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História do Fado de Coimbra

É voz corrente considerar o chamado fado de Coimbra oriundo do Fado de Lisboa. 

Tal origem seria, talvez, inquestionável, se tudo o que se fez (e se tem feito) em Coimbra - ao nível da sua música tradicional, se limitasse única e exclusivamente ao Fado, se é que este, efectivamente, existe em Coimbra.

Canção de Coimbra: Um Canto de Rua

Todavia, a música tradicional de Coimbra não se esgota naquilo que se designa de "Fado de Coimbra". As danças e os Cantares populares, assim como todo um conjunto de representações etno-musicais em tomo das fogueiras de S. João, bem como, as canções de trabalho, os cânticos de embalar, as cantigas de amar e as serenatas, constituem um repertório ímpar na vivência espaço-temporal da música tradicional da cidade, que nada tem a ver com o universo fadístico. Dizer-se, pois, que a Canção de raiz Coimbrã é o "Fado de Coimbra", está muito longe de ser verdade.

Coimbra sempre foi um caldeirão cultural, fruto da convivência entre duas culturas: a popular e a erudita. A existência, entre os séculos XII e XIV, de uma rica cultura erudita ficou a dever-se ao facto de, na cidade, viverem várias minorias étnicas e sociais, assim como grupos sócio-profissionais, que desenvolviam as suas respectivas culturas específicas, onde o lúdico-musical estava presente para ocupação dos seus tempos livres. 

Por outro lado, devido à sua situação geográfica de cruzamento e de passagem de viajantes, jograis, peregrinos e estudantes, a cidade acabava por ser um local privilegiado para uma vivência quotidiana com base nas feiras, romarias e outros eventos similares, onde se faziam notar as várias influências culturais. Igualmente havia um fluxo humano do campo para a cidade, não só para a venda de produtos, mas também, na procura de melhores condições de trabalho. 

Com este povo vinham os seus cantares. Paralelamente, a pequena nobreza rural instala-se na cidade, trazendo consigo as expressões musicais que a caracterizavam. A co-habitação de dois imaginários (o campesino e o citadino) tomou-se inevitável. E o mercado urbano, as feiras e as "romarias acabaram por ser os locais privilegiados para o intercâmbio etno-musical entre diferentes gentes e factor de difusão de práticas culturais que fortaleceram e desenvolveram o relacionamento entre duas culturas musicais: a da cidade e a rural.

É em plena praça pública que a cultura popular e erudita marcam ponto de encontro, onde os cantares de origem aristocrática se misturam com músicas e danças populares. Aliás, desde sempre que uma poesia culta e uma poesia culta e uma outra popular se influenciaram mutuamente. Basta ver que há características populares nos cantares trovadorescos, bem como, canções e trovas eruditas que foram modificadas e absorvidas pelo filão popular, juntando-se às cantigas de amor e trabalho, canções satíricas e do dia-a-dia, reforçando, assim, o repertório do Cancioneiro Popular.

Deste convívio entre diferentes gentes nascerá, e se afirmará através dos tempos, uma valência etno-cultural de identidade regional e local muito própria: um folclore urbano! Ou melhor: o filão popular da música de raiz coimbrã, com as suas manifestações emo-musicais, desde as danças e cantares regionais e locais até às cantigas, marchas, danças de roda com mandador, e serenatas populares. E, de uma maneira geral, todas estas expressões musicais se desenvolviam ao ar livre.

Paralelamente a este filão popular, um outro se desenvolvia também: o filão académico, com as suas manifestações musicais (reveladoras de uma postura erudita quanto ao evoluir do discurso poético-musical ao longo dos tempos), mas de forte influência urbano-popular, onde se destacam as estudantinas, o cantar brejeiro e as serenatas. 
 
Sabe-se, aliás, que pelo menos, desde o século XVI, era hábito os estudantes de Coimbra cantarem e tocarem, noite dentro, pelas ruas da cidade. Prova factual é a missiva que o rei D. João III envia ao então reitor da Universidade, a 20 de Junho de 1539, dando conta da necessidade em se pôr fim à algazarra e às cantorias que os estudantes faziam até altas horas da noite, já que eram muitas as queixas dos habitantes da velha urbe. Se seria um Canto Serenil (única e exclusivamente de cortejamento por uma mulher), não o podemos, seguramente, afirmar; mas que era um canto de rua, disso não restam dúvidas. 

Sabe-se, também, que no ambiente académico do século XVIII, os estudantes cantavam miles trovas, e que, na Coimbra daquele tempo, era hábito cantarem-se canções de amor e cantigas populares, reflexo de um salutar intercâmbio entre o duplo filão desta Canção que, e muito bem, chegou aos nossos dias.

Pese embora, os serões de então, quer da aristocracia como da burguesia, serem preenchidos com minuetes, rondós, romances e modinhas, onde o acompanhamento era feito, primeiramente a cravo e, mais tarde, ao piano, era, todavia, na rua, que esta cultura aristocrática e burguesa se cruzava com os cantares regionais e locais. E é na rua que a serenata ganha ascendente. 

Ora, tudo isto diz respeito a um tempo anterior ao aparecimento do Fado em Portugal - que ocorre no 1º quartel do século XIX. Fado que ao difundir-se pelo país, nunca chegou a dominar os cancioneiros populares de cada região, ou o tipo de música que então se cantava e tocava no ambiente aristocrático e burguês das cidades; e tudo isto tem em conta uma característica que ainda. hoje perdura na Coimbra do século XXI: a Canção de raiz coimbrã filão popular e académico, é, essencialmente, um Canto de Rua, embora possa ser interpretada em espaços fechados - que não Casas de Fado (prática nocturna ligada ao Fado de Lisboa, mas que nada tem a ver com os hábitos musicais de Coimbra e com a génese, evolução e imaginário da sua Canção).
Jorge Cravo


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