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Mísia: "O fado dá-me essa possibilidade de falar de tudo o que há entre a vida e a morte"

Interviews - Setembro 24, 2018
Mísia descreve o percurso pioneiro para encontrar uma individualidade no fado. A fadista, que na década de 1990 subverteu o fado e o lançou novamente para a ribalta internacional.

A Ásia tem sido escala regular nas digressões internacionais de Mísia desde que o mundo a descobriu, logo no início da década de 1990. A fadista, que gravou o seu primeiro disco em 1991, esteve por duas vezes no Festival de Artes de Hong Kong, cantou no Japão, Coreia, Singapura, Taiwan. Esta é a terceira vez que a fadista está em Macau, para um concerto acompanhada pela Orquestra Chinesa de Macau, que se realizou ontem no Centro Cultural de Macau, no encerramento da XXIX edição do Festival de Artes de Macau. Mísia, que na década de 1990 subverteu o fado e o atirou novamente para a ribalta internacional, foi a primeira fadista a ter um disco na categoria World Music, a ser mencionada na publicação norte-americana de crítica musical Billboard, depois de Amália Rodrigues, a participar no Festival WOMAD, em 1997, a actuar nas grandes salas de espectáculo do mundo onde Amália Rodrigues havia actuado uma ou duas décadas antes. A pioneira Mísia, que traçou o seu trajecto precursor no fado cantando a poesia de grandes escritores e os músicos contemporâneos, interpretou em Macau temas como “Fado Adivinha”, com letra de José Saramago, “Fogo Preso”, com versos de Vasco Graça Moura, “Lágrima”, de Amália Rodrigues, “Garras dos Sentidos”, com um poema de Agustina Bessa-Luís, “o único poema que se conhece que a escritora escreveu”, especificamente para a voz de Mísia, revelou a fadista, “Tive um coração, Perdi-o”, de Amália Rodrigues, entre outros temas.

Como é que tem sido esta experiência de trabalhar com a Orquestra Chinesa de Macau?
É sempre enriquecedor deitar abaixo barreiras. Eu gosto desta contaminação, acho que o fado fica bem com estes instrumentos, que não são viscerais, mas que têm uma grande beleza e sensibilidade. Também escolhi os fados do meu repertório adaptados, pensando que poderiam ficar melhor com este tipo de instrumentos.

A Mísia é conhecida como uma revolucionária do fado, identifica-se com esta ideia?
Não o fiz com essa intenção. Mas, realmente, há um antes e um depois. Está escrito nos livros. Manuel Halpern escreveu um livro muito importante que se chama “O Futuro da Saudade”, em que diz que é muito difícil delimitar no tempo estas coisas, mas que se tivéssemos que escolher uma data para aquilo que se chama “o novo fado” – e falta saber se concordo com essa denominação de novo fado ou não – mas, que esse momento, seria o meu primeiro disco. Houve aí uma viragem. Mas não fiz com a intenção de revolucionar, fiz porque queria fazer. Não olhei para o lado.



O que a motivou a cantar fado?
Nasci no Porto, cantei três anos nas casas de fado como amadora. As pessoas acham que vim de fora, mas eu não vim de nenhum planeta estranho. No Porto, ia muito ao “Mal Cozinhado”, que era uma casa de fado de um guitarrista chamado Jorge Barradas. Ia à “[Casa da] Mariquinhas”. Estava a estudar ainda no liceu Garcia da Horta e ia, muitas vezes, lá cantar. Depois estive uns anos em Barcelona, quando voltei fui para Lisboa e não para o Porto. O que me motivou é que é o instrumento cultural, através do qual, eu posso falar da vida. A minha intenção não é ser uma excelente fadista, nem ter uma voz muito performática, nem cantar muito bem, claro que prefiro cantar bem do que cantar mal. Mas, a minha intenção, o que me interessa e o que me move, é falar do que é estar vivo, e o fado dá-me essa possibilidade de falar de tudo o que há entre a vida e a morte.

A Mísia rapidamente entrou no circuito internacional, mas havia muitas críticas, em Portugal, a quem o estilo inovador da Mísia incomodava.
Em Portugal, não no estrangeiro. Claro, havia críticas, uma mulher sozinha, sem nenhum mentor, com mini-saia e com opiniões. A mini-saia não se inventou com o meu fado, já antes de mim a Maria Valejo usava mini-saia. Mas, o mais subversivo eram as opiniões, era o meu discurso, a minha maneira de ser. Mas eu, realmente, acho que atravessei um campo de minas sem dar por ela. Porque estava tão concentrada naquilo que estava a fazer, que não fui pedir licença a ninguém. Essa foi outra das coisas, também, não fui prestar vassalagem aos grande “khomeinis” do fado, fiz o meu caminho sozinha. As críticas que havia era sobretudo em relação à imagem. Havia muita gente como eu no Bairro Alto, só que não estavam no mundo do fado. Os vestidos não os faziam especialmente para mim, estavam nas montras para toda a gente. Só que as pessoas do fado não se vestiam daquela maneira. Aconteceu o mesmo com o Paulo Bragança. Nós fomos muito mais subversivos naquela altura porque fomos mesmo mexer em coisas em que ninguém mexia naquela altura. Mas, eu pelo menos, não o fiz, nem com a intenção de ofender, nem com a intenção de revolucionar, não tinha nenhuma intenção senão fazer as coisas como as sentia, ser fiel a mim própria. A imagem foi uma coisa muito importante no estrangeiro. Mas em Portugal foi uma das coisas que mais me prejudicou, porque as pessoas ficaram um bocado escandalizadas. Ouviam-me na rádio e diziam: “ah, uma grande fadista”, e quando me viam diziam: “ah, não pode ser fadista”. Aquelas etiquetas…

Como é que surgem as oportunidades no estrangeiro?
Houve um agente artístico que é espanhol, mas tinha trabalhado muito no Brasil, estava muito ligado à lusofonia. Eu estava a trabalhar no “Botequim”, da Natália Correia, na Graça [bairro de Lisboa], cantava lá por ‘hobby’. Ele veio ver-me, comecei a trabalhar em Espanha, em Madrid. Quando se comemorou a primeira ida dos portugueses ao Japão, fui lá cantar. Estava lá o Mário Soares, a família imperial e eles gostaram tanto que me convidaram quatro vezes num mês para ir e vir. Foi uma coisa de loucos e depois acabei por cantar 14 vezes no Japão. Fiz muito Oriente, naquela altura, Singapura, Taiwan, Seul, Japão, Hong Kong. Houve uma época em que fiz muito este lado do mundo. E, depois, claro, havia a moda. Nada do que eu fiz é novo, é sempre diferente. Depois da Amália não se pode fazer nada novo. Ela é, para mim, a melhor para sempre, a mais contemporânea, e tudo, tenho uma grande admiração. Mas eu realmente comecei a trabalhar nos teatros e nos circuitos onde a Amália tinha trabalhado 15 anos antes. Só que ninguém sabe disto, porque não havia Internet, e as pessoas não tinham nenhum interesse no fado naquela altura. Nos anos de 1990 continuava-se a dizer que o fado era uma coisa da direita, que era uma coisa miserabilista, aliás, olhavam para mim e diziam: “Mas porque é que queres cantar fado, não se vende, devias cantar pop ou rock”. E eu dizia: “Não, mas eu tenho uma ideia, uma visão daquilo que quero fazer, quero convidar poetas que nunca tenham escrito para fado, cantores-autores, o Sérgio Godinho, o Vitorino, o Jorge Palma, Amélia Muge”. O Sérgio Godinho acho que já tinha escrito, mas os outros não. Comecei a trazer para o fado novos poetas que nunca tinham escrito para fado, mas, lá está, a Amália já tinha cantado com os melhores poetas do tempo dela.

Depois da Amália, é difícil fazer coisas novas, porquê?
Se ouvir o último disco da Amália é um disco contemporâneo, e se ouvir aquilo que se decidiu chamar “a nova geração do fado” – que eu acho que não serve para nada, classificar as pessoas por uma faixa etária, os artistas quase que não têm idade. Pode haver, no caso da Amália, uma pessoa de muita idade a fazer uma coisa muito contemporânea, e pessoas da nova geração que são hiper-consensuais e hiper-conservadoras e que cantam um repertório que já existia, não inovam, são simplesmente jovens. Uma pessoa, por ser jovem, não quer dizer que esteja a fazer alguma coisa arriscada ou subversiva ou diferente. Não quer dizer que sejam todos assim. Mas é a própria crítica que diz que a nova geração é muito consensual, e é, não mexe nos fundamentos.

O que pensa desta nova vaga de fadistas, há muitos nomes a emergirem.
Acho bem, acho bem. No outro dia, fiz uma espécie de inquérito e há mais de 100 fadistas com menos de 40 anos. Há muitas pessoas que sabem o que estão a fazer e porque o estão a fazer e com excelentes vozes. Mas outras são imitadoras. Se fosse uma época difícil para o fado não estariam neste género. Mas pronto, isto é uma coisa que todas as modas trazem consigo. Um lado bom, maior visibilidade, e um lado menos bom, que é a banalização, o esvaziamento a não compreensão dos poemas (…). Acho que há pessoas, não muitas, que têm o seu próprio projecto no fado e são essas pessoas que eu admiro. As pessoas que cantam muito bem apenas, não é isso que para mim faz o artista. Há pessoas que têm um universo próprio que fazem as coisas da sua maneira e essas pessoas são aquelas que em todas as profissões eu admiro, que arriscam para serem ela próprias, porque custa muito ser uma individualidade. Gosto de pessoas que têm o seu próprio percurso, que arriscaram para ser quem são, que têm verticalidade e coragem para defender o que é certo, em qualquer profissão ou actividade.

A Mísia conseguiu um feito que foi relançar o fado numa época em que o fado não vendia.
Naquela altura não, com a grande excepção da Amália. A Amália esteve sempre bem e acho que nunca foi questionada.

Quem é que a compreendeu naquela altura?
Os poetas, os músicos e uma elite. E, isso, enervava-me e continua a enervar-me, porque tudo o que eu não quero ser é uma artista de culto. O meu problema não é ser mal-amada em Portugal. O meu problema é ser mal divulgada, mal conhecida. Naquela altura eu estava a fazer coisas verdadeiramente difíceis, porque eu não andava a cantar os êxitos da Amália, não andava a cantar coisas que já eram conhecidas. Eu andava a cantar Saramago, [António] Lobo Antunes, Lídia Jorge, no Japão, em Singapura, na Nova Zelândia. Agora, uma fadista espirra e toda a gente sabe, e acho bem, não é uma crítica. Têm a sorte de estar a viver este momento. Mas aquele momento era a tal elite cultural. Uma coisa é fazer variedades e pedir palminhas nos fados, outra é cantar os grandes poetas e conseguir que eles escrevam para o nosso próprio trabalho. Isso era um ponto de honra para mim. Todo os poetas vivos escreveram especialmente para mim, e isso deu-me muito trabalho. Houve sempre um desconhecimento, um estranhamento, uma certa falência que chocava com o grande êxito de cantar na Filarmónica de Berlim. Também não vou a programas muito populares na televisão. Portanto, o meu público é um público que trabalha, que vai procurar-me, que lê as páginas de cultura dos jornais, não é a maioria dos portugueses. Talvez por ter sido pioneira, os pioneiros nunca são os que recolhem os triunfos, são os que vêm depois. Mas não estou disposta a fazer nenhuma concessão, nem ética, nem estética, nem poética, nem artística para mudar isto. Tenho que fazer aquilo que sinto e depois, claro, por dentro, rezo para que o público goste. Mas não faço um disco a pensar no que é que o público gosta, o que está a vender agora. Pelo contrário, quando comecei a fazer fado não vendia mesmo, era o pior momento para se fazer fado.

Qual foi a sua relação com a Amália?
Não a conheci pessoalmente. Uma vez fui apresentada por um amigo comum, mas não frequentava a casa dela. Sei que ela uma vez disse, contaram-me pessoas que iam a casa da Amália, que, ao ver-me na televisão, disse: “Esta ao menos não imita ninguém”, o que é um grande elogio para mim.

Porque nunca aconteceu esse encontro?
Porque comecei logo a viajar, não tinha meios de comunicação com ela e, depois, tive sempre medo de fazer parte de uma corte que estava ali a venerar a Amália. Eu queria uma coisa sincera, digamos que era também timidez da minha parte. Tinha-a num pedestal tão alto…

Continua tão subversiva como na década de 1990?
Sou espontânea, não planifico. Não tenho uma intenção, nem prevejo, quando dizem “embaixadora do fado”, digo: “não sou embaixadora coisa nenhuma”. Aliás, há uma frase que se escreve muito acerca de mim, porque tanto me diziam que eu era a nova rainha do fado que eu disse: “não sou monárquica, sou anarquista”. Rainha do fado só há a Amália e se alguma coisa eu fosse seria a anarquista do fado. E aquilo colou e pegou. Eu não me coloco em sítio nenhum, ainda por cima o mundo do fado hoje está muito habitado, ao mesmo tempo está confuso, tem um lado bom, mas ao mesmo tempo há muita banalização e quando é assim vou dar uma volta. Foi o que eu fiz quando o fado começou a ficar na moda, fui fazer um disco inspirado em Carlos Paredes [em 2003]. Eu vou e volto.

Prefere mover-se contra a corrente?
Não, não é nada disso. Não sou contra nada, sou a favor de mim, eu vou na minha corrente. Faço o meu caminho, Tenho a minha essencialidade artística, a minha individualidade, se isso num país conservador é considerado uma agressão, tenho muita pena. Mas eu respeito toda a gente, tenho amizades no mundo do fado, vou às casas de fado. A Maria da Fé diz: “A Mísia é como nós, só que se veste diferente”. O Pedro Moutinho, temos a melhor relação do mundo, adoramo-nos. Agora não me podem obrigar a fazer as coisas como os outros, faço como quiser. Não sei o que vou fazer no futuro, não tenho nada planificado.

O facto de ser filha de mãe espanhola, teve influência na sua personalidade?
Na minha personalidade tem, tenho muitas coisas, sou uma pessoa afirmativa, sou muito espontânea, muito comunicativa, embora conheça alguns portugueses que são assim, mas não são a maioria. Acho que essa parte pode vir da minha mãe espanhola, é possível.

Portugal ainda é um país conservador?
É, Portugal é um país conservador. Acho que ainda é conservador, embora esteja a ficar mais cosmopolita. Mas as coisas em Portugal acontecem devagar, o que é bom e é mau.


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