Mísia: "Demorei muito tempo a dizer a palavra cancro"
Entrevistas - Maio 13, 2019
Entre 2016 e 2018, Mísia enfrentou a morte por duas vezes. Sofreu em silêncio, entre o palco e a solidão, mas das feridas e das cicatrizes fez, aos 63 anos, um disco que não podia ter outro título: ‘Pura Vida (Banda Sonora)'
No texto de apresentação deste novo disco ‘Pura Vida’, a Mísia fala de dois anos "de céu e inferno, de dureza e paixão". Fala de "feridas", "calvário" e cicatrizes". O que é que aconteceu na vida da Mísia?
O que aconteceu é que passei por duas situações oncológicas bastante graves, que resultaram em duas operações e me obrigaram a dois longos períodos de quimioterapia. Foram dois anos muito intensos porque as duas intervenções cirúrgicas foram muito próximas no tempo. Contas feitas, fiz a primeira operação em setembro de 2016 e a última sessão de quimioterapia em setembro de 2018.
Mas hoje está curada?
Nunca ninguém pode dizer que está curado desta doença, mesmo que nunca mais a volte a ter. Da primeira vez eu ainda acreditei nisso. Retirei o cancro e acreditei que estava bem, mas da segunda vez percebi que a cura não existe.
Mas diz que descobriu o céu no meio disto tudo?
Conheci o céu porque conheci pessoas maravilhosas. Vivi momentos de pequenos milagres quotidianos que só aprendi a valorizar porque estava doente. Quando saía dos tratamentos, no Hospital de Santa Maria, chegava à rua e começava a abraçar as árvores todas até chegar à paragem de táxi. Só o cheiro do ar já me provava que estava viva.
Em que parte do corpo é que teve esse problema oncológico?
Isso não interessa muito. Felizmente, foi num sítio onde pôde ser removido e isso é o mais importante.
Foi operada em Portugal?
Sim, a primeira vez fui operada num hospital privado porque dei entrada de urgência e já não me deixaram sair de lá. Da segunda vez é que fui para o serviço público. Cheguei a passar lá uma véspera de Natal, mas só tenho bem a dizer. Fui muito bem tratada.
Porque é que só revela isto agora?
Porque eu nunca daria uma entrevista para depois ver um título a dizer: "Mísia tem cancro." Não critico quem o faça, mas isso não tem que ver com a minha maneira de ser. Agora é diferente, as coisas já aconteceram. Muitas pessoas minhas amigas, incluindo os músicos que trabalhavam e viajavam comigo, também não souberam de nada. Quando, por acaso, se abordava esse assunto a propósito de outra pessoa qualquer, eu ficava em pânico. Sempre fiz por esconder.
E hoje está à vontade para falar do assunto?
Estou, se for nestas circunstâncias. Para mim faz todo o sentido falar disto agora porque aquilo que eu passei influenciou muito a pessoa que sou hoje, o meu trabalho e o meu novo disco.
O que é que aprendeu durante esses dois anos?
Aprendi a não ter medo de nada e aprendi que a coisa mais bonita que posso ter numa situação extrema e de limite é ser fiel ao que sou. Nunca cancelei um único concerto, mesmo quando já estava com os infusores da quimioterapia. Nessas alturas percebi a importância que o trabalho tem na minha vida. Estes dois anos ensinaram-me que a partir daqui só posso ser maravilhosa com a vida, com as pessoas e comigo. Tenho de mostrar a esses cancros que a vida conseguiu ser muito mais forte do que eles.
Chegou a sentir revolta?
Nunca me senti revoltada com a doença. Há muitas pessoas que se perguntam: "Porquê eu?" No meu caso, eu simplesmente me perguntava "e porque não eu?" Sei que não sou exemplo para ninguém, mas de cada vez que leio a história de uma pessoa que passou por um momento quase terminal da vida e que hoje está viva, a mim dá-me força e confiança. Por isso, se a minha história poder dar força a outras pessoas, eu acho que é útil falar dela.
Como é que lidou com a agressão física que implica uma doença destas, com cirurgias e quimioterapias?
Primeiro, passei pela fase de pensar no meu corpo como um inimigo a combater, mas acabei a agradecer-lhe o facto de ter resistido à quimioterapia. Pelo meio houve situações caricatas. Como emagreci muito na primeira operação e como ninguém sabia de nada, muitas vezes perguntavam-me se eu tinha feito uma cirurgia estética. Diziam que parecia mais nova. Quanto ao cabelo, só perdi uma terceira parte dele. O que aconteceu depois é que nasceu encaracolado. Durante três ou quatro meses, eu até brincava com a situação a dizer que parecia uma medusa.
Pela forma como fala, parece ter encarado a doença com grande leveza!
Não. Foi um método que adotei. Como dizia o Fernando Pessoa, às vezes as nossas mentiras definem-nos. Eu tive de fazer assim para não ir para o lado da depressão. Tive de escolher um caminho, não de leveza, mas de ver
a beleza mesmo no sofrimento, porque ela existe.
Durante esse tempo em que esteve doente, que espaço ocupou a música?
Ocupou o espaço todo. Nunca deixei de fazer digressões e concertos. Tinha era de viajar com uma máscara porque estava com as defesas todas em baixo. Estava proibida de entrar, por exemplo, em cinemas, autocarros ou metro. Quando alguém me perguntava o que é que eu tinha, eu lá dizia que estava com gripe. Mesmo numa das piores fases da doença em que estava com 15 quilos a menos e levava infusões de ferro, nunca deixei de cantar. De cada vez que, em palco, fazia uma inspiração ou tinha uma frase mais comprida para cantar, de grande esforço, tinha de me agarrar ao microfone para não cair. A sala rodava toda. Às vezes, pedia aos músicos para tocarem mais devagar porque eu não tinha fôlego. Dificilmente conseguia subir a minha rua. Fiz conferências no Museu do Fado com infusores debaixo da roupa e cheguei a tirar fotos sem que ninguém desse por nada. Adormecer e acordar sozinha com esta realidade não foi nada fácil e o meu contraponto foi o trabalho. Mesmo quando comecei a trabalhar no novo disco percebi que ele estava impregnado desta minha nova maneira de sentir a vida. Depois de enfrentar a morte duas vezes, qualquer pessoa
sai mais forte.
E o disco foi uma forma que encontrou de purgar aquilo por que passou!
Sim. A vida e a obra são inseparáveis. É por isso que neste disco aparece, por um lado, a guitarra elétrica, com uma sonoridade dura, suja e pouco reconfortante, e por outro a beleza da guitarra portuguesa, que é mais espiritual. Elas representam a tal dualidade dos sentimentos, o inferno e o céu. Depois aparece também o clarinete baixo, porque eu queria muito instrumentos de sopro em representação daquela ideia do sopro da vida. As grandes religiões dizem que a vida nasceu do sopro, que Deus soprou nas narinas de Adão e que ele viveu. Aliás, este disco tem uma liberdade vital, a mesma que eu hoje sinto para fazer aquilo que quero e para viver à minha maneira. O resto são apêndices que não interessam para nada. Aquilo que nós achamos que é importante na vida, na hora da verdade não interessa para nada.
Foi mais criteriosa na escolha das palavras para este disco por forma a que elas pudessem servir melhor o momento pelo qual passou?
Houve autores que já escreveram para mim sabendo o que me tinha acontecido. Em ‘O Fado dos Dois Pardais’, o meu amigo e professor espanhol Ricardo Negrete Plano fala da minha cicatriz quando escreve: "No meu Ventre desenhada uma ruela deserta." Também o Jorge Muchagato e o Tiago Torres da Silva [autor de quatro letras] sabiam o que eu tinha passado. Eu própria também escolhi um texto de Miguel Torga chamado ‘Santo e Senha’ que fala de "uma estrela no chão", como se a vida, a mim, me tivesse trazido cá para baixo.
Passar este disco para o palco não a vai obrigar a reviver tudo aquilo por que passou? Não vai ser doloroso?
Não. Este disco não é doloroso. Este disco tem memórias de vida. Ainda agora, na apresentação no Museu do Fado, no tema ‘Os Homens que Eu Amei’, os meus olhos encheram-se de lágrimas, mas não foram de tristeza nem de dor, foram de emoção. Preferia não ter passado o que passei, mas não ficou tristeza.
Ficou o quê então?
Ficou uma força e uma enorme lucidez. Eu demorei muito tempo, por exemplo, a dizer a palavra cancro, mas já lhe perdi o medo. Ao mesmo tempo ficou também uma grande fragilidade. Hoje sou uma pessoa muito mais sensível àquilo que chamo os pequenos milagres quotidianos.
O que aconteceu é que passei por duas situações oncológicas bastante graves, que resultaram em duas operações e me obrigaram a dois longos períodos de quimioterapia. Foram dois anos muito intensos porque as duas intervenções cirúrgicas foram muito próximas no tempo. Contas feitas, fiz a primeira operação em setembro de 2016 e a última sessão de quimioterapia em setembro de 2018.
Mas hoje está curada?
Nunca ninguém pode dizer que está curado desta doença, mesmo que nunca mais a volte a ter. Da primeira vez eu ainda acreditei nisso. Retirei o cancro e acreditei que estava bem, mas da segunda vez percebi que a cura não existe.
Mas diz que descobriu o céu no meio disto tudo?
Conheci o céu porque conheci pessoas maravilhosas. Vivi momentos de pequenos milagres quotidianos que só aprendi a valorizar porque estava doente. Quando saía dos tratamentos, no Hospital de Santa Maria, chegava à rua e começava a abraçar as árvores todas até chegar à paragem de táxi. Só o cheiro do ar já me provava que estava viva.
Em que parte do corpo é que teve esse problema oncológico?
Isso não interessa muito. Felizmente, foi num sítio onde pôde ser removido e isso é o mais importante.
Foi operada em Portugal?
Sim, a primeira vez fui operada num hospital privado porque dei entrada de urgência e já não me deixaram sair de lá. Da segunda vez é que fui para o serviço público. Cheguei a passar lá uma véspera de Natal, mas só tenho bem a dizer. Fui muito bem tratada.
Porque é que só revela isto agora?
Porque eu nunca daria uma entrevista para depois ver um título a dizer: "Mísia tem cancro." Não critico quem o faça, mas isso não tem que ver com a minha maneira de ser. Agora é diferente, as coisas já aconteceram. Muitas pessoas minhas amigas, incluindo os músicos que trabalhavam e viajavam comigo, também não souberam de nada. Quando, por acaso, se abordava esse assunto a propósito de outra pessoa qualquer, eu ficava em pânico. Sempre fiz por esconder.
E hoje está à vontade para falar do assunto?
Estou, se for nestas circunstâncias. Para mim faz todo o sentido falar disto agora porque aquilo que eu passei influenciou muito a pessoa que sou hoje, o meu trabalho e o meu novo disco.
O que é que aprendeu durante esses dois anos?
Aprendi a não ter medo de nada e aprendi que a coisa mais bonita que posso ter numa situação extrema e de limite é ser fiel ao que sou. Nunca cancelei um único concerto, mesmo quando já estava com os infusores da quimioterapia. Nessas alturas percebi a importância que o trabalho tem na minha vida. Estes dois anos ensinaram-me que a partir daqui só posso ser maravilhosa com a vida, com as pessoas e comigo. Tenho de mostrar a esses cancros que a vida conseguiu ser muito mais forte do que eles.
Chegou a sentir revolta?
Nunca me senti revoltada com a doença. Há muitas pessoas que se perguntam: "Porquê eu?" No meu caso, eu simplesmente me perguntava "e porque não eu?" Sei que não sou exemplo para ninguém, mas de cada vez que leio a história de uma pessoa que passou por um momento quase terminal da vida e que hoje está viva, a mim dá-me força e confiança. Por isso, se a minha história poder dar força a outras pessoas, eu acho que é útil falar dela.
Como é que lidou com a agressão física que implica uma doença destas, com cirurgias e quimioterapias?
Primeiro, passei pela fase de pensar no meu corpo como um inimigo a combater, mas acabei a agradecer-lhe o facto de ter resistido à quimioterapia. Pelo meio houve situações caricatas. Como emagreci muito na primeira operação e como ninguém sabia de nada, muitas vezes perguntavam-me se eu tinha feito uma cirurgia estética. Diziam que parecia mais nova. Quanto ao cabelo, só perdi uma terceira parte dele. O que aconteceu depois é que nasceu encaracolado. Durante três ou quatro meses, eu até brincava com a situação a dizer que parecia uma medusa.
Pela forma como fala, parece ter encarado a doença com grande leveza!
Não. Foi um método que adotei. Como dizia o Fernando Pessoa, às vezes as nossas mentiras definem-nos. Eu tive de fazer assim para não ir para o lado da depressão. Tive de escolher um caminho, não de leveza, mas de ver
a beleza mesmo no sofrimento, porque ela existe.
Durante esse tempo em que esteve doente, que espaço ocupou a música?
Ocupou o espaço todo. Nunca deixei de fazer digressões e concertos. Tinha era de viajar com uma máscara porque estava com as defesas todas em baixo. Estava proibida de entrar, por exemplo, em cinemas, autocarros ou metro. Quando alguém me perguntava o que é que eu tinha, eu lá dizia que estava com gripe. Mesmo numa das piores fases da doença em que estava com 15 quilos a menos e levava infusões de ferro, nunca deixei de cantar. De cada vez que, em palco, fazia uma inspiração ou tinha uma frase mais comprida para cantar, de grande esforço, tinha de me agarrar ao microfone para não cair. A sala rodava toda. Às vezes, pedia aos músicos para tocarem mais devagar porque eu não tinha fôlego. Dificilmente conseguia subir a minha rua. Fiz conferências no Museu do Fado com infusores debaixo da roupa e cheguei a tirar fotos sem que ninguém desse por nada. Adormecer e acordar sozinha com esta realidade não foi nada fácil e o meu contraponto foi o trabalho. Mesmo quando comecei a trabalhar no novo disco percebi que ele estava impregnado desta minha nova maneira de sentir a vida. Depois de enfrentar a morte duas vezes, qualquer pessoa
sai mais forte.
E o disco foi uma forma que encontrou de purgar aquilo por que passou!
Sim. A vida e a obra são inseparáveis. É por isso que neste disco aparece, por um lado, a guitarra elétrica, com uma sonoridade dura, suja e pouco reconfortante, e por outro a beleza da guitarra portuguesa, que é mais espiritual. Elas representam a tal dualidade dos sentimentos, o inferno e o céu. Depois aparece também o clarinete baixo, porque eu queria muito instrumentos de sopro em representação daquela ideia do sopro da vida. As grandes religiões dizem que a vida nasceu do sopro, que Deus soprou nas narinas de Adão e que ele viveu. Aliás, este disco tem uma liberdade vital, a mesma que eu hoje sinto para fazer aquilo que quero e para viver à minha maneira. O resto são apêndices que não interessam para nada. Aquilo que nós achamos que é importante na vida, na hora da verdade não interessa para nada.
Foi mais criteriosa na escolha das palavras para este disco por forma a que elas pudessem servir melhor o momento pelo qual passou?
Houve autores que já escreveram para mim sabendo o que me tinha acontecido. Em ‘O Fado dos Dois Pardais’, o meu amigo e professor espanhol Ricardo Negrete Plano fala da minha cicatriz quando escreve: "No meu Ventre desenhada uma ruela deserta." Também o Jorge Muchagato e o Tiago Torres da Silva [autor de quatro letras] sabiam o que eu tinha passado. Eu própria também escolhi um texto de Miguel Torga chamado ‘Santo e Senha’ que fala de "uma estrela no chão", como se a vida, a mim, me tivesse trazido cá para baixo.
Passar este disco para o palco não a vai obrigar a reviver tudo aquilo por que passou? Não vai ser doloroso?
Não. Este disco não é doloroso. Este disco tem memórias de vida. Ainda agora, na apresentação no Museu do Fado, no tema ‘Os Homens que Eu Amei’, os meus olhos encheram-se de lágrimas, mas não foram de tristeza nem de dor, foram de emoção. Preferia não ter passado o que passei, mas não ficou tristeza.
Ficou o quê então?
Ficou uma força e uma enorme lucidez. Eu demorei muito tempo, por exemplo, a dizer a palavra cancro, mas já lhe perdi o medo. Ao mesmo tempo ficou também uma grande fragilidade. Hoje sou uma pessoa muito mais sensível àquilo que chamo os pequenos milagres quotidianos.
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