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Camané: "Os meus amigos gozavam comigo por cantar o fado"

Interviews - Março 16, 2019
O fadista esteve ontem no Luxemburgo, com temas de Alfredo Marceneiro e não só. Nesta entrevista fala do seu percurso, de como é estar em palco e de um Portugal melhor nos últimos anos.

Voltou ao Luxemburgo para atuar numa sala onde já esteve em 2007: que memórias guarda do público?

Muito boas. Esta é a quarta vez que vou e foi sempre fantástico. Algumas vezes atuei mais para público luxemburguês e é sempre um prazer enorme estar aí, rever algumas pessoas e o país que acho muito bonito com uma arquitetura de que gostei imenso.

É por ser uma das suas referências, como Amália e Carlos do Carmo, que resolveu fazer um disco com fados de Alfredo Marceneiro?

É também por isso, mas sempre cantei Marceneiro como todos os grandes fadistas que são minhas referências. Só ao fim de 30 anos de fados me lembrei que devia cantar aqueles que são grandes referências e que ouvi pela primeira vez quando tinha sete ou oito anos. Foi um prazer enorme cantar estes fados com aquelas letras – algumas transportam-nos para vivências que já não fazem parte dos dias de hoje; outros são intemporais, têm uma história, há coisas que se repetem na vida das pessoas e nunca são ultrapassadas. 



Não o conheceu bem, mas cruzou-se com ele: como descreveria Marceneiro?

Estive numa noite de fados, quando tinha uns 11 ou 12 anos, de homenagem ao Marceneiro numa casa de fados chamada Arreda, em Cascais. Estava uma série de pessoas do fado como a Amália, o Carlos Conde, poeta que escrevia para o Marceneiro, entre outros. Nessa noite, estive sentado à mesa e tirei uma fotografia com a Amália, mas tive vergonha de me aproximar do Marceneiro. Passados uns anos, foi-me apresentado no Bairro Alto e tive um prazer enorme em conhecê-lo, disse-lhe que era um prazer enorme cantar os fados dele e que dali por 50 ou 100 anos ainda seriam cantados com outras letras e ele ficou super-contente com isso, mesmo que outros já lhe tivessem dito o mesmo. E cantava os fados dele, como o “Bailado”, o “Fado Cravo”, os fados que ele compôs e são fantásticos, todos os fadistas cantavam o fado bailado com letras diferentes.

Consegue aperceber-se da diferença das reações à música consoante as nacionalidades do público?

Existe alguma diferença, um conhecimento e uma noção diferente da mensagem quando há mais portugueses, mas a música ultrapassa a barreira da língua. Fiz há pouco tempo uma tournée pela Bélgica com cinco concertos em que terão ido no máximo 50 portugueses. Mas a emoção passa na mesma, eu também me emocionava quando ouvia coisas que não percebia em miúdo. É sempre fantástico! É raro cantar um tema em francês ou inglês só para as pessoas perceberem porque elas ficam emocionadas mesmo com aquilo que canto só na minha língua.

Como tem sido a experiência de trabalhar com José Mário Branco como produtor, ele que aprendeu a gostar de fado com Marceneiro?

O Zé Mário não gostava de fado, mas a Manuela de Freitas incutiu-lhe a ideia de que tinha de ouvir tudo e, através do Marceneiro, do Carlos do Carmo e da Amália, o Zé acabou por gostar. Depois isso foi muito útil no trabalho porque tem uma forma de entender o fado como música autêntica com a qual é preciso ter cuidado para não perder a sua essência e autenticidade. É um músico com bom gosto excelente e conseguimos criar sem desvirtuar a minha forma de estar no fado.

Lembra-se do momento em que o fado entrou na sua vida?

Estava doente em casa com sete ou oito anos, tinha uns discos do Sinatra, do Aznavour, dos Beatles, e lembro-me que comecei a ouvir e passei para os de fado. O meu bisavô e o meu avô cantavam fado, o meu pai tinha uma coleção de discos em casa e, tal como a minha mãe, trauteava uns fados. Comecei a ouvir e assimilei nessa altura as músicas do fado nacional, comecei a cantar e a repetir o que ouvia. Esse foi o primeiro contacto, depois houve uma vivência e um crescimento do fado com a chegada da adolescência em que frequentava mais casos de fado, a cantar e a tomar a decisão de fazer do fado a minha vida. `

Gosta da evolução do fado nos últimos anos?

Como em toda a música, há coisas boas e más. A evolução está a ser feita de dentro para fora, são as pessoas do fado que conseguem fazê-lo evoluir. É o mesmo que sucede com o rock, os blues, o tango, o flamenco: quando soam, têm de soar àquilo que é. Se for com essa autenticidade, excelente e é o que tem acontecido em muitas coisas, levando a que o fado tenha voltado a fazer parte da vida das pessoas. Fico muito contente quando surgem pessoas novas que fazem coisas boas.

Ainda tem dificuldade em dizer que é fadista?

Hoje em dia já não é. Ser fadista é cantar um determinado tipo de música que tem a ver com a música popular, urbana, de Lisboa e isso implica certas características que só os fadistas têm. Cresci no meio do fado, a ouvir e a estar com as pessoas, tornei-me fadista com o tempo porque, se é algo que nasce com as pessoas, depois é preciso trabalhar, passar pela aprendizagem e fazer escolhas.

Nunca pensou ser outra coisa?

Houve ali fases da minha adolescência em que, como ouvia, gostava e cantava outros géneros de música, pensei noutras coisas. Mas era engraçado que os meus amigos diziam todos que, quando eu cantava, tinha uma forma de acentuar as palavras e as frases que tinham mais a ver com o fado. Às vezes cantava uma música de rock ou portuguesa e eles diziam que logo: “Parece que estás a cantar fado!”. Não me libertei disso e ainda bem, porque depois tive vários convites para projetos diferentes por ter esta forma de cantar. Por exemplo, o dos Xutos, quando cheguei à EMI, ou o dos Humanos, com a Manuela Azevedo e o David Fonseca sobre as músicas do Variações. Foi uma escolha difícil, porque naquela altura os meus amigos gozavam comigo na rua por ser fadista! Apanhava o comboio em Oeiras para ir até às casas de fado em Lisboa e, cada vez que via um guitarrista, fugia para não ficar associado àquilo. Só me dava com eles todos quando estávamos na casa de fados. Não ouvi fado com os meus amigos, só o fazia em casa e baixinho para ninguém ouvir. E ainda me ficou um pouco disso porque, quando ouço outro tipo de música no carro, ponho alto; se estiver a ouvir fado vai baixinho para ninguém se aperceber...

Tem saudades de cantar nas casas de fado do Bairro Alto?

Não, encontrei uma forma de estar no fado e na vida. Era tudo muito tarde, agora faço um espetáculo que acaba às 11 da noite, já não preciso de ir às três ou quatro da manhã para casa, já tenho 52 anos e não me apetece andar aí na noite. Se tivesse de voltar a cantar nas casas de fado, tudo bem, mas encontrei uma forma que me dá o privilégio de fazer aquilo de que gosto num palco. Às vezes sabe-me bem conviver e estar nas casas de fado a ouvir alguém, mas é no palco a cantar o que aprendi nas casas de fado que me sinto melhor.

Ainda se sente mais inquieto em estúdio do que no palco?

Sim, as pessoas fazem discos para depois fazerem espetáculos ao vivo e penso que, em certo sentido, isso é um bocado errado, as coisas deviam ser rodadas muitas vezes antes de entrar em estúdio e gravar. Ali ainda se está um pouco à procura das coisas, não há muito tempo para gravar e devia haver. Quando faço o disco e me ouço estou sempre atento aos defeitos, não consigo ter prazer; quando vou para o palco é sempre na perspetiva de melhorar o que fiz no estúdio e sinto motivação e prazer nisso. Mas as coisas melhoraram e já existe mais tempo e disponibilidade para o estúdio e até se roda mais. Nesta altura, além da que faço com o meu disco, estou a fazer uma tournée com o Mário Laginha. Começámos no Porto, estivemos em Águeda, irei a Famalicão no dia a seguir ao concerto no Luxemburgo, com um reportório que iremos gravar no final do verão. E o último concerto será no dia dos meus anos, a 20 de dezembro, no Coliseu em Lisboa. E o Laginha faz também outra tournée mais clássica com o Pedro Burmester. Isto permitirá fazer um disco diferente com um grande pianista e músico depois de ter cantado uma data de vezes ao vivo.

É isso que retira das colaborações feitas até agora, assumindo um lado camaleónico em que revela diferentes identidades musicais?

Com o Mário é diferente, porque estamos a fazer um espetáculo de fado em que ele toca com inspiração da guitarra portuguesa de uma forma incrível. As outras colaborações foram casos pontuais, já tinha feito uma outra colaboração com o Mário e o Bernardo Sassetti, falecido há uns anos, em que eram dois pianos em vez da guitarra e foi fantástico. Nas outras houve diferentes registos musicais e foi uma aprendizagem importante.

O que costuma ouvir?

Um pouco de tudo, até hip hop de que gosto imenso! É sempre um processo de descoberta ou ir ouvir os cantores de que gosto como o Brel, o Sinatra, o Aznavour, o Tony Bennett, o James Brown, os Beatles, os Rolling Stones, e depois ir buscar coisas novas que estão a acontecer agora e gostar imenso. Mas também jazz, música clássica, ouço tudo.

Consegue imaginar a sua vida sem cantar e sem música?

Não consigo mesmo, não sei o que iria fazer. Às vezes penso nisso e em ter qualquer coisa, mesmo nos intervalos do meu trabalho, por vezes é difícil. Mas tenho aprendido outras coisas, vou lendo, ganho hobbies e faço coisas diferentes que me fazem crescer e não ficar obcecado com o trabalho.

Para lá do fado, como analisa o país nos últimos anos em termos políticos e sociais com o atual Governo?

Gosto mais deste Portugal, porque há muitas coisas que estão a melhorar para as pessoas. Mas há muito a fazer, sobretudo nas questões sociais e no modo como as pessoas lidam umas com as outras. As discussões em relação a temas como a violência doméstica, o racismo, a xenofobia estão a acontecer e ainda bem porque são muito importantes para que as pessoas vivam melhor com as suas diferenças. É preciso melhorar a qualidade de vida das pessoas em Portugal, mas os últimos anos mostraram melhorias.


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