O sul de uma Amália que pintava flores
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A ligação apaixonada de Amália àquele lugar mágico de finisterra e suas gentes terá sido uma das obras-primas da sua vida: desde as idas regulares ao Café Central, em jeito de ritual, onde pedia sempre a sala de dentro e uma mesa específica, escolhendo invariavelmente peixe (sobretudo dourada), às sardinhas assadas na brasa com que gostava de receber os amigos em sua casa, passando pela cúmplice amizade com Francisca Efigénia (a “Xica”), a quem escreveu uma dedicatória numa fotografia que dizia “Para a minha amiga Xica que sabe tanto de pesca que até me pescou a mim” e com quem partilhava longos serões a ver filmes do Fred Astaire ou a devorar livros de cowboys alugados numa loja de São Teotónio. Sem esquecer ainda a original sinalização em forma de malmequer (que resistiu à voragem do tempo e lá permanece) que mandou colocar na entrada do caminho de terra batida que dá acesso à sua herdade, as flores de todas as cores que pintou, com as suas próprias mãos, no muro branco de entrada da herdade (infeliz e inexplicavelmente hoje apagadas), os porcos que ficava a mirar de longe e que baptizava com nomes próprios (“António”, “Joaquim”, etc.), ou até a sincera e esforçada tentativa, ainda que quase sempre desajeitada, de ajudar o caseiro da quinta a plantar batatas.
Ao sul, num Alentejo que desnuda e recentra, acredito que Amália pôde evadir-se, esquecer(-se) e regressar àquela frescura das coisas vegetais e ao grande vento límpido do mar que Sophia de Mello Breyner sublimemente cantou nos seus versos. A sua atracção pelos lugares de fronteira e abismo – talvez porque “todos os amantes são raianos / como os ciganos de passagem” e seu “amor é de bala e desafio” (novamente Alegre); e o Belchior falava-me tanto do seu fascínio por Sagres – levou-a assim a esse lugar-destino de liberdade e solidão, como que sentada à beira do mundo, o qual se foi mitificando no imaginário colectivo, ainda mais após a sua morte no Outono de 1999. A sua memória espiritual e afectiva ficou indelevelmente impressa naquela paisagem recôndita e selvagem, naquela falésia plena de energia onde se parece vislumbrar todo um admirável mundo novo – tal como Amália nos abriu novos horizontes de ouvir e de sentir com o seu fado feito de singular intuição e verdade natural.
Numa entrevista a Inês Pedrosa dois anos antes da sua morte, Amália reiterava a ideia de que andara toda a vida a não viver a sua vida, de que não fizera a sua vida, fizeram-na. E de que continuava a não saber o que é a felicidade, até porque “não se pode meter uma vida toda numa palavra”. Mas a sul ela terá pintado de muitas tonalidades e matizes esse denso preto que dizia ser, excessivamente, a cor do seu feitio e da sua vida inteira – essa cor que para si não era necessariamente triste: “Tenho muitas alegrias através da cor preta. Às vezes, por isso, é como se fosse encarnado.” Gosto de pensar que Amália encontrou nos trilhos e areais além-Tejo, entre a serenidade criadora dos campos e o ímpeto fremente e inquietante das águas atlânticas, uma (ambígua, misteriosa) alegria que advém de uma tristeza à qual não faltou pecado nenhum.
Escreveu Miguel Torga no seu livro Portugal, de 1950: “Passado o Caldeirão, é como se me tirassem uma carga dos ombros. Sinto-me livre, aliviado e contente, eu que sou a tristeza em pessoa!”. No Algarve o escritor e médico nascido em terras do norte não se via verdadeiramente dentro da pátria nem fora dela, mas sim “numa espécie de limbo da imaginação, onde tudo é fácil, belo e primaveril” e onde “um poeta tem a sensação de que se pode viver do ar, sem ninguém ter necessidade de pensar sequer no dia de amanhã”. Talvez sejam sobretudo essa leveza e volúpia dos sentidos, essa “miragem dum céu deste mundo”, que tanto fascinaram muitos dos que, ao longo dos tempos, rumaram ao Algarve d’aquém-mar, placa giratória de culturas e imaginários que temperaram e sedimentaram a identidade mediterrânica.
Esse espanto pelo sul também contagiaria a escritora e tradutora Fernanda de Castro (1900-1994), amiga próxima de Amália. Fernanda – casada com António Ferro, homem forte de Salazar na área do fomento cultural subordinado aos fins políticos do regime – era um espírito irrequieto e fervilhante, o que, somando-se a uma saúde mais débil e a precisar de outros ares, levou-a a cultivar uma relação estreita com o Algarve, o qual, segundo ela, possuía três milagres: a praia da Rocha, o promontório de Sagres e as amendoeiras em flor. Mantinha mesmo uma casa em Alporchinhos (concelho de Lagoa), que alugava ao ano e da qual registou diversas impressões nas suas memórias, recordando a simplicidade, virgindade e quase despovoamento do lugar, e remetendo-nos para um Algarve outro:
…] a praia deserta, o rochedo com 200 ninhos de gaivotas no dizer dos pescadores, a vinha a perder de vista, as figueiras carregadas de figos doces e pequenos, o cheiro a maresia e as ervas aromáticas, os crepúsculos incomparáveis e um céu carregado de estrelas – em parte alguma via tantas estrelas cadentes –, e ainda o silêncio e os sons que também eram silêncio, marulho das ondas, pios de gaivotas, adejar de asas.