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Mariza: “Falta conquistar o mundo. E ganhar um Grammy”

Entrevistas - Maio 21, 2018
Não há cantora portuguesa tão internacional. Anda a correr de país em país, mas sentou-se com o Observador para falar do novo disco. "Os sonhos são o que me move". Mas também quer um Grammy.

É já no fim da entrevista que Mariza, cantora que prefere o epíteto de intérprete ao de fadista — porque o segundo “é um elogio” e , ela diz que não se elogia a si mesma –, olha para o gravador do jornalista e puxa pela memória para contar uma história. Essa história é a da gravação de “Ó Gente da Minha Terra”, um fado que Tiago Machado lhe compôs para acompanhar um poema de Amália Rodrigues, que se tornou no seu primeiro single e que ajudou a catapultá-la (e, de arrasto, todo o fado) para o sucesso pop.

No dia em que gravaram esse tema (presença obrigatória em qualquer concerto), Mariza e Tiago Machado tinham passado longas horas em estúdio, mas o resultado não convencia nenhum. Até que, perto da hora de jantar, Mariza que quase desistiu, deixou-se convencer pela última versão. Tiago Machado acedeu, concordou que era aquela que ficaria registada no disco. Só que o engenheiro que trabalhava no estúdio acabou por apagar por engano tudo o que os dois tinham gravado. Com algum desespero na voz, a cantora desafiou o músico: “Ou é agora ou não é”, disse-lhe. Foi mesmo, e foi à primeira.

Passaram-se 17 anos e Mariza levou o seu “fado mestiço” ao mundo. Gravou discos e vendeu mais de um milhão. Tocou nas salas mais prestigiadas, do Carnegie Hall em Nova Iorque ao The Royal Albert Hall em Londres, passando por tantas outras. Esteve nomeada para prémios Grammy, que nunca ganhou mas que quer ganhar. Há dias, atuou na final do Festival Eurovisão da Canção, organizado em Lisboa, uma coisa que “nunca” lhe “passou pela cabeça”. Casou-se, foi mãe (com uma gravidez complicada) e divorciou-se. O que é que ainda lhe falta fazer? “Falta sempre conquistar o mundo.”

Depois de Mundo (2015), Mariza prepara o lançamento de um novo disco, o sétimo de originais, que chegará às lojas físicas e digitais no dia 25 de maio. Chama-se simplesmente Mariza. É nele que, pela primeira vez em toda a carreira, Mariza canta um fado escrito por si, “Oração”. Tem também outros colaboradores de nomeada, alguns mais habituais e outros mais inesperados, de Maria da Fé (com quem canta o tradicional “Fado Errado”) a Matias Damásio, passando por Hélder Moutinho, Jorge Fernando, Ângelo Freire, Mário Pacheco, Carolina Deslandes e Diogo Clemente. E há ainda uma faixa bónus — uma versão alternativa do single “Trigueirinha” com Jorge Palma, Mafalda Veiga, Marisa Liz, Ricardo Ribeiro, Carolina Deslandes e Tim. Mariza apresenta o disco a 29 e 30 de maio, no Coliseu do Porto, e a 1 e 2 de junho, no Coliseu de Lisboa.

Hoje uma celebridade da música portuguesa, e seguramente a que maior dimensão internacional atingiu nos últimos anos, Mariza diz que não gosta muito de falar da vida privada porque é “muito ciosa da intimidade”, porque quer “proteger” o filho Martim, de seis anos, e aqueles que lhe são próximos e porque o que interessa às pessoas não é a sua vida pessoal, “é aquilo” que faz “pela língua portuguesa, pela cultura portuguesa, por Portugal”. “A minha vida é igual à vida de milhões de pessoas, todos os dias acontecem exatamente as mesmas coisas que acontecem aos outros: pessoas que têm filhos prematuros, que trabalham todos os dias, que têm de dar atenção à família.”



A vida de Mariza é mesmo igual à vida das outras pessoas?
É e não é. Não lhe é possível “andar na rua normalmente, por exemplo”. Há um ano, teve uma semana de férias e passou-a em Castro Marim, no Algarve. Certo dia, farto de ficar na piscina, o filho quis ir à praia. Saídos da água, tinham uma multidão à espera para conseguir uma fotografia. “Foi quando vi que não podia ir à praia com o meu filho, não é uma coisa natural. Foram essas pequeninas coisas que mudaram. Mas tento fazer com que o dia do Martim, a vida do Martim, sejam naturais para que também tenha os pés assentes na terra. Porque senão é muito difícil… Tenho de fazer coisas normais como toda a gente! “. Acontece que nem toda a gente canta como ela.

Em outubro do ano passado noticiou-se que este era o disco no qual a Mariza se estreava como autora. Segundo as notícias da altura, o tema iria chamar-se “Só” e o disco Fado Bailado. Afinal, o tema chama-se “Oração” e o disco chama-se Mariza. Porquê as mudanças?
No início, o disco era para se chamar Amor, porque acho que na vida não fazemos nada sem amor — é uma coisa extremamente importante. E existem vários tipos de amor, várias formas de dar amor. Depois, achei que seria assim um bocado convencido da minha parte porque parece que sou eu que sei tudo e, no fundo, cada pessoa tem a sua forma de estar e de sentir. Como danço imenso em palco, pensei: porque não Fado Bailado? Mas depois nenhum deles me fazia sentido, já. Sobre o meu tema, nunca disse, por exemplo, que ele seria o single do disco. O que disse é que tinha escrito pela primeira vez e que estava incluído [no álbum] um tema com palavras minhas. Mas toda a gente ficou com a ideia de que seria single do disco. Longe de mim ter essa pretensão. Aliás, foi discutido até ao último minuto, pelo menos da minha parte, se esse tema ficaria ou não [no álbum] porque é estranho para mim. Quando estou em palco já é tudo muito intenso e pessoal. Já é muito despido porque há uma verdade que estou a cantar: a minha verdade, os meus sentimentos, as minhas emoções. E depois cantar um tema com palavras minhas… Fiquei assustada, sem saber se seria capaz de o cantar. Já experimentei cantá-lo duas vezes e devo dizer que é muito complicado [risos]. É um misto de sensações e de emoções. É uma trapalhada só.

Presumo que seja mesmo muito diferente. Nos outros temas, apropria-se das palavras de outros. Aqui não. É tudo seu.
Exatamente. É diferente porque nos outros existe esse trabalho de apropriação, de fazer das palavras dos outros um veículo das minhas emoções e daquilo que sinto, daquilo que é, neste momento, a forma como vejo a música e a vida. Mas neste por mais que eu queira fugir não consigo. Sei perfeitamente porque é que o escrevi, sei perfeitamente o que é que aquelas palavras querem dizer. E torna-se mais dorido — a ferida é mais exposta, mais aberta. É mais complicado.

O poema começa assim: “Triste e só anda meu coração”. Mais à frente canta: “Quero gritar a verdade / mas o vento me calou”. Quando é que o escreveu?
Escrevi-o numa fase da vida em que, sem querer, ia haver nela uma mudança bruta. E acho que as mudanças têm de ser sempre apreciadas, sejam elas positivas ou negativas. Têm de acontecer. Não existe uma forma de viver sem ter mudanças na vida — é impossível porque elas aparecem em qualquer esquina, em qualquer parte. Nessa altura, andava tão pesarosa e tão triste… Só eu e o meu coração é que sabíamos o que é que se estava a passar. Muitas vezes uma pessoa ri-se e faz de conta que está feliz e por dentro as mágoas são muitas. E então surgiram estas palavras. Mas já escrevo há muitos anos. Acho é que nunca tive a capacidade de achar que poderia mostrar as palavras que escrevo, que poderia ser interessante e até possível cantá-las.

Numa entrevista de 2014, perguntaram-lhe quando é que isso ia acontecer e a Mariza afastou completamente essa ideia.
Completamente. Tenho imensos poemas — acho que um dia até pode sair um livro com esses poemas todos. Mas é o que estou a dizer é que tudo muito pessoal, e marca fases muito importantes para mim. E às vezes é tão doloroso… Porque só escrevo quando estou triste. É incrível, mas é verdade. Bem, escrevo sempre, mas poemas escrevo quando estou triste e preciso de dizer alguma coisa. E é mais fácil escrever em poesia para as coisas de certa forma ficarem mais românticas porque, se fizer prosa, é muito duro — é bruto, é grotesto –, e tenho vários cadernos com montes de prosas minhas, cartas e tal. Os poemas acontecem sempre a meio da noite. Acordo — ao lado da cama tenho sempre um caderno e uma caneta — e começo a escrever, e aquilo começa a desenrolar-se.

Há alguns anos apresentava-se como “cantadeira de fados”. Hoje prefere que lhe chamem fadista ou cantora?
Estou farta de explicar isto mas, no meu bairro, quando alguém gritava “ó, fadista”, estava-nos a fazer um elogio. Não faço elogios a mim própria — não me elogio, longe de mim. Se alguém me chamar fadista, fico muito feliz, muito contente, é um elogio que me estão a fazer. Considero-me uma intérprete. Interpreto palavras e emoções, portanto, sou uma intérprete.

Depois de andar com o Mundo [disco anterior, de 2015] pelo mundo, o que é que lhe apetecia cantar agora?

Houve uma altura em que comecei a pensar em fazer um disco novo, porque já tinha passado imenso tempo [desde o anterior]. As músicas [que lancei] vão sempre fazer parte da minha vida e terão sempre uma emoção quando as canto mas têm os seus momentos e o Mundo já tinha tido o seu momento. Andava à procura de novas palavras para me expressar e comecei por ir buscar temas que tinha saudades de cantar, que ouvi a vida toda, como o “Fado Errado”, o “Trigueirinha”, o “Quebranto” do Jorge Fernando. Tinha vontade de os interpretar à minha maneira e faziam sentido para mim nesta fase da minha vida. E depois nunca vou para estúdio sem ter no mínimo entre 30 ou 40 canções para depois poder perceber em que lugar é que me sinto mais confortável. Vou eliminando: “Esta não me sinto bem, esta não sei cantar, esta não me traduz, esta não é a minha verdade, esta não sou eu”. E aí vai-se criando uma linha, um corpo de 16 ou 17 músicas em que se pode começar a trabalhar.

É curiosa a participação da Maria da Fé, que canta o tema “Fado Errado”. A Mariza cantou algum tempo no Senhor Vinho, chegou a dizer que ia lá cantar “toda de roxo, de vermelho e de amarelo” e que ela lhe dizia: “Ai rapariga, as coisas que tu fazes”. Cantar com ela é um sinal da vontade de manter uma ponte com as suas origens?
Sempre. Sempre. Não renego nunca de onde venho, o que sou, quais são as minhas origens e raízes. Por exemplo, cada vez mais acho que se sente que existe uma africanidade muito presente na minha música. Não por eu querer, mas porque ela vai aparecendo. Com a idade, sinto que esse lado africano está mais presente, mais vincado. Mas a Maria [da Fé]… Quando recomecei a cantar fado, foi a Maria que me recebeu. E o “Fado Errado” faz parte do repertório dela. Já há uns tempos que a Maria não quer cantar e, quando lá vou, atiro sempre este fado para o ar e deixo assim em suspenso para ver se ela entra e canta ou, se não entra, continuo eu. E ela canta sempre. E como já tinha ideia de gravá-lo, disse-lhe: “Acho que podíamos perfeitamente cantar este tema as duas e imortalizar este momento”, mostrando o respeito que tenho por ela como artista, como pessoa. Como uma das pessoas que, no fundo, me voltou a mostrar fado e a ensinar muito sobre ele.

Na entrevista de que falávamos há pouco tinha algum prurido em assumir responsabilidades na forma como o fado passou a ser visto depois da sua entrada em cena. E dizia: “Até porque as pessoas que lidam com o fado, que cantam fado, não querem que se diga isso, não gostam que tenha feito parte, que tenha sido a motivação desse movimento”.
Isso já foi há muito tempo!

Disse-o há quatro anos. Essa animosidade desapareceu?
Não é uma animosidade. Há uma coisa engraçada que existe e que faz parte do ser humano: quando alguém tem uma certa notoriedade e começa a ficar muito exposto, muitas vezes as pessoas preferem alguém que não o está tanto. “Gosto mais deste porque aquele já está muito exposto, já está muito visto”, “Deixa-me dar mais carinho a outra pessoa que não está tão visível”. Sei que não é por mal. Hoje olho e sim, sei que tenho responsabilidade por muito do que aconteceu ao fado nos últimos anos, também em termos internacionais. Mas acho que o mais interessante de tudo isto, desta caminhada fantástica e feliz que tenho feito, é perceber que existem muitas vozes neste momento que querem cantar fado, que querem saber mais sobre fado, que querem estudar o fado, que querem aprender a tocar guitarra portuguesa. Houve uma reviravolta e surgiu uma visão de que o fado, podendo estar agarrado à tradição, pode ao mesmo tempo dar passos um pouco mais à frente. Tal como Lisboa, que continua agarrada à sua tradição mas que quer dar os seus passos à frente.

Já iremos a Lisboa. A sua agenda é muito preenchida mas já disse que, depois de ter sido mãe, a prioridade foi direcionada para o bem-estar…

… do Martim, do Martim.

Com a popularidade que já tinha quando foi mãe, como é que foi fazer essa reformulação de carreira?
Não foi fácil porque é como se tivéssemos dois diamantes ou dois amores de que gostamos muito e temos de escolher um. E é impossível. O que aconteceu foi que cortei o número de concertos para poder dar mais atenção à família e ao meu filho. Mas voltei a cantar [depois da gravidez complicada e da maternidade] porque cantar é como respirar. Se ficar mais de duas semanas sem cantar parece que estou no pico da ansiedade, no pico dos meus nervos. Preciso de deitar as emoções cá para fora! E aí vou à Tasca do Chico ou ao Clube de Fado ou ao Senhor Vinho… A um sítio onde goste de ir e onde possa cantar. E aí canto, pronto. Mas é verdade: antes fazia quase 200 concertos por ano e agora faço quase 100. O número diminuiu imenso. Mas não posso deixar de cantar, isso é ponto assente. Se tentasse fazer isso, acho que a minha família ia sofrer imenso porque ia ficar irascível. Já não sou assim muito boa da telha [risos]! Acho que ia ser um sofrimento para toda a gente. Seria como uma pessoa que deixa de fumar. É um vício, é complicado.

A popularidade faz com que a sua vida seja muito escrutinada. É um preço que se tem de aceitar?
Sou uma pessoa muito ciosa da minha intimidade — não gosto muito de mostrar a minha vida, tento proteger ao máximo aqueles que amo para que não fiquem muito expostos. Acho que o que interessa às pessoas não é a minha vida pessoal, o que interessa é aquilo que faço pela língua portuguesa, pela cultura portuguesa, por Portugal. A minha vida é igual à vida de milhões de pessoas. Todos os dias acontecem exatamente as mesmas coisas: pessoas que têm os filhos prematuros, que trabalham todos os dias, que têm de dar atenção à família. É igual à de toda a gente. Agora existe uma maior curiosidade porque estou mais exposta. Mas tento ao máximo fazer com que eles [os familiares] se sintam protegidos e que não estejam muito expostos.



Cantou agora na final da Eurovisão. O que é que achou do festival?

O festival… Desde miúda [que o vejo]. Naquela altura o país parava. Antes havia só um canal, a RTP, que às 23h acabava. Aparecia o hino e acabou-se! O festival era a maior janela que existia para a música internacional e Portugal parava. Víamos todos os cantores, a Dora… Sei lá, tanta gente. As Doce, o José Cid, o Herman José, o Carlos Paião… Entretanto os anos passaram e vi-me a pisar o palco da Eurovisão no meu país, na minha cidade. Não imagina o orgulho.

Surgiram alguns comentários na Internet a elogiar muito a sua prestação. Houve até quem dissesse que as atuações dos convidados foram os melhores momentos musicais da noite.
A sério? Não sei, não consegui prestar atenção porque foram dias muito intensos de ensaios. Depois de cantar, fui a correr para casa. Ia apanhar um voo às 6h para ir para a Alemanha porque ia fazer lá um concerto à noite. Portanto, nem depois percebi o que é que tinha acontecido e a partir daí desliguei-me porque o momento mais importante foi ter conseguido participar uma vez na minha vida no grande festival da Eurovisão. É incrível, passaram tantos anos… Nunca me passou pela cabeça.

Atuou com a Ana Moura. De quem é que se sente mais próxima no fado e na música portuguesa?
Em termos musicais?

Em termos pessoais.
Proximidade não tenho assim muita e vou explicar porquê: porque nunca estou [cá]. A maior parte das vezes quando me convidam não posso estar. Então parece que existe — não propositadamente, longe de mim, porque adoro imensas vozes — um distanciamento. Porque as agendas não colam, não conjugam. São inconciliáveis. Mas adoro o Ricardo Ribeiro, gosto imenso de ouvir a Ana Moura, gosto do Camané, do Carlos do Carmo, da Carminho, que é uma fadista fabulosa. Há imensas vozes agora que oiço e digo: “Caramba, que bom! Estamos bem representados”. [Pessoas] que cantam bem, que escolhem bem, que são bons artistas. E isso é tudo maravilhoso.

Vamos voltar à africanidade e a Lisboa? Na final da Eurovisão, houve também uma atuação do Branko com a Mayra Andrade, o Dino D’Santiago, a Sara Tavares e o Plutonio. Houve uma altura em que se cantou uma canção chamada “Nova Lisboa”. Esta Lisboa de hoje, de grande mistura, parece-lhe mais interessante?
Não sei porque na realidade não vivi outra Lisboa antes desta. Quando começo a tomar consciência de ser cantora, já estou muito ligada a músicos africanos. Houve uma altura em que deixei de cantar fado porque me acusam de ser diferente. Acho que era no bom sentido mas, como era muito adolescente, para mim foi complicado. Achei que podia estar a fazer tudo errado. E aí virei-me muito para o meu lado africano. Foi aí que conheci o Tito Paris, o Danny Silva, o Bana, e também músicos angolanos fabulosos que me ensinaram imenso. Estive sempre muito próxima desse lado que chamamos lusófono e que, no fundo, ajudou-me muito a descobrir um outro lado das minha raízes, que faziam parte de mim e que estavam um bocadinho fora do caminho porque, para mim, era fado. Fado, fado. Apesar de em minha casa se ouvir outros géneros musicais por causa da minha mãe. Mais tarde voltei ao fado, mas continuei sempre amiga desses artistas africanos que admiro e, de vez em quando, trouxe-os para perto de mim e da minha música. É o caso do Tito [Paris]. Cantei várias vezes com a Cesária [Évora], com o Bana, mesmo sem ser em disco nem em espetáculo, numa casa que ele tinha… Depois, quando foi a minha nomeação para o Grammy, em vez de ir a Las Vegas, decidi fazer um concerto alusivo à lusofonia onde tive o Ivan Lins. Veio o… Como é que ele chama? O que adoro! O Djavan é completamente louco por ele. Bem, já me lembro e já digo. Mas essa lusofonia está sempre muito presente porque também sou africana, também venho desse lado do triângulo.

A forma como o fado…
Filipe Mokenga! É o Filipe Mokenga.

Certo. A forma como o fado se abriu a outros géneros musicais deve-se sobretudo a fatores sociais? Olhando para quem cantava fado há 40, 50 anos e para quem canta fado agora, nota uma maior diversidade de culturas, de origens?
O fado é uma música urbana, desde sempre, e por isso movimenta-se e constrói-se conforme a cidade e a sociedade. Já não estamos no século XIX, é natural que o fado que é cantado nos dias de hoje reflita esta Lisboa de que estávamos a falar, que tem a lusofonia muito gravada na pele. É natural que fale desta Lisboa que, agarrada à sua tradição, não querendo perder o pé nas suas raízes e no que tem de reconhecível, quer dar uns passos em frente. E é natural que apareçam vozes de outros quadrantes, tanto sociais como musicais, estilísticos, porque há pessoas que vêm de outros quadrantes musicais que se interessam por fado e tentam fazer uma aproximação diferente à guitarra portuguesa, à forma de cantar. Mas também socialmente há hoje pessoas que não cresceram nos bairros típicos, que é de onde vem o fado, mas que, por gostarem dele, tentam fazer essa aproximação. É muito interessante.

Não lhe pergunto o que é que mudou mais desde o Fado em Mim [o primeiro disco, de 2001] porque…
Foi há quase 20 anos [risos]!

Exato. Mas o que é que tentou mais afincadamente preservar desse espírito inicial? E o que é que foi mais difícil de preservar?

O que tentei preservar mais foi a minha essência como cantora e pessoa. Obviamente que depois de tantos anos, de tantas viagens e tantos palcos, a essência está lá, a cantora está lá, mas houve um crescimento. Apesar dessa procura — que é incansável e que acho que nunca deve parar porque é o que me faz crescer como artista –, é o que me faz ver o mundo com outros olhos que acaba por influenciar a música que canto e que faço. Tentei sempre preservar a minha essência e, principalmente, ser eu própria nos discos que faço. Não estar a mando de ninguém, a pensar “esta música é que vai ser, isto é muito comercial, vamos lá cantar isto”. Quando se toma esse caminho de procura do que será mais comercial, de se fazer um hit, perde-se completamente aquilo que sempre fez parte do caminho: ser autêntica, ser transparente.

E é-lhe possível preservar uma vida minimamente normal fora dos palcos em Portugal?
É possível com… Com alguns pruridos [risos]. Não se anda na rua normalmente, por exemplo. Tento fazer uma vida muito normal muito por causa do meu filho, para que ele amanhã não se ressinta, não diga: “Nunca consegui ir com a minha mamã ali, nunca consegui fazer isto com a minha mamã”. No ano passado houve uma coisa incrível: consegui ter uma semana de férias. Agarrei no meu filho e decidi ir para o Algarve, para a praia. Fomos para uma zona que nem é assim tãaaao turística, que é Castro Marim. E há um dia em que o meu filho, que já estava farto de estar na piscina e diz: “Mamã, quero ir à praia, os meus amigos estão na praia”. Telefonei para as mães [dos amigos], que conheço, e lá fomos nós para a praia.

O que aconteceu?
Cheguei lá, com os sacos, com os baldes da praia, com as águas, com os bronzeadores — como qualquer mãe, não é? E de repente o meu filho diz: “Mamã, quero ir à água”. Então vamos à água! Pus o meu filho assim no colo e fomos entrando, e entrando… Ele já sabe nadar, mas é aquela coisa de mãe, de proteção. Quando saímos da água, vi assim um muro de gente e pensei: “Alguém se afogou. Meu Deus, aconteceu um acidente”. Virei-me para a água para ver o que é que tinha acontecido e apercebi-me de que não tinha havido nenhum acidente. Estava tudo era à minha espera com os telemóveis na mão para tirar uma fotografia. Foi quando vi que não podia ir à praia com o meu filho, não é uma coisa natural. Foram essas pequeninas coisas que mudaram. Mas tento fazer com que o dia do Martim, a vida do Martim, sejam naturais para que também tenha os pés assentes na terra. Porque senão é muito difícil… Tenho de fazer coisas normais como toda a gente! Ir a um restaurante, ir a um supermercado. Entrar no cabeleireiro, sei lá. Sempre estive habituada a fazer isto. Obviamente que não é a coisa mais fácil do mundo, mas tenta-se.

Como é que ele lida com o seu trabalho, com a idade que tem hoje? Vai fazer sete anos em junho.
Agora está mais complicado porque ele já tem noção de que a mamã tem um trabalho diferente e que tem mais visibilidade do que as outras pessoas. E agora diz-me… Por exemplo, um domingo, vamos almoçar fora. E as pessoas não têm aquela coisa de pensar: “Ah, não vou lá pedir uma fotografia porque está com o filho, mas quero tanto a fotografia…”. No fundo é um ato de coragem — quebrar essa linha e chegar lá e pedir é um ato de coragem. Entendo que o seja. Havia uma altura em que eu dizia: “Não, por favor, agora não dá”. E as pessoas levavam tão a mal, ficavam tão… diziam: “Ela é uma arrogante, não tira uma fotografia”. Acho que as pessoas, às vezes, não percebem muito bem os momentos. Mas tudo bem, para que não dissessem essas barbaridades — porque não percebem –, passei a dizer para tirarmos logo e tal. E pego no telemóvel, tiramos uma selfie e está feito. Só que o meu filho não acha piada nenhuma a isso. Então agora, nos últimos tempos, diz às pessoas: “Mas ela agora não está a trabalhar, ela agora não tira fotografias com ninguém. Não está no palco”. E fico a olhar… Quer dizer, no fundo, no fundo, ele tem razão. Mas esta profissão é parecida à de um médico. Temos uma linha [de emergência] e, se acontece alguma coisa, estamos lá. Hoje em dia com os telemóveis a privacidade acabou.

Depois do que já conquistou, ainda tem objetivos traçados? Ou já só quer desfrutar da carreira?
Não, nunca! Falta conquistar o mundo, falta sempre conquistar o mundo. No dia em que deixar de ter sonhos, é preferível não cantar. Os sonhos são o que me move. Já fui nomeada para vários, mas nunca ganhei nenhum. Sonho ganhar um Grammy. No dia em que ganhar o Grammy, no dia em que atingir esse patamar, vou pensar no sonho a seguir, que é cantar uma música para um filme que ganhe um Óscar. E o patamar vai passar a ser esse. As pessoas são assim, no dia em que perdem os sonhos perdem as motivações e a vida deixa de ter piada.


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