fãs, estava o Quarteto 1111 a olhar para
mim. Achei estranho. “Mas o que é que estes gajos estão aqui a fazer a
olhar para mim?!” Nós ouvíamo-nos, mas nunca íamos para a primeira fila
uns dos outros. O baixista deles, o Mário Rui, tinha sido mobilizado
[para a Guerra Colonial] e ia sair da banda em breve. E eles precisavam
de outro baixista. Não estavam ali para ouvir o Pop Five coisa nenhuma;
estavam ali para me ouvir tocar e ver o que é que eu fazia. Se tinha
nível para o grupo deles. E naquele concerto até puxei do brio e toquei
melhor: “Se estes gajos estão a olhar, deixa-me fazer aqui umas
habilidades para eles!” E a coisa até correu bem. No fim, o José Cid
veio ter comigo e perguntou-me se aceitava ir viver para Lisboa e tocar
com eles. “Epá, deixa-me pensar nisso…”, respondi-lhe. Tinha dezoito
anos. Tinha que falar com os meus pais, porque só eras maior de idade
aos vinte e um. E disse também ao Cid que se aceitasse tinha que ter
garantias. E ele disse-me que garantias teria. Primeiro falei com os
meus pais, eles disseram que a decisão era minha mas que a consideravam
“uma asneira”. Acho que o meu pai me deixou vir porque pensou que ao fim
de três meses aquilo correria mal e e voltava para casa. Não correu.
Mas ainda faltava negociar quanto é que ia ganhar.
Sim. E fui falar com o José Cid. Ele perguntou-me o que é que precisava.
“Epá, preciso de alugar uma casa, de comer, de pagar os transportes
para ir para um lado e para o outro, se tiver que ir ao médico preciso
de dinheiro para ir ao médico, não preciso de muita coisa, preciso de
comprar umas roupitas de palco…” E ele disse-me, depois de fazer as
contas: “Epá, nós no verão ganhamos muito dinheiro…” “Então e quando não
é verão, como é que é? Desculpa lá mas não sei se consigo… Ainda
estouro o dinheiro todo e no Inverno não tenho. Assim não…”, respondi. E
perguntei: “Quando é que me podes dar por mês? Fixo…”
E quanto é que acordaram?
Sete contos e quinhentos. Em 1969 era muito dinheiro.
Chegava para a renda do apartamento e ainda sobrava.
Chegava, chegava. Pagava um conto e quinhentos de renda. A maior parte
da malta hoje deixa na renda metade do que ganha. Aquilo dava para viver
calmamente — e nem tinha que cozinhar em casa. Comia todos os dias
fora. [Risos]
Mas a mudança para o Quarteto 1111 também aumentou a exigência. Tornou-se profissional.
Muitíssimo. Trabalhava todos os dias.
No começo falava-me de Vilar de Mouros — e de como foi tocar para milhares de pessoas.
Vinte mil pessoas! Epá, foi a primeira vez que levei um banho de
multidão em Portugal. Era um mar de gente que nunca mais acabava. Num
recinto pequeno, malta apertada, sentada no chão. Foi uma sensação
única. Isso foi em 1971. Mas voltando atrás e às minhas continhas:
respondo ao José Cid que aguentava perfeitamente com aquele dinheiro. E
mudei-me para Cascais. Quando cheguei ainda vivi uns tempos em casa do
Cid, na Lapa, e depois mudei-me para Cascais — ainda hoje vivo em
Cascais. Os ensaios do Quarteto 1111 também era perto, em Paço de Arcos.
Eu chego aqui em outubro de 1969. Até ao Natal estive em casa do Cid e
em janeiro mudei-me definitivamente para Cascais.
Cascais
tinha uma “peculiaridade” à época que ainda mantém: viviam lá famílias
da alta sociedade. E a verdade é que uma das primeiras namoradas que
teve em Cascais pertencia a uma dessas famílias. O Tozé tinha dezoito
anos. E o facto de ser músico não foi nada bem aceite pela família dela.
É assim?
Ela tinha quinze e eu dezoito, sim. Nunca seria bem aceite. Estamos a
falar de um Portugal que felizmente já não existe. Estamos a falar de um
Portugal pré-revolução, estamos a falar de um Portugal em que meia
dúzia de famílias controlavam completamente a economia do país e,
portanto, controlavam o país, tanto a nível económico como a nível
político.
Estamos a falar dos Mello, Champalimaud…
E mais: dos Espírito Santo, dos Vinhas. Todas estas famílias estavam ali
concentradas em Cascais. Para a família dessa namorada de que falas, a
Ana Rita, eu era como um “intruso” que tinha que ser expulso. Mas ao
mesmo tempo os meus grandes amigos em Cascais nessa altura eram dessas
famílias da alta sociedade. Porquê? Porque tinha ficado com duas
cadeiras do sétimo ano penduras no Porto: Alemão e Latim. Pensei:
“Algumas vez vou precisar de alemão na minha vida?! E latim, por amor de
Deus, uma língua morta, completamente morta? Latim só se quisesse ir
para o seminário e estudar para padre. Não vou nunca precisar disto…”
[Risos] E acabei por ir terminar essas duas cadeiras para o Liceu de São
João do Estoril — que era o liceu onde estavam os filhos destas
famílias todas a estudar. O que acontece é que aquela gente era um
bocadinho mais nova do que eu e olhavam para mim como olhariam para um
“extraterreste”. Porque ser músico do Quarteto 1111 já te dava um certo
estatuto e as pessoas olhavam para ti com respeito, este gajo é músico,
vive sozinho e tal, aquilo na cabeça deles fazia-lhes muita confusão.
Curiosamnete, eu acabava por viver muito melhor do que eles. As famílias
deles tinham dinheiro; eles não. Então, eu pagava jantares a toda a
gente. Não tinham sete contos e quinhentos para se divertirem como eu
tinha. E aí começou-se a criar uma relação estranha entre nós: a malta
aproximava-se de mim, não pelo dinheiro, mas pela popularidade de ser
uma estrelinha, uma vedetinha. Mas também se aproximavam porque as
raparigas se aproximavam muito de mim. Havia uma atração pelos músicos,
sabes?… [Risos]
Presumo que uma dessas raparigas fosse a tal namorada Ana Rita.
Sim. Mas acho que não foi ela que se aproximou de mim; fui eu me
aproximei dela primeira. Ela era lindíssima — ainda hoje é uma mulher
muito bonita. E, pronto, quando olhei para a miúda disse cá p’ra mim:
“Esta é a namorada que gostaria de ter!” Lá me fui aproximando através
de amigas dela. E a “aproximação” ainda demorou uns meses.
O problema é que quando finalmente começaram a namorar… a família dela não aceitou.
A verdade é que ser música era algo mal visto. O avô da Ana Rita foi
presidente da Câmara Municipal de Cascais, era um homem ligado ao
regime. E certamente que terá pensado: Que segurança [financeira] é que
um músico dá? Que vida vai ser a da minha neta? Eles tinham sonhos
altíssimos — e à época os casamentos eram feitos dentro da alta
sociedade, as famílias casavam umas com as outras e juntavam-se duas
fortunas em vez de se dividirem. Claro que a Ana Rita se estava
completamente a marimbar e o que queria era estar comigo. E realmente
foi um namoro em que fomos muito perseguidos, sobretudo pela mãe dela,
de quem anos depois vim a ser muito amigo — a mãe dela foi diretora de
Relações Públicas da Rádio Renascença depois do 25 de Abril. Tínhamos
longas conversas quando eu ia à Renascença, aí como presidente da BMG. E
era quase embaraçoso para ela — e para mim também. A mãe dela tinha-me
feito uma guerra e uma frente muito fortes. Chegou a aparecer-me à porta
de casa à procura da Ana Rita, e às vezes à porta dos meus pais quando
eles também vieram para Cascais. O namoro acabou um ano e meio depois,
com muita pena minha, porque comecei a perceber que não queria fazer o
serviço militar e comecei a pensar em sair do país. E cheguei a falar à
Ana Rita disso. E ela até disse que se me fosse embora que vinha comigo.
Mas se ela viesse comigo no dia seguinte o avô dela punha a Interpol
atrás de nós e acabava preso. [Risos] E a coisa acabou assim, foi
doloroso mas tinha a consciência que não havia possibilidade nenhuma de
continuar. Era completamente contra a Guerra Colonial, nós no Quarteto
1111 tínhamos canções proibidas pela censura, umas atrás das outras,
algumas sobre o problema do colonialismo.
Começou aí a ter uma sensibilidade política maior?
Sim, sim. No Porto não tinha absolutamente nada…
Mais ou menos. O Tozé tinha um primo do PCP que sempre que era libertado ou se evadia da prisão ia dormir a casa dos seus pais.
É verdade. Às vezes ele fugia e o meu pai abria-lhe a porta, ele entrava
tarde e a más horas e saía muito cedo de manhã, dormia, tomava um
banho, comia qualquer coisa, e saía. E aí começava a perceber o que se
passava. Mas não vou dizer que tinha opções — porque não tinha. Queria
ser músico com quinze anos e tanto me fazia se o país era mais de
esquerda ou mais de direita. Com quinze anos pensava assim.
No Quarteto 1111 tudo mudou.
Aí percebi tudo: tinha que lutar contra o regime, o país era uma
mentira. Ainda por cima viajava muito, e quando ia a Londres, por
exemplo, ou a Paris, via aquilo e pensava: “Onde é que eu vivo? Isto é
um atraso de vida…” O analfabetismo, a pobreza. A gente tocava pelo país
todo, pelas aldeias de Trás-os-Montes, e sentia-se isso.
Esses concertos em aldeias, à época, eram certamente difíceis, não? Precisamente pelo que acabou de dizer.
Toquei em cima de carros de bois! [Risos] E tratores carregados com
fardos de palha. Quantas e quantas vezes a eletricidade ia ao ar a meio
do espetáculo. Mas não ia só no palco; ia na aldeia inteira. Ai começas a
perceber que o país era retrógrado e anacrónico. Estávamos vinte ou
trinta anos atrasados em relação ao resto da Europa. Aí comecei a ter
uma consciência perfeitamente clara do que me rodeava. E de que havia
muita gente muito rica neste país, gente que controlava o que queria,
estavam entregue a essa gente os bancos, as companhias de seguros, os
cimentos, os petróleos, e havia gente muito pobre que não tinha
absolutamente nada.
Na Guerra Colinial, sendo músico como
era, podiam acontecer-lhe duas coisas: ou ia dar concertos para as
tropas — como outros músicos o fizeram na altura, no “Alerta Estar” –,
ou ia combater.
Não podia ir dar concertos, desde logo porque tínhamos discos proibidos.
Então calhou-lhe em sorte — ou azar — a especialidade de armamento pesado…
Armas pesadas, sim. Que é uma especialidade “linda”. [Risos] Mas onde eu
nem era particulamente mau: fui terceiro classificado depois de voltar
de Inglaterra, após o 25 de Abril, e de ter feito o serviço militar nas
Caldas da Rainha. O que me preocupava não era fazer ou deixar de fazer o
serviço militar; o que me preocupava era a Guerra Colonial. Fi-lo na
boa quando voltei. Apanhei o 11 de Março e o 25 de Novembro, essas datas
históricas, enquanto estava a cumprir o serviço militar. Andavam as
tropas todas na rua, no meio desse confusão, e eu também andava. Ainda
por cima fui parar ao COPCON do Otelo Saraiva de Carvalho. E a seguir ao
25 de Novembro fui saneado como muitos outros. Sem ter nada a ver com
nada. São tempos divertidos de recordar.
Bom, divertidos não seriam… Até porque não se sabia para onde cairia o poder.
Pois, entre aspas. Podíamos cair numa ditadura militar, podíamos cair
numa ditadura de esquerda — tudo o que fossem ditaduras eu seria contra,
não quero saber se é de direita ou de esquerda. Eu queria era
liberdade, foi pela liberdade de expressão e de pensamento que me bati,
pela igualdade e pela democracia em si.
Há aqui uma coisa
que não queria saltar, Tozé. Antes de ir para Londres para fugir à
Guerra Colonial, antes de voltar e viver tudo isto, a verdade é que
ainda em Cascais, quando termina o namoro com a Ana Rita, era solteiro,
famoso, tinha dinheiro a rodos, tinha um apartamento vago… e tinha
também um acordo com os porteiros das discotecas da zona. É assim?
Tinha um acordo com vários. [Risos] Todas as noites, das nove à
meia-noite, o Quarteto 1111 fechava-se na garagem em Paço de Arcos e
ensaiava. Éramos profissionais a sério. Mas eu era o único solteiro do
grupo naquela época, os restantes eram casados. Quando saía dos ensaios,
eles, os porteiros, ligavam-me para casa quando entravam umas suecas,
umas americanas ou umas inglesas nas discotecas. Sobretudo quando elas
entravam sozinhas. Do meu apartamento eram dois ou três minutos a pé até
às discotecas. E metia conversa com as turistas, pronto.
Mas
muitas vezes quando dizia às tais turistas que era músico “no melhor
grupo deste país”, nem sempre elas acreditavam. Como é que “contornava”
isso?
Ninguém acreditava, não. Então, convidava-as para os concertos e pronto —
aí ganhava-se a “batalha”. [Risos] A gente começava sempre a conversa
com um boa noite, posso-me sentar? — conversa de quem tem dezoito anos
como eu tinha. Quando elas me perguntavam o que é que eu fazia,
respondia que era músico e que tocava no melhor grupo deste país —
também não fazia a coisa por menos. [Risos] Elas pensavam que era tanga
para as engatar. Antes mesmo de as levar a um concerto, porque os
concertos eram quase sempre aos fins-de-semana, trazia-lhes uns discos e
dizia: “Vês? Estou aqui na capa, ouve lá isso…” Isso à partida já era
uma coisa interessante para elas. Falava-se muito de música nas
conversas com elas e, muitas vezes, acabávamos no meu apartamento.
Mas muitas vezes o seu apartamento também era usado pelos seus amigos.
Opá, isso é a fase logo a seguir. Numa primeira fase ainda tive algum
cuidado em resguardar-me, não queria grandes confusões lá no meu
apartamento. Mas quando os meus pais também vêm viver para Cascais,
passava muito tempo em casa deles — as empregadas passavam-me a roupinha
a ferro, não tinha que comer fora todos os dias; era outra comodidade —
e só quando vinha de espetáculos muito tarde é que ficava no meu
apartamento. Houve uma determinada altura em que comecei a emprestar a
chave a quem ma pedia. E chegámos a um ponto em que já nem precisava de
emprestar a chave; deixei simplesmente de trancar a porta. [Risos] O
problema é que às vezes, estava eu a chegar dos concertos exausto,
entrava e tinha a casa cheia. Então, tinha que correr com eles. Mas isto
para te dizer que se vivia de uma forma muito livre naqueles verões de
1971 e 1972.
É também nessa altura que conhece a sua mulher, a Tessa. E
tudo começa — ainda que indiretamente — na garagem de Paço de Arcos onde
onde ensaiava.
[Risos] Certa noite pareceu-nos lá um senhor a pedir para gravarmos duas
canções dele. Ele queria oferecer as canções à namorada da altura. Ora,
esse senhor era amigo do meu futuro sogro, o pai da Tessa, a minha
mulher, e ela quando vinha passar férias a Portugal ficava em casa desse
senhor, um sul-africano que tinha uma namorada brasileira. Ele era
músico amador, tocava piano, escreveu duas canções e pediu-nos, Quarteto
1111, que as gravássemos. Epá, desde que ele nos pagasse e não editasse
nunca, nós gravaríamos. E gravámos.
Com isto, ele começou a ganhar confiança em si…
Ganhou, ganhou, e criou-se uma certa amizade e tudo. Um dia disse-nos em
conversa que tinha as filhas — a Tessa e a Jane — de uns amigos dele em
casa, a passar férias em Portugal, mas não gostava que elas saíssem com
gente que ele não conhecia e pediu-nos — a mim e ao António [Moniz
Pereira], que éramos os solteiros do Quarteto 1111 — para sair com elas.
Queria que as levássemos a uma discoteca e tal. E foi assim que conheci
a minha mulher, sem que durante meses se passasse absolutamente nada,
ficámos só à conversa, bebíamos um copo, dançávamos, mas por elas
tínhamos um respeito — por causa dele — que não tínhamos pelas outras
turistas que cá vinham. Aos poucos fomo-nos aproximando e, quando demos
por nós, namorávamos.
O começo do namoro coincide com a
sua ida para a Guerra Golonial. Era tempo de fugir para Londres. O seu
pai teve que pagar dez contos a um guarda da fronteira para que o Tozé
chegasse a Espanha, não foi?
Era um tipo da PIDE. A Tessa já estava em Londres nessa altura. Foi à
frente. Então passei a fronteira dentro do carro desse guarda, a ouvir
um relato do Benfica, num domingo à tarde, o carro dele nem parou na
fronteira, ele simplesmente fez sinal aos outros guardas, disse-lhes que
ia ao lado de lá fazer umas compras e passou. Mas enquanto passou e não
passou, só pensava: “Se este gajo me denuncia agora vou parar ao
Tarrafal!” [Risos] Ele deixou-me em Tui, na Galiza, recebeu os dez
contos, e depois segui de carro com os meus pais até Madrid. Foi um dia
de viagem para chegar a Madrid. A minha sorte para voar de Madrid para
Londres foi esta: ter o passaporte todo carimbado por ter dado a volta
ao mundo a tocar com o Quarteto 1111. Essa foi a minha sorte, porque em
Madrid sempre que apanhavam um português da minha idade, recambiavam a
malta para trás. Mas como já tinha estado no Japão, na Tailândia, em
Macau, na China, na Grécia, na Suíça, em Inglaterra não sei quantas
vezes, em França não sei quantas vezes, eles olharam para o passaporte e
deixaram-me ir. Cheguei a Londres, casei, esperei que o 25 de Abril
acontecesse, e foi assim.
Mas esses primeiros tempos em
Londres até se dar o 25 de Abril e regressar foram tempos duros, em que
trabalhava, estudava, às vezes também tocava aos fins-de-semana. Era de
sol a sol.
Tinha que ser, pá, tinha que ganhar a vida. E deixei de ser a pequena
estrelinha que era em Portugal para ser um tipo como outro qualquer.
Arranjei um emprego como tradutor, numa companhia de seguros, em que
trabalhava das nove às cinco. Levantava-me às seis e meia da manhã —
porque estava muito longe de Londres, vivia em Surrey, no sul, e a
viagem de comboio demorava à volta de cinquenta minutos. Às cinco saía a
correr para o Birbeck College, onde estava das seis às dez a estudar
Psicologia, e depois apanhava o comboio de volta a casa, que só chegava
às onze e meia da noite, e deitava-me à meia-noite.
Ao fim-de-semana tocava.
À noite pegava na viola e tocava um bocadinho com a Daphne, que era uma
amiga que vivia lá — e que em Portugal tinha tocado no Música Novarum. E
pronto, íamos cantar nos pubs e nos sítios onde havia música ao vivo.
Quando é que recebe a notícia do 25 de Abril?
Por telefone, às seis da manhã. Fui acordado pelos meus amigos de cá.
E nesse dia ainda vai trabalhar?
Fui, fui. Mas fui trabalhar com o coração aos saltos.
Até porque àquela hora não se sabia bem que revolução tinha sido e no que é que resultaria…
Não se sabia bem, só se sabia que era um golpe de Estado. E fiquei numa
expectativa grande. A minha preocupação foi ligar ao fim do dia para
Portugal e lá me contaram que o [Marcello] Caetano tinha caído.
Não voltou logo.
Não. A minha mulher estava grávida nessa altura e não me podia meter a
caminho de Portugal logo. Mas como imaginas a minha vontade era embarcar
logo. Apeteceu-me apanhar um avião no mesmo dia. Mas era uma estupidez
viajar com a Tessa grávida. Esperei que nascesse a Ana, a minha primeira
filha, esperámos dois meses, viemos cá passar o Natal e voltámos
definitivamente em janeiro. Depois, fui cumprir o serviço militar como
te disse.
Estava no serviço militar mas continuava a tocar com o Quarteto 1111 aos fins-de-semana. Como é que conseguia?
Faço o ano todo de 1975 no serviço militar. Mas aos fins-de-semana
tocava porque comprava, negociava. Quando estava como oficial de dia aos
fins-de-semana trocava isso com outros e pagava-lhes a troca. Mas nessa
altura também já existiam os Green Windows — e, esses sim, no verão
tocavam durante a semana e muitas vezes faltava ao concerto; mas como
éramos seis em cima do palco a cantar não fazia diferença se estava lá
mais um ou menos um.
Essa fase do pós-25 de Abril foi de muitíssimo trabalho para o Tozé.
Foi, foi. É quando começamos a escrever canções que vendem muito e
rendem muito dinheiro. E nós começamos a encarar cada vez mais, e
definitivamente, a música como a nossa vida. Eu e o José Cid, sobretudo
nós. No Quarteto 1111, o Michel Silveira voltou para a TAP e o António
Moniz Pereira passou a produzir programas de televisão e grava as
primeiras telenovelas em Portugal. Mas eu e o Cid continuamos na música.
Ele ainda continua hoje e eu comecei, mais tarde, a desempenhar outras
funções e fui presidente de companhias discográficas, fui produtor
musical em estúdios.
Há uma fase em que continua a estar
inserido em grupos e há outra, posterior, em que se volta mais para a
composição para outros — algo que, aliás, continua a fazer. O que é que
gostava mais?
Compor para outros aconteceu logo em 1976. São processos completamente
distintos. Mas compor para outros é ainda hoje o que mais faço e gosto.
Em 1976, quando escrevi o “Pensando em Ti” para os Gemini, o sucesso foi
tal que recebemos o primeiro disco de outro entregue cá pela Associação
Fonográfica, foi o primeiro disco a chegar aos cinquenta mil exemplares
vendidos. Hoje em dia, com a era digital, dificilmente alguém chega a
estes números. Mas com a escrita do “Pensando em Ti” houve muita gente
que começa a olhar para mim de outra forma. Há uma data de cantores da
altura que me começam a pedir canções. E logo em seguida escrevo o
“Recordar é Viver” do Vítor Espadinha. E com o “Recordar é Viver” voltei
a vender mais de meio milhão de cópias. E logo a seguir ao Espadinha
começo a escrever, a convite deles — nunca bati à porta de ninguém nem
telefonei a ninguém –, para pessoas tão distintas como o Tony de Matos
ou o Francisco José.
Mas alguma vez lhe apeteceu bater à
porta de alguém ou telefonar a alguém? O que pergunto é se houve alguém
para quem gostasse de ter escrito um canção e não escreveu.
Não… [Pausa] Quer dizer, houve uma pessoa com quem não tive contactos
pessoais e para quem queria ter escrito uma canção, que foi a Amália.
Mas quando entrei nesta fase, dos Gemini, do “Recordar é Viver” e de
outras coisas que escrevi para outros — Tony de Matos, Francisco José,
Simone de Oliveira, António Calvário… –, é uma fase em que a Amália
grava muito menos e tinha uma idade mais avançada, embora ainda
cantasse. Tive vontade, digo-te sinceramente, de escrever uma canção
para ela. Mas também na altura não sabia o que era escrever para o fado e
nem me atrevi. Não a procurei, deixei-me estar sossegado. É curioso que
quem me desafia para o fado é o Carlos do Carmo, em 1983, para o disco
“Um Homem no País”. Convida-me para escrever uma canção. Não sabia se
era capaz. Mas saiu-me uma coisa lindíssima.
O poema do “Fado da Leziria”, que é o fado que escreve, é do José Carlos Ary dos Santos. Como foi trabalhar com o Ary?
O Carlos só me disse: “Faz o que quiseres, escreve o que quiseres, que
depois o Zé Carlos encaixa a letra nisso…” E assim foi. A letra do José
Carlos Ary dos Santos é lindíssima. Mas eu escrevi a música primeiro.
Fomos a casa do Ary dos Santos, ele bebeu meia garrafa de gin, aqueceu,
tomou nota das sílabas, tónica na segunda, tónica na quinta, sete
sílabas, foi para o quarto, voltou passada meia-hora e disse: “Está
feito!” Um gajo olhava e não queria acreditar que era verdade — o Ary
dos Santos era um génio. Foi a pessoa, o letrista, com mais talento que
conheci na vida.
Ainda não falámos do Festival da Canção.
Diz lá…
O Tozé participou algumas vezes, como compositor
ou como intérprete, e venceria o festival, em 1978, com os Gemini. Qual
era a importância do festival na altura?
Era um loucura, pá. Estás a falar de uma altura em que a RTP era o único
canal. As pessoas quando queriam ver televisão, viam a RTP. E o
Festival da Canção era o grande programa da RTP. À noite, no dia do
festival, não vias ninguém nas ruas, tudo parava, faziam-se apostas
sobre quem venceria aquilo, as famílias juntavam-se em casa
religiosamente à hora das canções e, depois, das votações — que
demoravam uma eterniadade a saber-se. Nós ganhámos, sim, e fomos a Paris
cantar na Eurovisão o “Da Li Dou”.
No começo disse-me que em Paris lhe tremeram as pernas como nunca antes.
Tremeram, tremeram. Epá, nem era por causa da sala, a sala era grande
mas era uma sala como as outras, tu tremias porque sabias que estavas a
ser transmitido para duzentos ou trezentos milhões de pessoas. E isso
foi um susto, mas um susto. A sério! Digo-te sinceramente: entrei em
palco, senti as pernas a tremer, pensei que passaria — porque já tinha
uma década disto –, mas não passou. Lá cantámos a canção direitinha e
tal. Mas só senti alívio quando a canção terminou.
Esse ano, o de 1978, foi muitíssimo politizado na Eurovisão.
Completamente! Porque Israel concorre pela primeira vez e ganha. E com
uma canção que era igual ao “Da Li Dou”. Costumo dizer que se eles
tivessem cantado o “Da Li Dou” e nós o “A Ba Ni Bi”, eles venciam na
mesma. Depois daquele festival só queria sopas e descanso. Foi realmente
a vez em que senti mais o peso de subir a um palco.
É por causa das “sopas e descanso” que aceita afastar-se dos
palcos — pelo menos como intérprete — e assumir cargos de administração
nas editoras?
Foi uma opção. Sou muito pragmático, tudo tem um tempo. E pensei: “O
sucesso pode acabar um dia. É preciso ganhar dinheiro para sustentar a
minha família”. Mas atenção, pensei isto mas sabia que estaria na música
até ao fim porque tinha descoberto que sabia escrever canções. Tinha
consciência que teria muito mais sucesso como escritor de canções do que
propriamente como cantor. Até porque não tenho grande voz, nunca tive;
“defendo-me” é bem. Mas também não é preciso ter-se uma grande voz para
cantar, o que é preciso é transmitir emoção no que fazes. Num estúdio
tens quinhentos botões numa mesa — com eco, com reverberação, tudo o que
tu quiseres está lá — mas nenhum diz “emoção”. Ou cantas com emoção ou
não cantas. Até podes ter uma voz brutal, de tenor, e não chega nada a
quem ouve. É como diz a velha expressão: cantas bem mas não me alegras. O
Chico Buarque, o Joan Manuel Serrat, o Jacques Brel, o Bob Dylan,
nenhum deles tem uma grande voz mas são únicos e transmitem emoção. A
singularidade é muito mais importante do que uma grande voz. Para mim,
enquando estive à frente de editoras, quando assinava com artistas,
quando os selecionava, o que mais queria era encontrar um artista
singular. Não queria um artista que tivesse uma voz lindíssima mas que
copiasse outro ou que não tivesse emoção e expressão nenhuma a cantar.
E saudades do palco, tinha?
Nunca me agradou muito estar sozinho em cima do palco, confesso.
Enquanto estive em grupos, desde o Pop Five ao Quarteto 1111, Green
Windows, Gemini, divertia-me à brava porque tinha malta em cima do palco
comigo. Quando estava sozinho, com músicos lá atrás, era frio e não me
agradava nada. Em 1987 gravo o último álbum, “As Noites Íntimas de um
Hotel com Estrelas”, e a partir assumi definitivamente que a minha
carreira tinha acabado. Há trinta anos que não canto profissionalmente, a
solo. Às vezes os amigos convidam-me e faço-o na boa, tenho o maior dos
prazeres.
Ouvi dizer que os seus netos têm “queda” para a música. Se
eles quiserem ser músicos, não lhes dirá certamente o que o seu pai lhe
disse?
Não, não. Até porque o pai deles, o Pedro Vaz, também é músico e
produtor musical. Os tempos hoje são tão ou mais difíceis do que aqueles
em que resolvi ser músico, mas hoje em dia os miúdos, curiosamente, têm
outra visão do mundo. Eles gostam muito de música: o João, o mais
velho, toca viola; o Diogo canta; o Francisco tem seis anos e toca
bateria. Mas a visão já é a de que querem ser músicos, sim, mas se
calhar só como hobbie. O avô não os empurra para serem músicos nem os
trava. Mas digo-lhes que os estudos são muito importante — e a verdade é
que eles são todos alunos de cinco.
Em tempos escreveu o seguinte: “Se continuarei na música até morrer? Não, continuarei muito para além disso”. Ainda pensa assim?
Penso, penso. Vou com certeza continuar a fazer música, a escrever
canções até morrer, porque é o que mais gosto de fazer. Mas também sei
que vou continuar muito além disso porque as canções vão continuar —
independentemente de quem as ouve saber que fui eu que escrevi ou não.
Tenho a noção de que fiz algumas coisas bem feitas e outras menos.
Também errei em muitas coisas e fiz canções que se hoje pudesse apagar,
apagaria. O que sei é que vão continuar a cantar as minhas canções mesmo
quando eu já cá não estiver.
Só não gosta muito é que as cantem em karaokes…
[Risos] Como é que sabes isso?… Não é que não goste. Por um lado até
fico contente, porque é uma prova de popularidade da canção. A música
que escrevi para a Adelaide Ferreira, o “Papel Principal”, está em todos
os karaokes. É uma “peste”… [Risos] As canções das Doce também. A do
[Vítor] Espadinha também. São muito cantadas nos karaokes, é o que é. O
que me custa horrores é ouvir pessoas que não têm absolutamente jeito
nenhum a cantar essas canções. Quando as ouço assassinarem as canções —
gente que é desafinada, semitonada, às vazes até é completamente atonada
–, é uma coisa horrorosa e dá-me vontade de rir. Mas também me dói…
[Pausa] A verdade é que não gosto é de ir a bares de karaoke porque,
inevitavelmente, as pessoas veem que estou lá e ainda me pedem para
cantar. Só gosto de cantar para os amigos e com amigos.