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Amália Rodrigues - a derradeira entrevista

Interviews - Janeiro 02, 2006
De quem gostava mais na Severa?
Gostava muito da Hermínia Silva, que era uma artista muito engraçada. Cantava de uma maneira completamente diferente da minha. Eu não gostava de ter a dela, gosto mais de ter a minha. Mas, depois da minha, é da dela que gosto mais. Nunca a tratei por Hermínia, sempre por Senhora D. Hermínia. Um dia aconteceu uma coisa muito engraçada. Perguntou-me: «Dorme bem?». «Sim, durmo». «Ai, eu não durmo nada, nada, passo a noite toda a ler, a ler, a ler». Eu fiquei um bocado espantada... «A ler? Mas a ler o que lê?». «Gosto de ler tudo, o jornal de ponta a ponta». Ela só lia o jornal, mas dizia que gostava muito de ler! Mas era muito engraçada e uma grande artista. Uma revista com ela era de uma pessoa morrer de rir. Mas, voltando atrás, desde que fui a primeira vez à Severa, começaram a mandar caixas com flores lá para casa. E a minha mãe não queria, o meu avô não queria, mas depois foram ter com os meus pais e disseram à minha mãe: «Ó minha senhora, desde que se seja boa pessoa, não é o trabalho que faz mal... A sua filha canta muito bem, tem uma voz muito bonita, vai ter uma grande carreira e estão-lhe a estragar tudo». A minha mãe já estava um bocadinho para aí... Mas os meus tios e toda a minha família deixaram de falar aos meus pais quando eu comecei a cantar. Cantar o fado era muito feio...

Aí no Retiro da Severa fez um contrato de exclusividade.
Eram quinhentos escudos por mês, todos os dias a cantar. O senhor José Melo, de quem já falei, deu conta de que eu estava a ser explorada... e bem! Eu enchia a casa, nos dias em que cantava estava tudo cheio, e os bilhetes eram a sete e quinhentos; e quando eu não estava lá a casa não se enchia nem coisa que se parecesse, e os bilhetes eram a vinte e cinco tostões. Foi assim que cheguei ao conto de réis.

Quem lhe escrevia as letras na altura?
Até aí cantava coisas dos poetas... O Linhares Barbosa era o que tinha mais graça. Tinha também o que escreveu uma coisa muito bonita, Cinco Pedras, e também Anda Daí, A Festa da Mouraria, A Procissão da Senhora da Saúde. O Gabriel Oliveira. E tinha outros, mas não me lembro... Depois foi o Valério. As músicas que ele fez para mim saíram de Lisboa e foram para todo o Portugal. Nessa altura o fado subiu mais. Depois, quando comecei a cantar o Alain, as pessoas diziam: «Agora ela já não canta o Valério». «Já não pode...», era o que queriam dizer. Mas era mentira, porque o Alain era melhor que o Valério... Não posso dizer isso, porque a família fica triste. E do Valério sempre cantei o Ai, Mouraria...

Ao contrário de Hermínia, a Amália lia?
Li sempre. Quando comecei a ler, lia o Balzac, cantei o André Gide e outros. E li todos os escritores portugueses. Gostei de Miguel Torga. Lia muito, até demais. Lia os poetas espanhóis.

A partir de que altura?
Foi quase quando comecei a ser recebida pelas pessoas como devia ser.

Sempre teve medo de pisar o palco? Reza antes de entrar?
Sim. Estou meia hora a rezar primeiro. Só quem não sabe nada é que pode dizer que entra ali à vontade. Mas eu fui sempre muito tímida em qualquer parte, em casa das pessoas... Sou doentiamente tímida.

O que rezava antes de entrar no palco?

Rezava à Nossa Senhora do Carmo. Bem, fui influenciada pela minha avó, que me ensinou umas orações - e uma delas era à Nossa Senhora do Carmo. Essa rezo-a sempre, em qualquer parte onde estiver a cantar.

E os seus amores? Foi amada... Desde actores de Hollywood... Há até uma história de um senhor que lhe fazia a corte e a Amália respondeu-lhe que depois de ter provado pescadas americanas...

Mas isso não foi na América, foi em França... Era um homem que tinha mulheres muito ricas... e que começou a fazer-me a corte. Andava atrás de mim naquelas coisas dos casinos... naquela zona das praias na França, a Cote d'Azur. Então um dia disse-lhe: «Você tem grandes pescadas e agora quer sardinha portuguesa?». E veio no jornal isso. Outra vez estava a cantar no Casino do Mónaco e aparece-me o director artístico a dizer: «Está ali o Onassis, que a queria ver...». E eu: «Quem é esse?». O outro ficou pasmado: «Você não conhece o Onassis?». «Não, não conheço». E foi chamar uma data de gente: «Venham cá, está aqui a primeira pessoa que não sabe quem é o Onassis». O Onassis só queria falar comigo para eu ir cantar à Grécia, a casa dele, mas eu não podia porque estava a trabalhar...

Como se chamava esse seu admirador, o das sardinhas?
Porfírio Rubirosa. Foi um dos casos que deram mais que falar: foi um grande conquistador das mulheres de dinheiro da América. Teve vários casamentos e pensou que também ia casar comigo. Mas houve uma pessoa com quem podia ter havido alguma coisa, que era o Anthony Quinn... Por acaso, fui uma grande palerma... Eu estava no México, ia ao México muitas vezes, e ele era mexicano, como sabe. O Cantinflas também era meu amigo. Quando eu ia lá, tinha logo um jantar e os violinos a tocar Coimbra e cantigas portuguesas que eu cantava. E através dele conheci um homem que fazia filmes, era o melhor do México, que me convidou a ir a casa dele e a certa altura disse-me: «Se a Amália fosse para Portugal com a mão do Anthony Quinn, ficava vaidosa ou envergonhada?». E aquilo para mim não me dizia nada, fui para outro lado.

Ele estava apaixonado por si?
Não sei, mas lá que me fazia a corte... Há cortes que não são assim grandes amores...

Havia outro actor de Hollywood que também esteve multo apaixonado por si.
O Eddy Ficher... O primeiro casamento que ele teve foi com a Debbie Reynolds... até vieram a Portugal passar a lua-de-mel, estiveram no Hotel Aviz. Depois casou com a Elizabeth Taylor, mas não era homem para ela, era muito pequenino... Vieram a Portugal por minha causa. Tenho ali uma dedicatória que me pôs num livro. Já em Espanha tive um rapaz muito apaixonado por mim. Mas não sou pessoa para ir a um sítio qualquer, ter um homem e depois vir-me embora... Vou contar uma anedota que mete três mulheres da má vida e a conversa que tinham com os clientes. A inglesa diz: «Pleased to meet you». Depois a espanhola: «Depressa, que tenho de ir para a missa». No fim, a portuguesa, que é a melhor delas todas, lamenta-se: «E agora, o que é que o senhor vai pensar de mim?». Esta é muito boa, não é?

Gostava de Salazar? Tinha uma admiração por ele como homem ou como político?
Bem, sou filha de uma família que falava do Salazar como uma boa pessoa. Não se esqueçam que depois de matarem o Rei houve a República, e andavam sempre aos tiros. As pessoas não sabiam se chegavam a casa ou não... Era isso que diziam, eu era muito nova. Estavam a falar à minha frente e eu ouvia. Depois apareceu o Salazar a acalmar aquela coisa toda. Mas eu não o conhecia.

Mas admirava-o como político?
Não, não. Não admirava, porque não conhecia a pessoa. Nunca disse que ele era muito bom, que governava não sei quê. Sabia lá quem é que governava!... Nunca fui política. Agora é que estão a fazer de mim política, porque dizem mentiras, mentiras e mentiras. E os que não são nada comunistas e estão lá a cantar, como é o caso do Carlos do Carmo, que é tão político como eu. É político mas é do dinheiro.

Que relação teve com Salazar?
Disseram-se tantas coisas... Até que quem tirava o dinheiro às pessoas era eu e o Salazar. O Salazar não tirou dinheiro nenhum a ninguém e eu também não... E como moro aqui na Rua de São Bernardo, na Estrela, até houve um fado que dizia: «Que bairro aquele, mora lá ele, mora lá ela». Havia tantos boatos... Chegaram a dizer que havia umas escadas entre a minha casa e S. Bento... E que havia um elevador especial para mim. E que aqui no quintal tinha um túnel que ia directo para lá... porque ele não fazia nada sem mim! Ao que chega a estupidez das pessoas!
Só vi Salazar duas vezes na vida. Em 1949 fui cantar a Paris e penso que o embaixador Marcelo Mathias lhe mandou dizer que eu tinha sido um sucesso. Um dia o António Ferro levou-me a conhecê-lo. Depois ele saiu-se com aquela da «criaturinha». É que, quando eu saí dali, acho que ele disse para quem lá estava: «Gostei muito de conhecer a criaturinha». Houve pessoas que não gostaram dessa palavra, mas eu gostei... Porque eu era mesmo criaturinha, tinha vergonha de estar ali e vim-me embora. Assim que me apanhei cá fora, ressuscitei.

Salazar ouviu-a cantar?
Só me ouviu cantar uma vez. Foi em Queluz, na festa de inauguração da Ponte Salazar. Eu estava lá - e o Franco Nogueira veio dizer-me que o Salazar queria falar comigo. E elogiou-me. Depois houve aqueles poemas que lhe enviei: «Ponha-se-me bom depressa/Meu querido presidente/Depressa... Não sei do regulamento/E se isto é má criação/Perdoe o procedimento/E aceite a intenção... que essa cabeça não merece estar doente».

Essa história dos versos foi muito comentada na altura...

Foi por causa de um advogado, o António Maria Pereira (detesto esse homem), que eu ainda estou à espera de... Porque nunca na minha vida mandei nada ao Salazar, a não ser quando ele estava a morrer...

Mas havia pessoas do regime de quem gostava...
Gostava muito do António Ferro e do secretário dele, que era um homem muito simpático também. Mas eu não sabia nada de nada - e havia de saber de política porquê? Mas chegaram a dizer que eu quis matar o Delgado. Era assim: ele foi a minha casa, eu dei-lhe uma taça de champanhe, ele deixou cair a taça, depois apMas essas tertúlias...
Eram uma coisa e depois tornaram-se outra... É, mas eu não era nada política, não era nada comunista nem coisa nenhuma... 

O seu marido apoiava Humberto Delgado.

No dia 26 de Abril casei no Brasil com o engenheiro César Seabra. Tinha-o conhecido quando lá cantara. Era do grupo de portugueses que davam dinheiro ao Delgado. Tanto ouvi falar de Delgado que quis conhecê-lo, mas apenas o cumprimentei de raspão no restaurante O Galo. O meu marido também não era político. Ele queria liberdade de expressão, mas nunca se expressou.

Antes do 25 de Abril recebia em casa pessoas consideradas de esquerda...
Aqui vinham a Natália Correia, o Ary dos Santos, o David Mourão-Ferreira, o Alain Oulman. Eu não sabia que o Alain era político, e afinal de contas era. Uma vez disse-me que era maoísta, mas eu não sabia o que isso era. E explicou que os chineses gostavam muito de trabalhar. E eu: «Ó Alain, mas isso é uma chinesice»... Os chineses gostarem muito de trabalhar! Estava aqui ele, a Natália Correia, o Ary dos Santos... O Ary fazia os versos para o Alain... Mas nunca meti o pé em nada.



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