Amália Rodrigues - a derradeira entrevista
Interviews - Janeiro 02, 2006
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A sua sina eternizou-se na Praça da Ribeira...Sim, havia um senhor que conhecia o meu pai e que tinha um stand no Cais da
Rocha, onde vendia vinho e bordados da Madeira. Eu e a minha irmã Celeste trabalhávamos lá à comissão. Um dia alguém aconselhou a minha mãe a montar uma banca de fruta no mercado da Ribeira. Mas quem vendia a fruta, ao contrário do que se disse, era a minha mãe.
Quando aquilo não se esgotava, eu e a minha irmã Celeste íamos com um cesto pequeno oferecer às pessoas, aos barcos. Havia estrangeiros à janela... Um dia um polícia até disse à minha mãe: «Esta rapariga é mal empregada».
Cantava na praça?
A primeira pessoa que fiz chorar quando cantava foi o meu vizinho, que era chauffeur. Nessa altura tinham morto na Quinta da Terrugem um chauffeur, e os ceguinhos cantavam a sua morte. Eu sempre que via o meu vizinho cantava aquilo: «Do fim do pobre chauffeur/que deixou, vertendo em pranto/No seu lar, humilde e santo/Seus filhos e a mulher». Eu cantei-lhe aquilo - e cantava de tal maneira que o homem começava a chorar, chorar, chorar. Daí comecei a cantar outras coisas - e mandavam-me cantar. Mas quando me mandavam cantar eu não queria cantar - e quando eu cantava a minha avó não queria que eu cantasse. Era assim continuamente...
Gostava de cinema?
Sim. Com o dinheiro do trabalho, eu e a Celeste íamos ao cinema. Via os filmes em Alcântara. O que mais me impressionou foi "A Dama Das Camélias", com a Greta Garbo Depois via os filmes do José Mojíca, de Carlos Gardel, que comecei logo a cantar. Achava muito bonito o que Gardel cantava, aquilo era muito parecido com a nossa língua (com o fado)... Naquela altura tinha uns 12 anos. Então, comecei a cantar aquilo e cantava as coisas espanholas. Eu nasci fadista, sou mesmo fadista.
É nessa fase que começa com ideia de suicídio. Era a sério ou só para chamar a atenção?
Eram criancices. Uma vez comi fósforos para castigar a minha avó, que me tinha dito uma coisa de que não gostei. Quando vi A Dama das Camélias chorei, bebia vinagre para ser como ela... Ia para a janela para apanhar corrente de ar para ficar tuberculosa e morrer como ela. Eu não percebi nada daquilo, só percebi que o pai dela era muito mau e que ela se matou por isso. Queria também morrer assim. .
Foi numa marcha em Alcântara que a sua voz chamou a atenção?
Como toda a gente do bairro gostava de me ouvir cantar, e precisavam de uma rapariga para a marcha, foram falar com a minha família. A minha mãe não queria, o meu pai não queria, mas depois foram ter com a minha mãe e o meu pai e disseram: «Não façam isso, porque a vossa filha canta muito bem». «É, mas na Marcha de Alcântara vai muita gente e ninguém vê quem canta pior ou melhor». Mas, por acaso, o ensaiador escolheu-me a mim para cantar o "Fado de Alcântara" com um rapaz - um tal Bertier que parece que era francês mas vivia em Portugal e tinha boa voz. Quando chegávamos eu cantava e o povo fazia uma grande ovação.
A primeira vez que cantou em público numa verbena, acompanhada à guitarra pelo seu tio João Rebordâo, não correu muito bem...
Esse meu tio tocava guitarra e bebia. Um dia levou-me para a Verbena, em Alcântara, disse que tinha uma sobrinha que cantava muito bem. E cantava - mas tinha muita vergonha. Foi a primeira vez que eu cantei. Cheguei lá, tanta cantiga que eu sabia, mas fui-me logo lembrar de uma que eu achava muito ridícula e não fui capaz de cantar. Sou muito tímida.
Também a fizeram chorar. Quando conheceu Francisco, com quem viria a casar, tentou mesmo o suicídio...
E dessa vez foi a sério.
Conheceu o seu marido em 1938, no concurso da Primavera, onde raparigas de vários bairros se candidatavam a Rainha do Fado. Mas, ao que parece, nem o concurso nem o primeiro amor lhe correram bem...
Triste sina, não é? Era ele quem tocava para aquela gente toda cantar, mas não era profissional, era amador. Uma das zangas que tivemos, a partir daí, foi porque ele queria acompanhar-me para todo o lado - e eu sabia perfeitamente que havia gente que tocava melhor do que ele. E depois ele tinha outro trabalho, era mecânico... Nesse concurso havia muitas provas, e a melhor ganhava o prémio de Rainha do Fado desse ano. Cantei e toda a gente bateu palmas. As outras raparigas ficaram um bocadinho com medo e disseram: ou ela ou nós. Ameaçavam deixar o concurso. E só porque tinham mais dez tostões do que eu, gozavam-me, dizendo que eu vendia fruta na praça. Se elas desistissem, não havia concurso. E eu acabei por desistir.
Mas não desistiu do Francisco...
Bem, foi um grande amor naquela altura, com 18 anos. O rapaz era bonito e tocava guitarra - e eu gostava de fado. Mas a maneira como ele conduziu as coisas não foi bonita e os meus irmãos não gostaram...
Tinham ultrapassado as 'regras', numa época em que uma rapariga deveria chegar 'intacta' ao casamento?
Sim. E soube-se. A minha tia disse à minha mãe. que por sua vez contou aos meus irmãos. Foram falar com ele na minha presença - e o Francisco disse que não tinha nada comigo. Que namorava há seis anos uma rapariga, já tinham as mobílias compradas e tudo. Os meus irmãos voltaram a falar com ele e disseram-lhe: «A rapariga está assim, nunca teve namorado, você tem de casar com ela». E obrigaram-no. Eu não queria casar obrigada. Até tinha um guarda-fiscal que queria casar comigo mesmo assim, mas eu não quis. Quando ouvi o Francisco dizer aos meus irmãos: «Não fui eu», as lágrimas caíram-me logo... Tive que fugir dali. As lágrimas começaram a cair fora de tempo, até que foram à morte. Por acaso não me soube matar. Comprei remédio dos ratos e fui ao Chafariz da Junqueira, pus o pó na mão, abri a torneira, mas muito pó escorreu-me pelos dedos. Depois, aí pelas seis da manhã, fui para a porta da mãe dele, para ele me ver morrer. Mas ela mandou-me embora.
Mas tinha bebido veneno... Não lhe fez mal?
Ainda sofri muito durante uns três dias, mas uma rapariga que morava perto da minha casa deu-me azeite para eu vomitar.
Acabou por casar com o Francisco em 1940...
Mas só durou três anos. A minha vida não a fiz, fizeram-ma... Costumo dizer que a minha vida foi Deus Nosso Senhor quem a fez. Depois, passado um tempo, ele veio com a mãe, com o pai e com a irmã, que era a família dele, dizer que tinha dito aquilo por causa dessa rapariga, mas que não podia viver sem mim. Eu já trabalhava na Severa, ganhava o meu dinheiro, e como os meus pais eram pobres tentava ajudá-los. E começaram umas discussões muito feias e eu
não gostava disso.
Foi a gota de água?
Não. Foi depois de uma discussão que ele teve com a minha irmã, por ela vestir uma saia minha. Zanguei-me e deixei-o. Mais tarde, fizemos uma espécie de encontro com um senhor chamado José Melo que me ia sempre ouvir cantar. Ainda nos quis juntar. E eu também quis, mas disse ao Francisco: «Só vou para o pé de si se for para uma casa nossa e de maisninguém».Ele não quis, não quis deixar a mãe, e depois foi para África.
E acabou assim...
Não... Havia um homem muito importante em Vila Franca de Xira, o Zé Palha, que quando eu estava a fazer a Severa no Monumental me deu uma vez um cesto enorme com duas mil e tal rosas. E esse gostava muito de mim. Até me dizia: «Como eu gostava de a ter visto com o avental, lá em Alcântara...». Eu respondia: «Se é só por causa do avental, não faltam por aí muitas mulheres». Mas, como ele sabia que eu gostava do Francisco, quando nos separámos veio aqui e disse: «Quando vier aqui o Chico, se eu cá estiver, tu dizes-me. E eu venho cá para falar com ele».
Tentou ajudar-nos, mas já não havia remédio. Mais tarde o Francisco, uma vez que veio cá, disse-lhe: «Se é para saberes se eu gosto da Amália, gosto, nunca gostei de mais ninguém senão da Amália». E coitado, é verdade. Quando eu o deixei as pessoas falaram muito, ele ficou com vergonha por eu o ter deixado e foi para África trabalhar numa companhia inglesa. Era um bom mecânico, ganhava até muito bem, mas teve de voltar quando foi a história da guerra de Angola.
Entretanto Já cantava no Retiro da Severa. A sua passadeira para a glória começou ai?
Comecei no Retiro da Severa em 1939, ainda não estava casada e a minha mãe teve de dar autorização. Ca-sei-me em Junho de 40. Foi assim: o meu irmão Filipe, que era boxeur e boa pessoa (coitado, morreu cedo), conheceu o Santos Moreira, que era viola, e disse-lhe que tinha uma irmã que cantava muito bem e gostava que ele me ouvisse. E eu lá fui com ele. Tinha um medo de cantar que me pelava, mas fui lá e cantei. Na Severa, os grandes cantores eram o Alfredo Marceneiro, a Berta Cardoso, a Adelina Ramos, a Ercília Costa, o Júlio Proença. A Berta Cardoso mandava-me comer, porque eu estava muito magrinha. Fui lá sem os meus pais saberem. O Retiro da Severa era dirigido pelo Jorge Soriano, que duas vezes por semana ouvia as cantoras novas. Eu já tinha cantado em festas e verbenas e apresentava-me como Amália Rebordão, que era menos vulgar que Rodrigues. Cantei um fado que o Joaquim Lima, o ensaiador da Marcha da Alcântara, tinha feito para mim: «Sou Amália Rebordão/Uma nova cantadeira/Por amar esta canção/Sou fadista verdadeira». Eles gostaram. Eu estava com muito mau aspecto, porque me tinha tentado matar. Depois -como se dizia que os meus pais eram pobres e eu, de facto, ia maltratada, estava muito magra - havia lá na Severa um cozinheiro que me fazia um bife todos os dias... Eu detesto bifes, mas levava-os para casa, porque havia lá quem gostasse. Ainda hoje não gosto de bifes.
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