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Amália Rodrigues - a derradeira entrevista

Interviews - Janeiro 02, 2006
Mas fale-me um pouco dessas tertúlias...
Bem, não falavam de política, talvez porque não confiavam bem em mim... Eu via mais a Natália Correia do que os outros, por causa do Botequim [bar na Graça fundado por Natália Correia]. E estava lá uma que era a Roseta, que também não sei nada dela. Apesar de tudo, gosto mais da Natália Correia, porque era uma pessoa maluca. Mas era inteligente, era enorme... A escrever era enorme e eu gostava muito dela. Também tinha aquela coisa da boquilha, e fazia umas coisas no ar. Um dia estávamos num sítio qualquer e eu: «Ó Natália, conheço aquele homem não sei donde...». «Aquele homem é dos maçons, da Maçonaria». «O que ê isso da Maçonaria?». «Não sabe o que é a Maçonaria?». E ela gritava: «Não sabe o que é a Maçonaria?». «Não, menina, não aprendi isso, não sei». E ela gritava mais, a ver se toda a gente ouvia. Outra vez iam fazer uma peça de teatro em Paris e, como não conheciam ninguém e ninguém os conhecia, vieram-me convidar, porque eu era conhecida. Estrearam uma peça que era a Pécora, e eu comecei a ver que ela punha a Nossa Senhora como se fosse uma prostituta. Fiquei um bocado chocada e disse-lhe a verdade: «Eu não sabia para o que vinha, nem gosto da ideia. Rezo muito sempre, mas hoje tenho que rezar muito mais, porque não gostei de ver Nossa Senhora no papel que você lhe pôs. Mas há uma coisa que tenho de lhe dizer: tenho que rezar ainda muito mais porque gostei da maneira como você a escreveu». Mas aquilo era mesmo uma porcaria de uma coisa...

Como era a sua relação com Ary dos Santos? Como era ele?
O Ary dos Santos era maluco. O César chamava-lhe o 'poeta da Rua da Fruta'. Sabe porquê? Ele falava muito do limão e não sei quê... O Ary não gostei do que fez. Tanta vez que esteve aqui nesta casa - e depois só me telefonou uma vez a perguntar se eu precisava de alguma coisa. «Não, só precisava de cantigas...». Ninguém, nem o David, saiu a dizer: «Olhem que isso é mentira, ela não tem nada a ver com essas coisas». Ninguém o disse. Só o Alain, que era mais comunista do que os outros todos. Era maoísta...

A seguir ao 25 de Abril ficou muito magoada com alguns dos seus amigos. O Ary dos Santos desapareceu de sua casa. Sentiu-se abandonada, nessa altura?
Não vou estar a falar contra ninguém. Quem sou eu para isso? Mas não vou para um lado nem para outro, vou para o meu...

Recorda aquela noite em sua casa em que reuniu o Vinícius de Moraes, o Ary dos Santos, a Natália Correia, o David Mourão-Ferreira?...
Lembro-me do Vinicius de Moraes. Estava já borracho. Fez para mim o fado Saudades do Brasil em Portugal. Fê-lo lá no Brasil, quando estava a cantar no Ca-necão. Depois chegou aqui e cantou - e a única coisa que dizia era que já estava bêbedo... E vinha sempre com umas meninas bonitas a passar-lhe as mãos pelas pernas. Dizia constantemente: «Portugal precisa de comunicar, os portugueses têm que comunicar»... Era completamente doido aquele homem. Bebia muito, mas é um grande poeta.

Mas como foi essa noite?
Essa noite veio de outra. Nós estávamos aqui a brincar e estavam a gravar e ficou bem. Resolvemos então fazer outra, mas a outra já não ficou tão bem, porque a primeira foi uma coisa espontânea e a outra já foi feita para ser melhor - e às vezes não é. Estava cá o Ary, a Natália, o David Mourão-Ferreira, o Alain, que estava aqui sempre em casa... Em 1966 eu estava em Israel quando tive a notícia da sua prisão. Passados uns dias fui a Paris e falei com a irmã, que disse que ele estava preso pela PIDE. E que o ministro dos Negócios Estrangeiros francês ia pedir ao Marcelo Mathias que ele fosse expulso de Portugal. Depois eu falei com o ministro dos Negócios Estrangeiros e telefona-me o Marcelo Mathias: «Olhe, Amália, o seu menino do coro vem amanhã para França, mas não é tão menino do coro como você o pintou». Mas eu pintei porque julgava que ele era mesmo assim.

Não sabia que o seu amigo tinha essa intervenção política e por isso defendeu-o. Mas, se soubesse, não o defendia na mesma?
Com certeza, ele era meu amigo... Foi melhor não saber do que saber, mas nunca seria capaz de dizer alguma coisa contra o Alain. É uma adoração que tenho pelo Alain. Uma vez fomos jantar a Cascais... Estava eu, ele e a mulher. Ele foi-me buscar uma almofada, porque eu estava mal sentada. E depois eu disse para a mulher: «O Alain é muito bem educado». «Demais», respondeu ela. Mas disse o 'demais' com um ar ciumento. O Alain era uma pessoa de quem eu gostava muito, ela não era a mesma coisa... E gosto muito do filho dele...

A PIDE nunca a importunou?
Não. Só uma vez me obrigaram a cantar no aniversário do Sporting [O Sporting Clube de Portugal era tido como o clube do regime]. Eu tinha assinado um contrato para ir, mas recebi muitas cartas anónimas a pe-dir-me para não ir: «Não vás, tu és do povo, és das nossas». Uma delas era da Maria Barroso... Eu nem sabia que ela era política. Tinham sido as eleições onde concorreu o Humberto Delgado e tinham decretado três dias de luto, mas eu não sabia nada de política. Algumas cartas ameaçavam-me e eu não quis ir. Veio então um homem lá da PIDE a dizer que eu fosse, que não me acontecia nada de mal. Mas eu dizia: «Tenho muito medo, porque se for um tiro não me importo, porque não o sinto, mas se for um tomate na cabeça ninguém mo tira...». «Mas vamos no carro blindado...». Eu nem sabia o que era o carro blindado. Então lá fui. Me-teram-me no carro blindado e garantiram a minha segurança. E estava tudo cheio. Não me aconteceu nada.

Simpatizou alguma vez com o outro regime?
Com o outro regime? Não tive tempo de o compreender. Como contei atrás, quando em minha casa se falava do Salazar, dizia-se que era um homem extraordinário. Salazar era uma grande pessoa para mim, mas não era pela política... Mas uma vez apaixonei-me por ele, quando tinha 13 anos. Era um homem bonito, era o homem que mandava em tudo.

Chegou a conhecer Marcello Caetano?
Fui um dia a casa dele, por causa da Maluda. Mas vi-o poucas vezes. No 25 de Abril vi como estavam a chamar-lhe nomes... E fiquei a chorar, a chorar, aquilo era muito feio. Diziam coisas muito feias e batiam num carro blindado. Eu acho que as pessoas são más quando fazem isso.

Mas qual era a sua opinião sobre ele?
Olhe, há muitos anos tive a ideia de fazer na Casa dos Bicos uma casa de fados... Aquilo era muito bonito e estava num sítio bom, com lugar para pôr os carros, perto do rio... Queria aquela casa, não queria mais nenhuma. Pedi então a um homem que era o Tenreiro, que eu não conhecia, mas fui lá e disse: «Desculpe, eu não o conheço mas ouvi dizer que o senhor manda em tudo. E já que manda em tudo, talvez mande também nisto. Porque eu gostava de não sei quê». «Pois, isso é um caso muito bicudo, porque afinal de contas já se deu essa casa ao vice-rei da índia». Depois a Maluda disse isso ao Marcello Caetano. E ele respondeu: «Diga lá à Amália que lhe arranjo uma coisa menos bicuda».

De política, portanto, a senhora não teve...
Nunca pus um pé na política. Só não posso gostar do Otelo Saraiva de Carvalho, dizem que matou muita gente. Mas a mim não me mata...

Lembra-se da 2ª Guerra Mundial?
O Hitler, nem dei por isso. Vi foi vestígios de uma guerra muito má em Espanha. Fui para lá e vi aquilo tudo, as pessoas... Foi uma coisa horrível.

Fala da primeira vez que foi a Madrid...
Sim. Fui convidada pelo Theotónio Pereira, que era embaixador em Madrid. Fui lá cantar com outro rapaz, o Gil Proença. O guitarrista era o Armandinho e na viola o Santos Moreira. Eu tinha o passaporte de todos porque era a pessoa mais capaz. Ele mostrou-nos aquela coisa toda. As freiras ficavam à porta das igrejas, desventradas. Foi a única coisa que eu soube da guerra. Nessa altura estavam aqui os refugiados. E Lisboa estava muito bonita. Foi a Lisboa mais bonita que já vi. Era mau por um lado - mas os que se salvaram vieram para cá e ninguém lhes fez mal. E Portugal ganhou muito dinheiro... Quanto ao Hitler, foi um horrível homem. Mas não menos horrível foi o Estaline. Esse homem era muitíssimo mau...

Já nessa altura se sentia um símbolo de Portugal?
Não. Não sentia isso. Hoje em dia sei que as pessoas gostam de mim, é uma coisa que se vê, uma coisa que sinto. É um amor, eu também gosto das pessoas. Gosto muito dos portugueses e gosto muito de Portugal. Só não gosto para aí de uns quatro.

Quem? O Carlos do Carmo?
Bem, já sabe que é o Carlos do Carmo, que no Brasil dizia que eu era do regime. E o filho dele é outro.

Depois do 25 de Abril a Amália sofreu muito...
Vou contar uma coisa. A revolução começou de 24 para 25, e eu tinha um contrato para ir cantar a Madrid à televisão no dia 27. No dia 26 soube que o aeroporto estava fechado e que não havia avião para Madrid. Então telefonei para a fronteira terrestre e disseram que estavam abertos - e fui para lá. Cheguei ao hotel depois do espectáculo, ia com uma amiga daqui, a Maria Amélia, que era uma pessoa muito rica (fugiu de Portugal uma vez porque prenderam o marido e o genro, mas ela não fez nada, só era rica), e quando já estava a despir-me para ir para a cama toca o telefone: «É a Amália?». «Quem fala, é a Maria Amélia?». «A Laura [a empregada] manda dizer que não é preciso porque segunda-feira não há peixe». «O quê?». «A Laura está a dizer que segunda--feira não é preciso, que não há peixe». Não percebi nada, mas depois pus-me a pensar: 'Será que lá andam aos tiros? Que andam às guerras?'. Quando cheguei e vi que andava o boato que eu era não sei quê... fui ao Palácio Foz. Estavam lá uns militares, que não eram muito maus, e disse: «Venho aqui exigir uma mesa-redonda para a televisão». Calcule a minha ingenuidade e a minha culpabilidade... A ingenuidade era muita e a outra não era nada. Nunca pensei que pensassem alguma coisa de mim... Mais tarde fui chamada à Comissão de Extinção da PIDE e veio um homem: «A senhora foi maltratada pela PIDE?», e eu disse: «Infelizmente não». «Infelizmente porquê?». «Se tivesse sido, agora estava muito bem». E depois sabe o que ele me foi buscar? Uns papéis que diziam que uns anos antes eu era comunista.

Revista Tabu (13/11/09) Entrevista por Felícia Cabrita


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