Carta de Amália Rodrigues ao Século Ilustrado, 1966
“Uma sensação muito grande de vazio, de vazio…” uma carta de Amália em «O Século Ilustrado», em Julho de 1966.
«Estou tão cansada de que as pessoas falem de mim por falar! Há 26 anos que canto e tem sido sempre assim. Nunca me aceitaram como sou, nunca me quiseram ver com verdade. E era fácil. Sou apenas uma mulher simples, tímida, a quem as coisas aconteceram sempre sem as ter procurado. Nunca quis nada na vida. Nem triunfos, nem glórias, nem grandes coisas. Para quê? Que significa isto, realmente? E por nunca ter desejado nada não me deixei prender pelo que de bom, exteriormente, me tem acontecido. Até com o dinheiro é assim. Quase todas as pessoas vivem preocupadas com ele. Eu passei muitas dificuldades mas a partir de uma altura comecei a ganhar facilmente e o dinheiro para mim perdeu todo o significado.
Hoje não tenho medo de envelhecer. Se tem de ser assim aceito-o naturalmente. Nem medo de morrer. Nem de fracassar. Estou numa situação em que aceito tudo. Felizmente, sou uma mulher lúcida e isso ajuda.
Muitas vezes pensei retirar-me, mas nunca o fiz realmente. O maior espaço de tempo que estive sem cantar foram cinco meses, o que não é bastante para enfrentar a chamada crise de adaptação experimentada pelos que se retiram. Se o fizesse não sei se sofreria. Canto por instinto, por necessidade, como respiro. Nunca fiz nada para ser uma grande artista. Nada. As coisas aconteceram-me […]. Fico triste quando dizem que triunfei porque fui ajudada por influências políticas… Como seria isso possível? Através dos convites que me fizeram, e fazem, para cantar em embaixadas e festas oficiais? Mas a essas actuações não costumas ir os grandes empresários do Mundo e convites desse género têm sido feitos a muitos outros portugueses […].
Às vezes ponho-me a pensar que as pessoas são muito torcidas e não entendem que não haja outros que o não sejam… Não entendem que possa haver gente que não se preocupa com o acidental, o exterior, o material, o acessório.
Durante toda a minha vida tenho sido tratada na minha terra duma maneira injusta. Acusam-me de actividades políticas, ilegalidades, fazem-me passar humilhações… e porquê? Eu que sou estúpida, ridícula, infantil, tenho como paga o ser alvo de pequenas-grandes crueldades. Ainda há tempos vinha, ansiosa, de França, por almoçar em Elvas, em terra portuguesa. Andámos horas estafantes, o meu marido, os meus acompanhantes, no carro cheio de pó e de tralha. Pois ao chegarmos à fronteira portuguesa obrigaram-me a tirar as malas, a abri-las, e isso porque tinham recebido postais anónimos dizendo que eu era contrabandista.
Ao cantar tenho que me divertir também, porque de contrário sinto-me ridícula ante aquela gente que me ouve. Vivo de emoções, de nervos. Choro desalmadamente com um romance barato, identifico-me, por dentro, com os poetas que são desgraçados, porque eles é que estão certos. Comove-me uma pequena flor abandonada mas uma grande manifestação deixa-me indiferente.
E sei fugir. Pois é. Quando as coisas se tornam insuportáveis, sem sentido, fujo. Vou para uma Quinta que tenho no Alentejo e aí passo horas que me fazem um bem enorme. Ponho-me à janela a tomar chá e a comer pão (muitas vezes de dois dias, porque nem sempre se consegue pão fresco no Alentejo) e a olhar a terra, as árvores, o mar, ao longe, as pessoas que passam, os animais, e sinto, de súbito, uma felicidade muito íntima por estar viva, por aquela terra ser minha. É a única coisa que me dá alegria possuir: a terra. Vou para os campos de manhã, meto as mãos na terra, trato das batatas, rego, cuido das flores… sinto uma ternura imensa por aquilo. E eu que nunca liguei importância às coisas materiais sou capaz de fazer tudo só para ir recolher uma batata perdida. Lá no Alentejo, sinto-me enraizada e feliz.
Mas poucos dias posso estar assim. Há “outro” mundo… Pego nas malas e tenho de cumprir contratos, de cantar, de ir aos mais diversos países. Depois é com a maior esperança que regresso.
Perguntam-me, às vezes, como me defino. Sou o chamado pobre diabo a quem acontecem muitas coisas sem ter culpa nenhuma. E que se aflige por não desejar nada da vida, por sentir – sem que o consiga evitar – uma sensação muito grande de vazio, de vazio…»
Hoje não tenho medo de envelhecer. Se tem de ser assim aceito-o naturalmente. Nem medo de morrer. Nem de fracassar. Estou numa situação em que aceito tudo. Felizmente, sou uma mulher lúcida e isso ajuda.
Muitas vezes pensei retirar-me, mas nunca o fiz realmente. O maior espaço de tempo que estive sem cantar foram cinco meses, o que não é bastante para enfrentar a chamada crise de adaptação experimentada pelos que se retiram. Se o fizesse não sei se sofreria. Canto por instinto, por necessidade, como respiro. Nunca fiz nada para ser uma grande artista. Nada. As coisas aconteceram-me […]. Fico triste quando dizem que triunfei porque fui ajudada por influências políticas… Como seria isso possível? Através dos convites que me fizeram, e fazem, para cantar em embaixadas e festas oficiais? Mas a essas actuações não costumas ir os grandes empresários do Mundo e convites desse género têm sido feitos a muitos outros portugueses […].
Às vezes ponho-me a pensar que as pessoas são muito torcidas e não entendem que não haja outros que o não sejam… Não entendem que possa haver gente que não se preocupa com o acidental, o exterior, o material, o acessório.
Durante toda a minha vida tenho sido tratada na minha terra duma maneira injusta. Acusam-me de actividades políticas, ilegalidades, fazem-me passar humilhações… e porquê? Eu que sou estúpida, ridícula, infantil, tenho como paga o ser alvo de pequenas-grandes crueldades. Ainda há tempos vinha, ansiosa, de França, por almoçar em Elvas, em terra portuguesa. Andámos horas estafantes, o meu marido, os meus acompanhantes, no carro cheio de pó e de tralha. Pois ao chegarmos à fronteira portuguesa obrigaram-me a tirar as malas, a abri-las, e isso porque tinham recebido postais anónimos dizendo que eu era contrabandista.
Ao cantar tenho que me divertir também, porque de contrário sinto-me ridícula ante aquela gente que me ouve. Vivo de emoções, de nervos. Choro desalmadamente com um romance barato, identifico-me, por dentro, com os poetas que são desgraçados, porque eles é que estão certos. Comove-me uma pequena flor abandonada mas uma grande manifestação deixa-me indiferente.
E sei fugir. Pois é. Quando as coisas se tornam insuportáveis, sem sentido, fujo. Vou para uma Quinta que tenho no Alentejo e aí passo horas que me fazem um bem enorme. Ponho-me à janela a tomar chá e a comer pão (muitas vezes de dois dias, porque nem sempre se consegue pão fresco no Alentejo) e a olhar a terra, as árvores, o mar, ao longe, as pessoas que passam, os animais, e sinto, de súbito, uma felicidade muito íntima por estar viva, por aquela terra ser minha. É a única coisa que me dá alegria possuir: a terra. Vou para os campos de manhã, meto as mãos na terra, trato das batatas, rego, cuido das flores… sinto uma ternura imensa por aquilo. E eu que nunca liguei importância às coisas materiais sou capaz de fazer tudo só para ir recolher uma batata perdida. Lá no Alentejo, sinto-me enraizada e feliz.
Mas poucos dias posso estar assim. Há “outro” mundo… Pego nas malas e tenho de cumprir contratos, de cantar, de ir aos mais diversos países. Depois é com a maior esperança que regresso.
Perguntam-me, às vezes, como me defino. Sou o chamado pobre diabo a quem acontecem muitas coisas sem ter culpa nenhuma. E que se aflige por não desejar nada da vida, por sentir – sem que o consiga evitar – uma sensação muito grande de vazio, de vazio…»
O Século Ilustrado, Lisboa, 9 de Julho de 1966
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