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Mariza: " Eu não me sentia dali, o fado foi a forma de me integrar no bairro"

Entrevistas - Abril 01, 2019
Só canta o que sente. Só assim se acha capaz de ir para o palco. Para ela essa função pressupõe um diálogo em que dá e recebe.

Começou a cantar fado aos cinco anos, de xaile negro vestido. Essas primeiras notas foram na taberna da família, Zalala, o nome de uma praia de Moçambique. Viveu nesse país até aos três anos. Altura em que, depois da revolução e da independência, a família veio viver na Mouraria. O pai era um apaixonado do fado. Mas essa canção com nome de destino surgiu na vida de Mariza como uma forma da família, vinda de África, se integrar num bairro que os via como estrangeiros. O fado seria a língua franca para viver num novo país.

O destino transformou-o numa espécie de tapete voador que leva a voz da cantora aos vários palcos do mundo. Só em 2018 percorreu mais de 95 mil quilómetros. Longe vão os tempos em que entoou "Os putos", de Carlos do Carmo, aos sete anos, na primeira vez que cantou numa casa de Fados. O fim de semana passado esteve no Luxemburgo para dois concertos na Philharmonie. Na sua atuação nota-se para além de um imenso profissionalismo e entrega dos seus músicos e da cantora, a capacidade invejável de depois de 20 anos de carreira parecer ter uma paixão intacta pelo que faz.

Esta capacidade de interagir com o público, de o incluir no espetáculo, é uma capacidade ganha ao longo de 20 anos de carreira?

Não. Eu acho que os concertos são momentos de dar e receber. Música é isso. Não consigo – não sei como é com outros artistas –, não imagino um concerto em que eu não consiga dar. Mas depois, se as pessoas não souberem receber com palmas e carinho, também não existe empatia. Vamos supor que o público hoje era muito tímido. Aqueles públicos mais reservados que não reagem tanto e não batem tantas palmas, neste caso o concerto todo ia-se tornar mais tímido. Se eu não a sentir, não consigo dar da mesma forma.

A música para mim tem uma verdade, mas eu não consigo cantar aquilo que não sinta. Já me chegaram textos muito bem escritos por pessoas famosas, mas se eu não conseguir perceber o que lá está, não consigo cantar aquelas letras. Se não faz parte da minha história e da minha verdade, do meu quotidiano, do meu dia a dia e vivências, então não consigo cantar. E o estar em palco com essa verdade do dar e receber olhando as pessoas nos olhos. Se isso não existir, eu não consigo de facto cantar.

Estava a falar da verdade da música. Mas sente tudo o que canta. É quase a frase do Pessoa sobre o poeta ser um fingido que finge a dor que deveras sente.

É engraçado, por que é o que estávamos a falar. Quando parto para um disco tenho 40 poemas e letras para a escolher, o que é extremamente difícil. Mas todas elas tinham alguma coisa com que me identificava e dizia algo em relação à minha vida. Se assim não fosse eu não conseguiria cantar e transmitir algo.

Li numa entrevista sua que se deixasse de cantar voltaria calmamente à taberna dos seus pais, na Mouraria, onde cantou na sua infância, a servir alguns copos de vinho. Tirando o facto de essa taberna não existir e a Mouraria estar irreconhecível, qual é hoje o seu mundo e para qual poderia voltar?

Eu continuo a ir às tabernas. Às vezes estou na Tasca do Chico e ponho-me atrás do balcão a servir imperiais, porque estou entre amigos e me dá vontade. E chegam clientes, até estrangeiros, que me abordam: "você não é....", a que eu respondo rapidamente, "não, eu trabalho aqui. Sou muito parecida mas trabalho aqui". O meu mundo atual é como toda a gente sabe um mundo de muitas viagens e onde piso grandes palcos, mas ao mesmo tempo adoro voltar à minha Lisboa e ter a oportunidade de reconhecer as ruas e as pessoas e cantar numa pequena casa de fado. Ainda faço isso.

Como é possível que o fado, partindo de uma zona tão pequena num país tão pequeno, na sua voz e de outros consiga ultrapassar as fronteiras e as barreiras das línguas e chegue a gente tão diferente. Disse uma vez, está citado no excelente programa da Philarmonie que distribuíram esta noite, que “o fado é um ferida que dói mas dá prazer”. Apesar de parecer uma definição do sado-masoquismo é ao mesmo tempo uma definição possível do fogo que arde sem se ver e deste contentamento descontente que é o amor. É por o fado cantar isso que gente de vários países e culturas o consegue perceber?

Quando eu tinha cinco anos não cantava estes temas tão profundamente do amor. Mas depois a vida vai-nos transformando e vamos ganhando uma bagagem. É interessante que o fado, sem dúvida, fala dos sentimentos do ser humano. E esses sentimentos, apesar de sermos todos diferentes, são comuns a toda a gente. O amor, a paixão, o descontentamento, a morte, tudo isso faz parte da vida e é vivido por cada pessoa à sua maneira. Por isso, cada pessoa que esteve hoje aqui entendeu cada tema à sua maneira.

Se lhes perguntar, todos eles a partir da mesma canção vivenciaram sentimentos diferentes que têm que ver com as suas vivências. Quantas vezes canto algo e alguém me diz: "ai meu Deus aquilo era tão triste e transportou-me, era um fado completo", e outra pessoas perante o mesmo tema, pergunta-me: "aquilo era bossa nova?" (risos). Tão díspar e tão diferente: as pessoas sentem as coisas à sua maneira. Lêem as canções com a sua vida. Não digo que o fado tenha chegado a tanta gente, acho que o sentimento que o fado transmite consegue chegar a muita gente.

O fado descobriu antes de outros géneros musicais que a infelicidade dá melhores canções que a felicidade?

A infelicidade, a tristeza, a melancolia dá muito melhores canções que o contentamento e a felicidade. Quando escrevo – pela primeira vez aparece um disco com palavras que eu própria escrevi -, devo dizer que só escrevo quando estou triste e melancólica. Se estiver alegre nem sequer olho para o caderno e nem sequer escrevo.

Vai viver a vida...

Vou viver a vida feliz e contente e sair com os amigos. Quando estou triste, escrevo e ponho no papel tudo o que dói no peito.

Disse no concerto que a vida não era fácil. Mesmo a sua vida foi bem sucedida?

Mas não foi fácil. Foi muito prazenteiro, mas não disse que foi fácil. Há 20 anos nenhuma editora queria uma cantora de fado, hoje todas querem. Mas há 20 anos ninguém queria. Depois, fazer tournées era coisa uma impensável. Há 20 anos fui a sítios quase de borla para mostrar o que fazia. A princípio não queria, mas quando percebi que gostava não larguei mais.

Mas houve uma altura que deixou de cantar o fado.

Sempre ouvi o fado. Comecei a cantá-lo aos cinco anos.

Mas a certa altura cantou jazz e outros géneros. Não foi?

Sim, mas sempre ouvi fado e nunca o larguei. O meu pai foi sempre um apaixonado do fado. Em casa ouvia-se fado aos quatro cantos. No meu bairro toda a gente cantava fado e ouvia fado. Mas eu, a certa altura não o cantava, porque sou africana e nasci em África. E quando fui morar para a Mouraria, a ideia do meu pai de haver fado na taberna foi para nos aproximar das pessoas. Nós éramos os forasteiros. Hoje fala-se na Mouraria intercultural, mas há 40 anos, o meu pai, português, era visto como um retornado e a minha mãe, africana, era vista como "a preta". Portanto, não era fácil.

O meu pai achava que o fado era a forma de nos integrarmos no bairro e de conhecermos mais gente, por isso começou a fazer sessões de fadoao fim de semana na taberna. E eu comecei a ouvir, até que um dia cantei, e há uma pessoa que comentou que eu cantava de maneira "diferente". E quando se é adolescente e alguém diz que somos "diferentes", a gente não percebe aquilo como um elogio. Pensamos que estão a dizer mal. Sentia que não pertencia ali, que vinha de fora, apesar de lá viver desde os três anos. Mas achei que não era boa o suficiente. E foi assim que eu deixei, aos 16 anos, de cantar o fado. Mas continuava a ouvir e estava todos os fins de semana nas fadistices lá do bairro. Deixei de cantar durante algum tempo quando fizeram uma grande festa perto da casa da Severa. Eu cantei e fizeram esse comentário.

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