Pedro Moutinho: “As casas de fado só sobrevivem com este turismo, não é com os portugueses”
Interviews - Abril 12, 2019
"Um Fado ao Contrário" é o novo álbum de Pedro Moutinho e vai estar no palco do São Luiz, em Lisboa, esta sexta-feira. Desculpa para uma entrevista sobre a infância, os discos dos outros e a tradição.
Ao sexto disco de originais, Pedro Moutinho fez Um Fado ao Contrário. Ainda que isso não se traduza em reinvenções de temas clássicos do fado, que isso não lhe agrada propriamente. Com produção de Filipe Raposo – com quem trabalhou pela primeira vez – dá-nos antes um disco com canções menos óbvias, com menos tradição, sem a deixar de a utilizar, porque precisa sempre dela.
Faz 43 anos em novembro. Nasceu em Oeiras, onde chegou a fugir da mãe para ir com o avô, que trabalhava na Ucal, buscar leite às fazendas que na sua infância ainda existiam nos arredores de Lisboa. Cresceu a ouvir fado, numa família de pais fadistas-amadores, que geraram filhos fadistas-profissionais. Ainda não tinha dez anos quando mostrou a sua voz numa casa de fados do Estoril. Lugares que não eram para a sua idade, ainda que por lá passasse grande parte do seu fim-de-semana, à boleia dos pais, que não suportavam as suas birras.
Talvez tenha sido essa insistência que o fez ouvir discos e discos no quarto que dividia com Hélder Moutinho e com Camané, onde estava estacionada a aparelhagem e a coleção de vinis. Foi procurando mais e mais repertório. Foi sendo convidado mais e mais, ao ponto de ter desistido da escola, depois de ter ido à tropa. Passou pelo Coro de Santo Amaro de Oeiras, teve uma banda de covers que não chegou a ter nome e rendeu-se, por fim, ao fado, a única coisa que diz saber fazer na vida. Ou seja: venham de lá mais discos. E mais concertos, como aquele que esta sexta-feira, dia 12, acontece no São Luiz.
Se o fado fosse ao contrário, como é que seria? É possível fazer a imagem dessa ideia, o xaile seria colorido?
Acho que deixaria de ser fado. O fado é um género musical lindíssimo, mas muito simples ao mesmo tempo. Portanto, nesse sentido não pode ser ao contrário… não devia dizer isto numa entrevista sobre o Um Fado ao Contrário.
Estou a tramá-lo.
Quando digo na letra “canta-me um fado ao contrário” eu digo para ela “olha, faz as coisas de maneira diferente, da velha maneira não estava a resultar”. Quando dou este nome ao disco, essa opção está relacionada com o facto de este ser um disco com uma estreia do Filipe Raposo comigo na produção, e faço neste disco coisas diferentes, que nunca tinha feito, vários temas com piano, um tema com guitarra elétrica do André Santos, a percussão do Quiné Teles, acaba por ser um disco diferente. O conceito fazia sentido.
Antes de fazer o disco já tinha pensado em fazer algo bastante diferente?
Tinha sim. Sempre tive canções diferentes nos meus discos, mas também sempre fui das pessoas que mais fados tradicionais gravou, isso sempre me foi próximo e acabei por pensar que cheguei a esta altura da minha vida, que venho de um disco anterior que é se calhar o mais clássico dos discos que tenho e pensei que agora era para fazer diferente. Daí ter surgido o convite ao Filipe Raposo.
Com quem nunca tinha trabalhado.
Tinha feito uma ou outra coisinha com ele, gravámos há um ano e tal, antes de surgir esse convite, uma ópera em português para um programa de televisão. Quando falei com ele, disse-lhe que tinha carta branca para fazer aquilo que achava melhor em relação aos arranjos do temas. Ele gostou da ideia e gostou muito dos temas e as coisas acabaram por funcionar. Ele disse logo que não queria mexer nos quatro fado tradicionais que existem no disco, ou seja, não têm arranjo, são como são e é assim que gosto de pensar.
Não lhe agrada muito a ideia de reinventar o clássico, é isso?
Isso já está tão feito…
O direito ao tradicional ser tradicional. Parece que é preciso dar uma volta ao tradicional para que ele possa ser apreciado.
Exatamente.
Irrita-o, isso?
Sim, um bocado. Tento fazer as coisas da forma em que acredito, nem penso nessas coisas, como é que deviam ser as coisas, faço para mim a partir do gosto que tenho. É isso que tenho tentado passar para os discos. Mas sim, o fado tradicional já é tão bonito e tão bem feito assim que às vezes estar a mudar não vai acrescentar nada. É uma coisa muito autêntica, do momento, do que flui naquele instante.
Como é que foi escolher as canções para o disco?
Comecei a pensar no disco há um ano e meio e uma das primeiras conversas que tive foi com uma pessoa que trabalha comigo há muito tempo e que é uma das minhas melhores amigas, a Amélia Muge. Já tinha recebido um tema da Maria do Rosário Pedreira, o “Fado ao Contrário”, gostei muito, mas ainda não sabia se aquilo ia ser para um fado tradicional, porque estava em sextilhas. E em conversa a Amélia diz-me que já tinha pensado em alguns temas para mim, mas que gostava de musicar um tema da Maria do Rosário Pedreira e eu disse-lhe: “Amélia, já tenho esse tema”. Ela adorou o tema e passado uma semana já o tinha. Depois as coisas foram fluindo. Chegar à Márcia, por exemplo, foi muito engraçado porque foi por intermédio de um grande amigo: o MoMo. Às vezes sinto uma certa timidez para abordar as pessoas. Ele foi a ponte, e ela escreveu-me esta canção lindíssima, não é um fado, mas é um belo tema: “Força do Mar”.
No fundo este é um disco feito de cartas brancas.
Sim, acaba por ser, sim.
Então o Pedro é um homem tímido. Desde sempre?
Um bocado, há amigos que dizem que sou um falso tímido. E sim, talvez seja. Pode também estar misturado com uma certa insegurança, não te conheço de lado nenhum e de repente estou a ligar-te para me fazeres um tema. E depois há sempre aquela coisa de: e se depois eu não gosto?
Já lhe aconteceu?
Já. Acabei por explicar à pessoa que não era bem aquilo, uma falta de identificação com as palavras ou assim. Graças a Deus isso não acontece muito…
…porque o Pedro sabe a quem pedir.
Exatamente, é isso mesmo.
Quando é que se dá o seu primeiro contacto com o fado?
Lembro-me bem. A minha avó, coitada… não podia ficar sempre comigo, eu era uma peste quando era miúdo, fazia birras a toda hora porque gostava era de sair à noite e então os meus pais acabavam por me levar. Os meus pais eram amantes de fado, nunca se profissionalizaram, mas gostavam de cantar. Então, todos os fins-de-semana, o meu pai pegava na minha mãe e comigo e vínhamos para Lisboa. Perdeu-se muito isso, infelizmente, mas a esta hora, quatro da tarde, começava-se a cantar o fado nas coletividades, nas tascas, ao sábado e ao domingo.
Agora é mais à noite.
Sim, e havia várias coletividades com fado, semanalmente. E eu vinha de arrasto, já ouvia muito, gostava muito. E há um dia em que experimentei, no Morangueiro, uma casa de fados no Estoril. Aquilo ia das 16h ou 17h à meia-noite. E às vezes estendia-se, cheguei a estar lá às duas da manhã, mas nessa altura os meus pais juntavam as cadeiras e faziam uma caminha para eu dormir.
Aquela cama artesanal clássica.
Claro. Nessa altura já sabia uma ou duas letras, tirei o tom com os guitarristas e cantei. E correu bem, já tinha o bichinho dentro de mim e a partir daí comecei a aprender mais fados com o meu pai, a incluir mais repertório. E sempre que ia com eles acabava por cantar, mas tudo de uma forma muito natural, às vezes estava cansado e não me apetecia.
Então a sua avó ficava triste por não ficar consigo?
Às vezes, outras nem tanto. Hoje em dia os miúdos podem entrar nas casas todas de fado. Os meus pais gostavam muito de ir a uma casa de fado em Cascais que teve imenso sucesso nos anos 80, passaram por lá grandes fadistas, que era a Koppus Bar. E eu não podia entrar. Na altura mesmo os donos tinham medo. Houve um dia, que a minha avó não pôde ficar comigo, nem a minha tia, e os meus pais deixaram-me em casa de um casal amigo, epá a birra foi tanta que tiveram que me lá ir levar.
E entrou?
E entrei. E não se passou nada.
Em casa, também ouvia muito?
Sim, sobretudo fado. E depois por influência dos meus irmãos ouvia imenso música brasileira e rock, tínhamos imensos vinis. Dire Straits, Bryan Adams, Tina Turner, Pink Floyd, Bruce Springsteen, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, João Gilberto, entre outros. Tínhamos um quarto enorme, que era o quatro dos três. A aparelhagem e a estante dos discos estava lá. E sim, posso dizer que havia muito mais discos de fado do que de outros géneros, porque o meu pai, indo para as coletividades, comprava os discos todos, os grandes fadistas daquele tempo vendia os discos nas coletividades e nas casas de fado, além das lojas. Então sentava-me com o meu pai a ouvir discos de fado e a procurar repertório.
Nunca foi uma hipótese ir por um caminho que não o fado?
Tive as minhas experiências. Tive uma banda de covers na minha adolescência.
Como é que se chamava?
Não chegou a ter nome, não saímos da garagem.
Essas são as melhores bandas, que nem chegam ao primeiro EP.
Ensaiámos três temas, o “Heartbreaker”, dos Led Zeppelin, o “Sweet Child O’Mine”, dos Guns’n’Roses, e o “Nothing Else Matters”, dos Metallica. Um baterista, um baixista, um guitarrista e eu era a voz. E aquilo foi mesmo muito divertido, mas só que não deu… até esses amigos da escola e de rua, até eles acabavam por ir aos fins-de-semana ouvir-me cantar fados.
O fado sobrepôs-se.
Sim, claro, então quando tive a mudança de voz, talvez com 16 anos, comecei a mudar o meu repertório, a ouvir outros fados, lembro-me de estar nas aulas e de estar muito ansioso para que fosse fim-de-semana e eu fosse cantar os novos temas que tinha andado a aprender.
Diria que por ter sido um fadista bastante precoce, por ter tido contacto com poemas e autores complexos, fê-lo amadurecer antes dos outros?
Sim, talvez. Fez-me entender muita coisa, muito cedo. Ter algum cuidado e ter alguma consciência daquilo que é e daquilo que não é, acabei por me preocupar com muitas pessoas derivado ao facto de estar naquela família, existe um respeito muito grande por aquilo que faço.
Há essa ideia de legado.
Exatamente.
Isso também o pode ter feito perder algumas coisas. Ou não sente isso?
Não sinto isso. Sinto que só ganhei. E continuo a ganhar. É muito bom ter pessoas que me são tão próximas a poder dar-me as suas opiniões sobre aquilo que estou a fazer.
E o facto da sua família estar tão ligada ao fado deve ter um duplo efeito. Ou seja, por um lado aquela ideia de que os pais não querem obrigar os filhos a seguir as suas pisadas, “atenção, filho, não tens que ser isto”, mas depois, com tanto contacto, para o filho deixa de fazer sentido ser outra coisa. É mais ou menos isto?
Para mim foi uma escola, mesmo. E quando entrei nessa escola, percebi: “vou fazer isto, é isto que me faz sentido”.
Se tivesse que dizer uma profissão que não fosse fadista, qual seria?
Nem sei. Nunca pensei nisso. E no outro dia até estava a falar com uns amigos… se um dia não fizer isto, não sei o que vou fazer.
Mas isto não está para acabar, pois não?
Não, não, mas perguntaram-me se tinha outras paixões. Sim, tenho, mas a nível profissional é isto, adoro cantar. É uma vida que não tem sido fácil, mas o fácil não tem muita piada.
Que outras paixões são essas?
Adoro viajar. Adoro estar com os amigos, é uma coisa que me preenche imenso. Agora descobri uma paixão nova, não percebo nada daquilo, mas faz-me bem: comecei a fazer boxe, há quase um ano.
Ai sim?
Sim, faz-me bem à cabeça, é uma forma de estar em forma, é limpar a cabeça, no fundo.
Já levou umas tareias valentes?
Não, ainda não estou na fase do combate. O mestre já me disse que ia entrar em competição, nos veteranos, mas nem estou preocupado com isso.
Nasceu em Oeiras. Como é que foram esses tempos, o que fazia por lá?
Nasci na Rua Cândido dos Reis, mas os meus pais já tinham um apartamento lá em cima, na zona da Figueirinha. Sempre fui um bocadinho rebelde em miúdo. Preguei um grande susto à minha família, com cinco anos. Tinha uma grande paixão pelo meu avô, e ele trabalhava na Ucal, andava com uma carrinha a percorrer as fazendas que ainda existiam nos arredores de Lisboa. Ele ia lá buscar o leite. Adorava ir com ele na carrinha, era uma aventura. E naquele dia a minha mãe disse-me que não podia ir. A minha mãe estava em casa, fugi pela janela, desci a rua toda Cândido dos Reis até à casa dos meus avós e ele assim “o que é que estás aqui a fazer?” e antes as pessoas viram-me a passar na rua e perguntavam o que é que estava ali a fazer. Mas pronto, depois disse ao meu avô que a minha mãe me tinha deixado ir com ele e o meu avô coitado, passou-lhe ao lado. De repente a minha mãe percebe que não estou em casa… foi uma confusão, ligaram para os hospitais, para todo o lado. E a minha mãe lembrou-se que o meu avô costumava parar a carrinha em Barcarena e ir tomar um café em frente aos Bombeiros Voluntários. A minha mãe consegue o número telefone, lá ligou e lá lhe confirmaram que o meu avô ia comigo. Conclusão da história: o meu avô é que levou uma descompostura.
Clássico.
E eu não apanhei. Mas sim, a minha juventude foi muito fixe.
Havia esse ambiente bairrista, por ali?
Sim, sim, havia essa coisa e depois toda a gente conhecia os meus pais e os meus irmãos. E pronto, foi assim, aos 8 anos entrei no Coro Infantil do Santo Amaro de Oeiras, portanto cantei o “A Todos um Bom Natal”. Mas aprendi muito, sobretudo uma coisa essencial no fado: a dicção. Tem que se perceber o que está a ser dito.
Há pouco falava de estar nas aulas. Fez a escola até que ano?
Chumbei no décimo ano e na altura era obrigatório ir à tropa e tive mesmo de ir. E quando saí já tinha de ir estudar à noite, cheguei a frequentar as aulas à noite no secundário. Mas havia malta que já me contactava para ir cantar à noite nas casas de fado, era mesmo trabalho, comecei logo a cantar, fazia folgas de outros fadistas, foi tudo assim.
Atualmente, gostava de ter mais tempo para fazer outras coisas?
Ainda vou tendo, apesar de tudo.
É casado?
Não, sou solteiro.
O amor não ficou para trás?
Neste momento estou mais direcionado para a área profissional. Acho que é a melhor resposta que posso dar.
Politicamente correta. Vive em Lisboa?
Sim, há dois anos tive a oportunidade de vir para Lisboa. Estava em Oeiras, antes disso. Agora estou no Beato.
Uma zona ainda algo livre da gentrificação.
Tem dias.
O fado tem também muito que ver com Lisboa, com estas ruas. Como é que nesse sentido vê uma Lisboa com cada vez menos espaço, com preços cada vez mais altos?
Infelizmente está a acontecer. Por outro lado, acho que tinha que haver uma abertura, mas realmente o exagero e o aproveitamento das pessoas dentro da situação em que a cidade está, uma cidade que está na moda, isso preocupa-me. Não é possível arranjar casa, não é possível viver em Lisboa.
O fado, que sempre foi turisticamente muito ligado à ideia do ADN português e lisboeta, sofre muito com isto ou o fado até precisa desse turismo massificado?
O fado precisa disso. As casas de fado só sobrevivem com este turismo, não é com os portugueses. E isso é muito importante para mim e para as pessoas que ainda trabalham e frequentam as casas de fado. Sítios onde gosto de ir mesmo quando não estou a trabalhar, acaba sempre por ser uma festa.
Uma festa triste.
Não, não, aí é que está o engano. O fado é uma coisa lindíssima, mesmo que seja algo mais…
Depressivo?
Melancólico, eu diria melancólico, depressivo é uma coisa de cabeça e o fado é uma coisa do coração.
Faz 43 anos em novembro. Nasceu em Oeiras, onde chegou a fugir da mãe para ir com o avô, que trabalhava na Ucal, buscar leite às fazendas que na sua infância ainda existiam nos arredores de Lisboa. Cresceu a ouvir fado, numa família de pais fadistas-amadores, que geraram filhos fadistas-profissionais. Ainda não tinha dez anos quando mostrou a sua voz numa casa de fados do Estoril. Lugares que não eram para a sua idade, ainda que por lá passasse grande parte do seu fim-de-semana, à boleia dos pais, que não suportavam as suas birras.
Talvez tenha sido essa insistência que o fez ouvir discos e discos no quarto que dividia com Hélder Moutinho e com Camané, onde estava estacionada a aparelhagem e a coleção de vinis. Foi procurando mais e mais repertório. Foi sendo convidado mais e mais, ao ponto de ter desistido da escola, depois de ter ido à tropa. Passou pelo Coro de Santo Amaro de Oeiras, teve uma banda de covers que não chegou a ter nome e rendeu-se, por fim, ao fado, a única coisa que diz saber fazer na vida. Ou seja: venham de lá mais discos. E mais concertos, como aquele que esta sexta-feira, dia 12, acontece no São Luiz.
Se o fado fosse ao contrário, como é que seria? É possível fazer a imagem dessa ideia, o xaile seria colorido?
Acho que deixaria de ser fado. O fado é um género musical lindíssimo, mas muito simples ao mesmo tempo. Portanto, nesse sentido não pode ser ao contrário… não devia dizer isto numa entrevista sobre o Um Fado ao Contrário.
Estou a tramá-lo.
Quando digo na letra “canta-me um fado ao contrário” eu digo para ela “olha, faz as coisas de maneira diferente, da velha maneira não estava a resultar”. Quando dou este nome ao disco, essa opção está relacionada com o facto de este ser um disco com uma estreia do Filipe Raposo comigo na produção, e faço neste disco coisas diferentes, que nunca tinha feito, vários temas com piano, um tema com guitarra elétrica do André Santos, a percussão do Quiné Teles, acaba por ser um disco diferente. O conceito fazia sentido.
Antes de fazer o disco já tinha pensado em fazer algo bastante diferente?
Tinha sim. Sempre tive canções diferentes nos meus discos, mas também sempre fui das pessoas que mais fados tradicionais gravou, isso sempre me foi próximo e acabei por pensar que cheguei a esta altura da minha vida, que venho de um disco anterior que é se calhar o mais clássico dos discos que tenho e pensei que agora era para fazer diferente. Daí ter surgido o convite ao Filipe Raposo.
Com quem nunca tinha trabalhado.
Tinha feito uma ou outra coisinha com ele, gravámos há um ano e tal, antes de surgir esse convite, uma ópera em português para um programa de televisão. Quando falei com ele, disse-lhe que tinha carta branca para fazer aquilo que achava melhor em relação aos arranjos do temas. Ele gostou da ideia e gostou muito dos temas e as coisas acabaram por funcionar. Ele disse logo que não queria mexer nos quatro fado tradicionais que existem no disco, ou seja, não têm arranjo, são como são e é assim que gosto de pensar.
Não lhe agrada muito a ideia de reinventar o clássico, é isso?
Isso já está tão feito…
O direito ao tradicional ser tradicional. Parece que é preciso dar uma volta ao tradicional para que ele possa ser apreciado.
Exatamente.
Irrita-o, isso?
Sim, um bocado. Tento fazer as coisas da forma em que acredito, nem penso nessas coisas, como é que deviam ser as coisas, faço para mim a partir do gosto que tenho. É isso que tenho tentado passar para os discos. Mas sim, o fado tradicional já é tão bonito e tão bem feito assim que às vezes estar a mudar não vai acrescentar nada. É uma coisa muito autêntica, do momento, do que flui naquele instante.
Como é que foi escolher as canções para o disco?
Comecei a pensar no disco há um ano e meio e uma das primeiras conversas que tive foi com uma pessoa que trabalha comigo há muito tempo e que é uma das minhas melhores amigas, a Amélia Muge. Já tinha recebido um tema da Maria do Rosário Pedreira, o “Fado ao Contrário”, gostei muito, mas ainda não sabia se aquilo ia ser para um fado tradicional, porque estava em sextilhas. E em conversa a Amélia diz-me que já tinha pensado em alguns temas para mim, mas que gostava de musicar um tema da Maria do Rosário Pedreira e eu disse-lhe: “Amélia, já tenho esse tema”. Ela adorou o tema e passado uma semana já o tinha. Depois as coisas foram fluindo. Chegar à Márcia, por exemplo, foi muito engraçado porque foi por intermédio de um grande amigo: o MoMo. Às vezes sinto uma certa timidez para abordar as pessoas. Ele foi a ponte, e ela escreveu-me esta canção lindíssima, não é um fado, mas é um belo tema: “Força do Mar”.
No fundo este é um disco feito de cartas brancas.
Sim, acaba por ser, sim.
Então o Pedro é um homem tímido. Desde sempre?
Um bocado, há amigos que dizem que sou um falso tímido. E sim, talvez seja. Pode também estar misturado com uma certa insegurança, não te conheço de lado nenhum e de repente estou a ligar-te para me fazeres um tema. E depois há sempre aquela coisa de: e se depois eu não gosto?
Já lhe aconteceu?
Já. Acabei por explicar à pessoa que não era bem aquilo, uma falta de identificação com as palavras ou assim. Graças a Deus isso não acontece muito…
…porque o Pedro sabe a quem pedir.
Exatamente, é isso mesmo.
Quando é que se dá o seu primeiro contacto com o fado?
Lembro-me bem. A minha avó, coitada… não podia ficar sempre comigo, eu era uma peste quando era miúdo, fazia birras a toda hora porque gostava era de sair à noite e então os meus pais acabavam por me levar. Os meus pais eram amantes de fado, nunca se profissionalizaram, mas gostavam de cantar. Então, todos os fins-de-semana, o meu pai pegava na minha mãe e comigo e vínhamos para Lisboa. Perdeu-se muito isso, infelizmente, mas a esta hora, quatro da tarde, começava-se a cantar o fado nas coletividades, nas tascas, ao sábado e ao domingo.
Agora é mais à noite.
Sim, e havia várias coletividades com fado, semanalmente. E eu vinha de arrasto, já ouvia muito, gostava muito. E há um dia em que experimentei, no Morangueiro, uma casa de fados no Estoril. Aquilo ia das 16h ou 17h à meia-noite. E às vezes estendia-se, cheguei a estar lá às duas da manhã, mas nessa altura os meus pais juntavam as cadeiras e faziam uma caminha para eu dormir.
Aquela cama artesanal clássica.
Claro. Nessa altura já sabia uma ou duas letras, tirei o tom com os guitarristas e cantei. E correu bem, já tinha o bichinho dentro de mim e a partir daí comecei a aprender mais fados com o meu pai, a incluir mais repertório. E sempre que ia com eles acabava por cantar, mas tudo de uma forma muito natural, às vezes estava cansado e não me apetecia.
Então a sua avó ficava triste por não ficar consigo?
Às vezes, outras nem tanto. Hoje em dia os miúdos podem entrar nas casas todas de fado. Os meus pais gostavam muito de ir a uma casa de fado em Cascais que teve imenso sucesso nos anos 80, passaram por lá grandes fadistas, que era a Koppus Bar. E eu não podia entrar. Na altura mesmo os donos tinham medo. Houve um dia, que a minha avó não pôde ficar comigo, nem a minha tia, e os meus pais deixaram-me em casa de um casal amigo, epá a birra foi tanta que tiveram que me lá ir levar.
E entrou?
E entrei. E não se passou nada.
Em casa, também ouvia muito?
Sim, sobretudo fado. E depois por influência dos meus irmãos ouvia imenso música brasileira e rock, tínhamos imensos vinis. Dire Straits, Bryan Adams, Tina Turner, Pink Floyd, Bruce Springsteen, Chico Buarque, Caetano Veloso, Maria Bethânia, João Gilberto, entre outros. Tínhamos um quarto enorme, que era o quatro dos três. A aparelhagem e a estante dos discos estava lá. E sim, posso dizer que havia muito mais discos de fado do que de outros géneros, porque o meu pai, indo para as coletividades, comprava os discos todos, os grandes fadistas daquele tempo vendia os discos nas coletividades e nas casas de fado, além das lojas. Então sentava-me com o meu pai a ouvir discos de fado e a procurar repertório.
Nunca foi uma hipótese ir por um caminho que não o fado?
Tive as minhas experiências. Tive uma banda de covers na minha adolescência.
Como é que se chamava?
Não chegou a ter nome, não saímos da garagem.
Essas são as melhores bandas, que nem chegam ao primeiro EP.
Ensaiámos três temas, o “Heartbreaker”, dos Led Zeppelin, o “Sweet Child O’Mine”, dos Guns’n’Roses, e o “Nothing Else Matters”, dos Metallica. Um baterista, um baixista, um guitarrista e eu era a voz. E aquilo foi mesmo muito divertido, mas só que não deu… até esses amigos da escola e de rua, até eles acabavam por ir aos fins-de-semana ouvir-me cantar fados.
O fado sobrepôs-se.
Sim, claro, então quando tive a mudança de voz, talvez com 16 anos, comecei a mudar o meu repertório, a ouvir outros fados, lembro-me de estar nas aulas e de estar muito ansioso para que fosse fim-de-semana e eu fosse cantar os novos temas que tinha andado a aprender.
Diria que por ter sido um fadista bastante precoce, por ter tido contacto com poemas e autores complexos, fê-lo amadurecer antes dos outros?
Sim, talvez. Fez-me entender muita coisa, muito cedo. Ter algum cuidado e ter alguma consciência daquilo que é e daquilo que não é, acabei por me preocupar com muitas pessoas derivado ao facto de estar naquela família, existe um respeito muito grande por aquilo que faço.
Há essa ideia de legado.
Exatamente.
Isso também o pode ter feito perder algumas coisas. Ou não sente isso?
Não sinto isso. Sinto que só ganhei. E continuo a ganhar. É muito bom ter pessoas que me são tão próximas a poder dar-me as suas opiniões sobre aquilo que estou a fazer.
E o facto da sua família estar tão ligada ao fado deve ter um duplo efeito. Ou seja, por um lado aquela ideia de que os pais não querem obrigar os filhos a seguir as suas pisadas, “atenção, filho, não tens que ser isto”, mas depois, com tanto contacto, para o filho deixa de fazer sentido ser outra coisa. É mais ou menos isto?
Para mim foi uma escola, mesmo. E quando entrei nessa escola, percebi: “vou fazer isto, é isto que me faz sentido”.
Se tivesse que dizer uma profissão que não fosse fadista, qual seria?
Nem sei. Nunca pensei nisso. E no outro dia até estava a falar com uns amigos… se um dia não fizer isto, não sei o que vou fazer.
Mas isto não está para acabar, pois não?
Não, não, mas perguntaram-me se tinha outras paixões. Sim, tenho, mas a nível profissional é isto, adoro cantar. É uma vida que não tem sido fácil, mas o fácil não tem muita piada.
Que outras paixões são essas?
Adoro viajar. Adoro estar com os amigos, é uma coisa que me preenche imenso. Agora descobri uma paixão nova, não percebo nada daquilo, mas faz-me bem: comecei a fazer boxe, há quase um ano.
Ai sim?
Sim, faz-me bem à cabeça, é uma forma de estar em forma, é limpar a cabeça, no fundo.
Já levou umas tareias valentes?
Não, ainda não estou na fase do combate. O mestre já me disse que ia entrar em competição, nos veteranos, mas nem estou preocupado com isso.
Nasceu em Oeiras. Como é que foram esses tempos, o que fazia por lá?
Nasci na Rua Cândido dos Reis, mas os meus pais já tinham um apartamento lá em cima, na zona da Figueirinha. Sempre fui um bocadinho rebelde em miúdo. Preguei um grande susto à minha família, com cinco anos. Tinha uma grande paixão pelo meu avô, e ele trabalhava na Ucal, andava com uma carrinha a percorrer as fazendas que ainda existiam nos arredores de Lisboa. Ele ia lá buscar o leite. Adorava ir com ele na carrinha, era uma aventura. E naquele dia a minha mãe disse-me que não podia ir. A minha mãe estava em casa, fugi pela janela, desci a rua toda Cândido dos Reis até à casa dos meus avós e ele assim “o que é que estás aqui a fazer?” e antes as pessoas viram-me a passar na rua e perguntavam o que é que estava ali a fazer. Mas pronto, depois disse ao meu avô que a minha mãe me tinha deixado ir com ele e o meu avô coitado, passou-lhe ao lado. De repente a minha mãe percebe que não estou em casa… foi uma confusão, ligaram para os hospitais, para todo o lado. E a minha mãe lembrou-se que o meu avô costumava parar a carrinha em Barcarena e ir tomar um café em frente aos Bombeiros Voluntários. A minha mãe consegue o número telefone, lá ligou e lá lhe confirmaram que o meu avô ia comigo. Conclusão da história: o meu avô é que levou uma descompostura.
Clássico.
E eu não apanhei. Mas sim, a minha juventude foi muito fixe.
Havia esse ambiente bairrista, por ali?
Sim, sim, havia essa coisa e depois toda a gente conhecia os meus pais e os meus irmãos. E pronto, foi assim, aos 8 anos entrei no Coro Infantil do Santo Amaro de Oeiras, portanto cantei o “A Todos um Bom Natal”. Mas aprendi muito, sobretudo uma coisa essencial no fado: a dicção. Tem que se perceber o que está a ser dito.
Há pouco falava de estar nas aulas. Fez a escola até que ano?
Chumbei no décimo ano e na altura era obrigatório ir à tropa e tive mesmo de ir. E quando saí já tinha de ir estudar à noite, cheguei a frequentar as aulas à noite no secundário. Mas havia malta que já me contactava para ir cantar à noite nas casas de fado, era mesmo trabalho, comecei logo a cantar, fazia folgas de outros fadistas, foi tudo assim.
Atualmente, gostava de ter mais tempo para fazer outras coisas?
Ainda vou tendo, apesar de tudo.
É casado?
Não, sou solteiro.
O amor não ficou para trás?
Neste momento estou mais direcionado para a área profissional. Acho que é a melhor resposta que posso dar.
Politicamente correta. Vive em Lisboa?
Sim, há dois anos tive a oportunidade de vir para Lisboa. Estava em Oeiras, antes disso. Agora estou no Beato.
Uma zona ainda algo livre da gentrificação.
Tem dias.
O fado tem também muito que ver com Lisboa, com estas ruas. Como é que nesse sentido vê uma Lisboa com cada vez menos espaço, com preços cada vez mais altos?
Infelizmente está a acontecer. Por outro lado, acho que tinha que haver uma abertura, mas realmente o exagero e o aproveitamento das pessoas dentro da situação em que a cidade está, uma cidade que está na moda, isso preocupa-me. Não é possível arranjar casa, não é possível viver em Lisboa.
O fado, que sempre foi turisticamente muito ligado à ideia do ADN português e lisboeta, sofre muito com isto ou o fado até precisa desse turismo massificado?
O fado precisa disso. As casas de fado só sobrevivem com este turismo, não é com os portugueses. E isso é muito importante para mim e para as pessoas que ainda trabalham e frequentam as casas de fado. Sítios onde gosto de ir mesmo quando não estou a trabalhar, acaba sempre por ser uma festa.
Uma festa triste.
Não, não, aí é que está o engano. O fado é uma coisa lindíssima, mesmo que seja algo mais…
Depressivo?
Melancólico, eu diria melancólico, depressivo é uma coisa de cabeça e o fado é uma coisa do coração.
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