Carta de Amália Rodrigues ao Século Ilustrado, 1966


«Estou tão cansada de que as pessoas falem de mim por falar! Há 26 anos que canto e tem sido sempre assim. Nunca me aceitaram como sou, nunca me quiseram ver com verdade. E era fácil. Sou apenas uma mulher simples, tímida, a quem as coisas aconteceram sempre sem as ter procurado. Nunca quis nada na vida. Nem triunfos, nem glórias, nem grandes coisas. Para quê? Que significa isto, realmente? E por nunca ter desejado nada não me deixei prender pelo que de bom, exteriormente, me tem acontecido. Até com o dinheiro é assim. Quase todas as pessoas vivem preocupadas com ele. Eu passei muitas dificuldades mas a partir de uma altura comecei a ganhar facilmente e o dinheiro para mim perdeu todo o significado.
Hoje não tenho medo de envelhecer. Se tem de ser assim aceito-o naturalmente. Nem medo de morrer. Nem de fracassar. Estou numa situação em que aceito tudo. Felizmente, sou uma mulher lúcida e isso ajuda.
Muitas vezes pensei retirar-me, mas nunca o fiz realmente. O maior espaço de tempo que estive sem cantar foram cinco meses, o que não é bastante para enfrentar a chamada crise de adaptação experimentada pelos que se retiram. Se o fizesse não sei se sofreria. Canto por instinto, por necessidade, como respiro. Nunca fiz nada para ser uma grande artista. Nada. As coisas aconteceram-me […]. Fico triste quando dizem que triunfei porque fui ajudada por influências políticas… Como seria isso possível? Através dos convites que me fizeram, e fazem, para cantar em embaixadas e festas oficiais? Mas a essas actuações não costumas ir os grandes empresários do Mundo e convites desse género têm sido feitos a muitos outros portugueses […].
Às vezes ponho-me a pensar que as pessoas são muito torcidas e não entendem que não haja outros que o não sejam… Não entendem que possa haver gente que não se preocupa com o acidental, o exterior, o material, o acessório.
Durante toda a minha vida tenho sido tratada na minha terra duma maneira injusta. Acusam-me de actividades políticas, ilegalidades, fazem-me passar humilhações… e porquê? Eu que sou estúpida, ridícula, infantil, tenho como paga o ser alvo de pequenas-grandes crueldades. Ainda há tempos vinha, ansiosa, de França, por almoçar em Elvas, em terra portuguesa. Andámos horas estafantes, o meu marido, os meus acompanhantes, no carro cheio de pó e de tralha. Pois ao chegarmos à fronteira portuguesa obrigaram-me a tirar as malas, a abri-las, e isso porque tinham recebido postais anónimos dizendo que eu era contrabandista.
Ao cantar tenho que me divertir também, porque de contrário sinto-me ridícula ante aquela gente que me ouve. Vivo de emoções, de nervos. Choro desalmadamente com um romance barato, identifico-me, por dentro, com os poetas que são desgraçados, porque eles é que estão certos. Comove-me uma pequena flor abandonada mas uma grande manifestação deixa-me indiferente.
E sei fugir. Pois é. Quando as coisas se tornam insuportáveis, sem sentido, fujo. Vou para uma Quinta que tenho no Alentejo e aí passo horas que me fazem um bem enorme. Ponho-me à janela a tomar chá e a comer pão (muitas vezes de dois dias, porque nem sempre se consegue pão fresco no Alentejo) e a olhar a terra, as árvores, o mar, ao longe, as pessoas que passam, os animais, e sinto, de súbito, uma felicidade muito íntima por estar viva, por aquela terra ser minha. É a única coisa que me dá alegria possuir: a terra. Vou para os campos de manhã, meto as mãos na terra, trato das batatas, rego, cuido das flores… sinto uma ternura imensa por aquilo. E eu que nunca liguei importância às coisas materiais sou capaz de fazer tudo só para ir recolher uma batata perdida. Lá no Alentejo, sinto-me enraizada e feliz.
Mas poucos dias posso estar assim. Há “outro” mundo… Pego nas malas e tenho de cumprir contratos, de cantar, de ir aos mais diversos países. Depois é com a maior esperança que regresso.
Perguntam-me, às vezes, como me defino. Sou o chamado pobre diabo a quem acontecem muitas coisas sem ter culpa nenhuma. E que se aflige por não desejar nada da vida, por sentir – sem que o consiga evitar – uma sensação muito grande de vazio, de vazio…»
O Século Ilustrado, Lisboa, 9 de Julho de 1966